Anotações de Brasília #1: “Feliz é o povo que não precisa de heróis”

No primeiro dia de festival de Brasília uma pergunta ressoa mais categórica: como persistir sobre a violência? Tempos de arbitrariedade irresoluta demandam uma reflexão sobre nossas mais contingentes reações. No caso de Torre das Donzelas, voltamos no tempo, ou melhor, damos um passo para trás com consciência de que aquilo é apenas um flashback consequente. O filme convida mulheres perseguidas e presas na ditadura, mais especificamente as militantes revolucionárias pós-golpe dentro do golpe em 1968 (AI-5), que foram parar no presídio Tiradentes em São Paulo… CONTINUA

O rastilho indiscreto da ficção

Quando Historias Extraordinarias surgiu, em 2008, o filme de Mariano Llinás teve um impacto decisivo no cinema latino-americano de então. De repente, no interior da cinematografia independente argentina, a mais sólida da região, assentada há uma década e meia no realismo, na cotidianidade, na sobriedade da encenação – basta pensar no paradigmático pontapé inicial de Rapado (1991), de Martín Rejtman –, surgiam aquelas quatro horas de histórias paralelas cheias de bifurcações e desvios, aqueles mistérios insondáveis conduzidos por uma narração em voz over verborrágica e… CONTINUA

Um funeral ao patriarcado latino-americano

Estamos no México, e Fernanda Rivera, a protagonista do documentário Antígona, chama de maestro quem no Brasil nomearíamos como professor. Confesso uma ligeira indecisão sobre qual dos vocábulos prefiro. Maestro denota um saber como posse, é asperamente nobre, presunçoso, hierárquico, mas também transmite, nas suas rápidas sílabas, uma notável tradição. Professores seriam sujeitos a disseminar práticas, espalhar ideias, conceitos – como se fossem pares, um tanto horizontais, das descobertas dos alunos. Um pouco moderno, com pitadas mundanas. É justamente a oscilação, meio sacra, meio profana,… CONTINUA

Interrogar a vitalidade da fronteira

Categorias como “documentário” e “experimental” (ou “avant-garde”) pertencem àquela classe de palavras traiçoeiras, dessas que – na falta de precisão – é sempre bom evitar. Com elas, no entanto, acontece um fenômeno curioso: não há ninguém que assuma o fardo de uma definição exaustiva e cabal – e ninguém que não entenda o que se quer indicar quando as invocamos. E isso porque, embora uma tentativa de conceituação dispare um sem fim de problemas de natureza estética e filosófica, é fácil constatar que ambas formam… CONTINUA

Renascença – uma conversa com Pierre Léon

“Esse é meu primeiro prêmio”, disse um risonho Pierre Léon ao receber um troféu em sua homenagem na sessão de abertura da 11ª Mostra CineBH, em agosto de 2017. Com o bom humor que lhe é peculiar, o realizador nos fazia pensar em sua trajetória até aqui: sem alarde, quase na surdina, bem longe dos holofotes dos grandes festivais e dos contratos de distribuição, Léon construiu uma das filmografias mais singulares do cinema contemporâneo. Seu método e sua poética se tocam: filmando a cada verão,… CONTINUA

O mecanismo

Se a expressão “cinema de arte” tem alguma relevância, ela se refere principalmente à possibilidade de delimitar todo um “sistema”, termo aqui entendido como um modelo de exploração econômica e de possibilidade de financiamento de obras que engloba uma série de elos da cadeia do audiovisual, entre os quais os festivais seriam das mais centrais (e o Festival de Cannes, como o maior deles, especialmente) – não cabendo aqui nesse momento fazer nem uma defesa nem uma acusação, mas apenas constatar a sua existência. O… CONTINUA

Das formas de invenção do amor

A capacidade de emprestar presença a fantasmas e projeções é uma característica comum entre o discurso cinematográfico e o sentimento amoroso, e nos últimos dias as telas de Cannes estiveram especialmente povoadas por histórias ao redor dessas “encarnações”. Na competição, por exemplo, dois filmes asiáticos vieram propor olhares distintos sobre uma juventude “desencantada” e sua necessidade de tentar completar alguns de seus vazios através da projeção do desejo do amor em personagens que surgem repentinamente em suas vidas. No coreano Burning, novo filme de Lee… CONTINUA

Manipulação, modos de usar

Le Livre d’Image começa e termina com imagens de mãos. Godard nos indica no texto que acompanha aquelas imagens acreditar que é com esta parte do corpo que o homem pensa – igualando, portanto, a ação com o pensamento, pois apenas a partir da ação o pensamento se consuma. E não qualquer ação, mas a “manipulação”, efetivamente. Manipulação que é, antes de tudo, a de Godard mesmo (junto a seus colaboradores, porque há pistas em quantidade que indicam o quanto figuras como Fabrice Aragno, Nicole… CONTINUA

Escrevendo uma história

Praticamente desde que o cinema existe, um dos mais comuns usos que a ficção através desse meio tem construído é o de reencenar fatos da História, mais ou menos célebres, com os mais variados objetivos – da mitificação hagiográfica à contestação das versões oficiais e reescrita de uma narrativa. Alguns cineastas são mais afeitos a esse movimento do que outros, e Cannes esse ano mostrou os novos filmes de dois daqueles que, entre os cineastas contemporâneos, mais têm suas obras marcadas por esse movimento. No… CONTINUA

Da ficção pragmática à fantástica realidade

Por detrás da muito discutida falsa dicotomia entre a ficção e o documentário, ou mesmo da igualmente super explorada questão dos chamados “filmes híbridos”, uma das perguntas que parece vir menos à tona – embora talvez seja a que mais falta faça na origem de muitos projetos – é a que questiona acerca dos porquês de fazer ficção ou fabular em torno da realidade, nos dias de hoje. Embora possa parecer algo óbvio à primeira vista, a verdade é que em muitos filmes o desejo… CONTINUA