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O rastilho indiscreto da ficção

Quando Historias Extraordinarias surgiu, em 2008, o filme de Mariano Llinás teve um impacto decisivo no cinema latino-americano de então. De repente, no interior da cinematografia independente argentina, a mais sólida da região, assentada há uma década e meia no realismo, na cotidianidade, na sobriedade da encenação – basta pensar no paradigmático pontapé inicial de Rapado (1991), de Martín Rejtman –, surgiam aquelas quatro horas de histórias paralelas cheias de bifurcações e desvios, aqueles mistérios insondáveis conduzidos por uma narração em voz over verborrágica e muita música, aqueles personagens-detetives de olhar espantado em meio a um enredo labiríntico que não cessava de se desdobrar em novas camadas de aventuras. Reagindo às narrativas e formas minimais hegemônicas à época – cuja obra-prima é o longa de estreia de Lisandro Alonso, La Libertad (2001) –, Llinás reinventava o que o também argentino Alejandro Agresti, no início dos anos 1990, havia chamado de “maximalismo”, e afirmava com altivez um traço romanesco, um diálogo forte e original com o filme de gênero – especialmente o policial – e, sobretudo, uma crença resoluta nos poderes da ficção.

Na empreitada monumental que é La Flor – quatorze horas, incontáveis histórias dentro de histórias, dez anos de realização –, o gesto maximalista atinge o paroxismo, ao mesmo tempo em que se modifica profundamente. O que em Historias Extraordinarias era uma vontade romanesca se transforma no equivalente cinematográfico de um romance de mil páginas. O diálogo com o filme policial se converte em uma voracidade paródica que se apropria também das texturas do filme B, da intriga de bastidores característica da tradição dos musicais, da ficção científica, da obsessão oitentista com a Guerra Fria, do retrato biográfico, da crise moderna do autor. O paralelismo das três histórias cede espaço para uma estrutura formada por episódios autônomos – que, no entanto, guardam conexões subterrâneas. Os três homens sem qualidades – sintomaticamente chamados H, X e Z – dão lugar às impressionantes atrizes do grupo teatral Piel de Lava, que se metamorfoseiam em arqueólogas, espiãs internacionais, cantoras pop, guerrilheiras nicaraguenses, guardas florestais no Canadá, atrizes de um filme em crise com o diretor, bruxas com vassoura e tudo.

Logo de início, a defesa da ficção como mergulho na aventura é afirmada por Llinás, que, diante do espectador, explica brevemente o que veremos: são seis histórias autônomas, das quais quatro começam e não terminam (um filme de horror B, um musical, um filme de espionagem e “uma coisa que não se sabe muito bem o que é”), uma é um conto inspirado em um filme francês antigo e a última narra a fuga de mulheres prisioneiras de uma tribo indígena que começa na metade e termina. A multiplicação exuberante de tramas e sub-tramas que veremos em seguida tem como contraponto o inacabamento afirmado na introdução. A ficção se volta sobre si mesma e nos entrega o jogo desde o princípio: se o espectador permanece na sala, não é por uma expectativa de resolução do conflito (já sabemos que não a haverá), mas pelo puro prazer aventuresco da ficção; se a narrativa segue adiante, o que mais interessa são seus desvios, bifurcações, voltas no tempo, saltos qualitativos; se o filme se sustenta durante tantas horas, é porque nos oferece um verdadeiro tour de force formal: dramaturgias, tons, climas, gêneros, texturas, estilos de atuação e mise-en-scène, tudo se transforma – o tempo todo.

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É preciso, no entanto, resistir à sedutora verve autorreflexiva de La Flor. O trabalho da crítica, como escreveu Gilda de Mello e Souza em um primoroso ensaio sobre Antonioni, é também o de “decifrar as significações que, contra a vontade do criador, costumam se depositar no rastilho indiscreto das imagens”. Assim, embora não haja cliffhanger (o que traz o espectador de volta do intervalo nunca é a esperança de uma resolução), é inegável que as sequências mais esplendorosas são justamente os momentos imediatamente anteriores a cada intervalo – ou ao final de cada noite de projeção (na mostra CineBH, as três partes do filme foram exibidas em três noites consecutivas). O duelo musical que encerra a primeira noite – o estúdio como uma câmara de ecos das vidas interiores das três personagens, a performance inesquecível de Pilar Gamboa; a meditação do cientista europeu refém das espiãs no terceiro episódio – que reconhece no despontar das estrelas do céu sul-americano um outro mundo, de ponta cabeça, que o lança ao maravilhamento; os retratos de cada atriz que encerram o quarto episódio e encenam uma disputa – a um só tempo lúdica e violenta – pelo controle da encenação. Do ponto de vista da intriga, não há resolução. Do ponto de vista do cinema, porém, nada falta – terminamos justo no clímax, ou melhor, numa apoteose cinematográfica que nos faz esquecer a irresolução.

Na contramão de uma empreitada aparentemente semelhante como As Mil e Uma Noites (2015) – as contínuas aparições de Miguel Gomes que lançam uma sombra de ironia e autoconsciência sobre todo o filme, o fracasso autocelebrado na voz over que se transforma em autoelogio mal-disfarçado ao projeto –, em La Flor a autorreflexividade não é um conceito soberano, mas uma peça a mais na engrenagem prodigiosa da ficção. Não por acaso, o quarto episódio, que ficcionaliza uma pretensa crise do diretor com as atrizes e com o projeto do filme, é um dos mais recheados de peripécias insólitas: árvores com formas humanas que preparam a invasão, orgias no hospício de uma cidade do interior, uma célula revolucionária formada por bruxas. Não por acaso, o momento de maior autocelebração – os 45 minutos de créditos finais que se projetam sobre a desprodução da última sequência filmada e o festejo da equipe – é filmado com a câmera de cabeça pra baixo, num belo pôr-do-sol nas montanhas ao som de uma canção a ser composta na banda sonora.

No extremo oposto do conceitualismo contemporâneo – capaz de arruinar até os experimentos mais recentes de Wang Bing, que parecem se sustentar apenas na premissa teórica –, La Flor afirma uma arte verdadeiramente comprometida com os poderes da ficção, e não abre mão de afirmar, a cada sequência, sua imensa generosidade com o espectador: se permanecemos tanto tempo juntos, não foi porque embarcamos em uma ideia, e sim porque o filme foi capaz de nos reconquistar novamente a cada novo recomeço. A força da primeira imagem, a única que retornará algumas vezes em outros episódios (na beira de uma estrada qualquer, duas estruturas metálicas de outdoor vazias lançam a promessa de um preenchimento), reside não apenas na beleza do conceito, mas em sua paradoxal negação. Em La Flor não haverá estrutura vazia. A liberdade imaginativa não será afirmada em golpes de conceito, mas permanentemente posta à prova a cada nova sequência.

Macedonio Fernández é o melhor companheiro na aproximação a La Flor. Como se sabe, o auge do gesto literário do incontornável escritor portenho (“a literatura argentina deve tudo a Macedonio”, escreveu Ricardo Piglia) é a concepção conjunta de dois romances: Adriana Buenos Aires, o “último romance ruim” – assentado no realismo, no suspense, na força da intriga, na verossimilhança dos fatos e dos personagens – e o Museu do Romance da Eterna, o “primeiro romance bom”, cuja empreitada estética consiste numa “provocação à escola realista, um programa completo de desacreditamento da verdade ou realidade do que o romance conta, e somente a sujeição à verdade da Arte, intrínseca, incondicionada, autoautenticada”. Nos prólogos autorreflexivos que adiam à exaustão o começo da Eterna, Macedonio elabora uma verdadeira teoria estética, moderna por excelência, na qual se poderia reconhecer toda a grande literatura argentina posterior, de Cortázar a Piglia. A proeza de Llinás, no entanto, não consiste apenas em aprofundar o gesto modernista – como fará, por exemplo, em todo o quarto episódio. La Flor não pertence só ao gênero do romance bom. Afinal, sabemos que o Romance da Eterna era “o último dos pseudorromances”, e que seria enfadonho insistir neles ainda hoje. Llinás é macedoniano como nenhum de seus compatriotas macedonianos o foi: ao praticar com inventividade ímpar o equivalente cinematográfico do romance ruim.

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Os dois primeiros episódios de La Flor são isso: intriga fantástica, mas assentada na verossimilhança; atuações naturalistas e convincentes, prodígio de um fabuloso grupo de atrizes; ritmo empolgante e implacável, sem digressões; enredo envolvente, sedutor, como na melhor tradição griffithiana. A artificialidade está lá, assumida desde a empreitada inaugural: fazer cinema de gênero sem dinheiro, filmar hoje num rincão dos pampas como se estivéssemos em qualquer outro lugar do mundo e em qualquer outra época do século XX, reduzir drasticamente a distância focal e concentrar-se nos rostos em toda a primeira parte para poder contornar a impossibilidade da profundidade de campo da câmera. Mas aqui a piscadela irônica para o espectador é uma torrente subterrânea, felizmente soterrada pela invenção narrativa. Se em Historias Extraordinarias era preciso concentrar praticamente todo o texto dito em uma voz over obsedante – e emudecer os protagonistas –, aqui já quase não há narrador. Nas mãos virtuosas de Pilar Gamboa, Valeria Correa, Elisa Carricajo e Laura Paredes, os diálogos podem ser ditos em alto e bom som; a cena pode se construir em sua plenitude clássica, inteiramente dominada pela densidade do trabalho vocal e corporal das atrizes: o monólogo súbito da personagem de Elisa Carricajo diante do responsável pela múmia no primeiro episódio; o encontro explosivo entre as rivais Valeria Correa e Pilar Gamboa no segundo. A paródia terceiro-mundista dos gêneros consagrados pode conviver com uma tradição mais antiga, a do bom e velho cinema narrativo. A racionalidade autoconsciente do romance bom pode ser, por mais de três horas, marotamente sufocada pelas proezas emocionais do romance ruim.

O terceiro episódio é o mais longo – cinco horas e meia ou uma noite inteira de projeção – e o mais ambicioso. Se as peripécias típicas do romance burguês oitocentista ou do filme policial vagabundo o habitam em uma profusão inigualável – acompanhamos um grupo de espiãs responsável pelo sequestro de um cientista “em algum lugar da América do Sul em algum momento dos anos oitenta”, perseguido por um outro grupo de espiãs versadas em artes marciais –, sua estrutura narrativa é moderna, e abriga flashbacks dentro de flashbacks, momentos de espera, ensaios quase teóricos (a “mosca tsé-tsé’), derivas poéticas, discurso indireto livre, vozes over polifônicas. É aqui também o momento privilegiado de um outro gesto intrínseco a La Flor: a reimaginação do cosmopolitismo que atravessou tão particularmente as artes argentinas em vários momentos do século XX. Basta pensar na literatura portenha (não no Borges dos poemas de amor a Buenos Aires, mas no dos exercícios ficcionais quase abstratos) ou nas vanguardas pictóricas que tenderam à abstração – Grupo Florida nos anos vinte, Movimiento Madí nos quarenta ou os artistas ligados ao Instituto Di Tella nos sessenta. Na literatura ou nas artes plásticas, afirmar-se cosmopolita era defender a autonomia da arte, resistir à folclorização e ao olhar da metrópole que sempre exigiu – e continua exigindo – que a arte latino-americana se afirmasse não por si mesma, mas unicamente por seu conteúdo social. Por outro lado, tratava-se também de um cosmopolitismo eurocêntrico, fruto das migrações em massa de europeus do início do século e do genocídio anterior que destroçou a herança cultural negra e indígena do país junto com os homens, mulheres e crianças dizimados.

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No cinema, essa defesa de uma arte autônoma e cosmopolita se fez notar em uma empreitada como a de Invasão (Invasión, 1969), o mítico filme de Hugo Santiago com roteiro de Borges e Adolfo Bioy Casares que procurava se afirmar – no dizer de Edgardo Cozarinsky – como “puro objeto de ficção”, como um “objeto cinematográfico tão irrecuperável para a alegoria como para a crônica”. No entanto, é o mesmo Cozarinsky que enxerga que, diferente da literatura – e da pintura –, “o cinema não admite semelhantes possibilidades de despojamento: na imagem, todo elemento contingente produz um efeito de conotação, tão inevitável como difícil de controlar”. É assim que Invasão, embora afirme sua ficcionalidade absoluta, é também um filme sobre a geografia de Buenos Aires, sobre os corpos envelhecidos que a habitam, uma obra inevitavelmente atravessada pela História. Em toda a duração de La Flor, mas especialmente no terceiro episódio, essa verve cosmopolita portenha é ora assumida como potência – na afirmação virtuosa da capacidade de se dedicar com altivez a qualquer gênero consagrado do cinema –, ora deslocada com ironia paródica – só o que vemos da pretensa volta ao mundo do filme para retratar as histórias individuais das espiãs são umas poucas cenas externas, e, a rigor, a Berlim oitentista pode ter sido filmada ali, num canto qualquer da província de Mendoza –, ora visada criticamente, como no monólogo do cientista Dreyfuss, o prisioneiro das espiãs, que, antes de reconhecer o céu do hemisfério sul, se pergunta onde está e, após descartar os países europeus que conhece, conclui que deve estar na Romênia, já que não há nem sombra de um negro ou de um índio por perto.

Llinás se serve dos poderes de “nossa incompetência criativa em copiar” (como escreveu Paulo Emílio Salles Gomes sobre o cinema brasileiro) no mesmo movimento em que desconfia profundamente dessa dependência em relação aos parâmetros da metrópole. Há tanto a paródia ligeira do espião metido a Don Juan “Mac The Knife” – deliciosa piada com os filmes de James Bond – quanto algo mais ambicioso: uma reinvenção contemporânea, turbinada pela tradição literária argentina, do entrecruzamento de cinema e literatura que a modernidade cinematográfica europeia (Alain Resnais à frente) um dia tanto perseguiu.

De forma diametralmente oposta em relação aos dois primeiros episódios – porém, no fundo, coerente com o conjunto –, a quarta história assumirá em sua plenitude a crise modernista da narração, mas não abdicará, nem um minuto sequer, de fazer da autoconsciência um outro território imaginativo. Em um pretenso conflito com o projeto, o diretor se duplica em personagem, abandona as atrizes e parte em viagem para filmar árvores no interior e redescobrir o filme, até que sua fuga é interrompida por elas, convertidas em uma gangue de bruxas implacáveis. A narrativa se converte por algumas horas em ensaio, mas sem nunca deixar de tomar partido pela ficção. Diferente da teoria estética de Macedonio, destilada ao longo de páginas e páginas de prólogos, a de Llinás se resume a um conjunto de planos de ipês rosados e a uma frase: “quando se filma uma árvore sozinha, não acontece nada. Quando se filma alguém do lado dessa árvore, acontece algo”.

Trata-se menos de modéstia, no entanto, do que de uma consciência de que, se há teoria em La Flor, esta se espalha pelas imagens e por toda a duração do filme – e não apenas se concentra em seu interlúdio ensaístico. Muito longe da retórica da honestidade que faz com que tantos filmes contemporâneos interrompam o fluxo narrativo e se voltem sobre si mesmos no afã de internalizar a crise – apenas para anulá-la a golpes de eloquência que terminam por salvaguardar o autor e colocar as relações em seu devido lugar, justo, autêntico, responsável, verdadeiro –, Llinás embarca em uma autoficção delirante da qual a desonestidade e a irresponsabilidade não estão desterradas. O final do episódio, um conjunto de retratos das quatro mulheres que as filma como se estivessem “fora” da ficção, como se habitassem os bastidores, é doce e bonito na mesma medida em que é violento. Valeria, filmada à distância, se recusa a desnudar os seios, até que cede, ainda um tanto contrariada. Há mais risco e honestidade no gesto de Llinás de manter esse brevíssimo plano em meio à montagem do que em tantas outras empreitadas autorreflexivas tomadas pela má consciência – justamente porque o filme não nos rouba a possibilidade de considerá-lo um canalha.

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O quinto episódio é um desafio à consistência do conjunto, na medida em que beira o excesso na direção da ruindade. Ao filmar um remake de Une Partie de Campagne (1946, Jean Renoir), Llinás se arrisca ao quase se deixar levar inteiramente pela dicção paródica. A transposição para os pampas da obra-prima de Renoir arruína climas sem criar outros, reduz as inúmeras nuances do desejo – o cerne de Une Partie de Campagne – a uma caricatura um tanto grosseira. O que o salva de não ser apenas um capricho é justamente o abandono da tentativa de remake (ao transformar a corte amorosa em um duelo musical entre aviões ao estilo esquadrilha da fumaça), mas também sua relação com o conjunto. De forma paradoxal, é precisamente no breve episódio em que as atrizes estão ausentes da tela que o filme melhor transparece um de seus traços constitutivos: o jogo de sedução e repulsa, de desejo e contrariedade entre um homem – duplicado no olhar da câmera – e quatro mulheres. É nesse “rastilho indiscreto das imagens” que encontramos a força do gesto.

No sexto e último episódio, elas retornam como prisioneiras em fuga no deserto dos pampas. Embora breve, é nesse episódio que o pensamento cinematográfico de La Flor atinge com mais força a própria textura das imagens: como veremos na desmontagem da gambiarra nos créditos finais, o conto inteiro é filmado a partir de uma câmara escura feita com lona preta e um filtro de pele de boi, o que provoca uma visualidade intrigante, turva, que abriga todo o mistério intrínseco ao ato de filmar alguém. A insólita materialidade dessa narrativa contada com cartelas de cinema silencioso é também um pequeno ensaio sobre o que significa se apropriar de uma forma cinematográfica na América Latina.

No fundo, é como se as quatorze horas de La Flor contivessem tanto o Romance da Eterna quanto Adriana Buenos Aires, tanto a escola do romance ruim quanto a do romance bom, tanto Griffith quanto a paródia terceiro-mundista, tanto as potências do cinema narrativo quanto sua dissolução crítica. Ou como se Llinás realizasse, muitas décadas depois, a promessa macedoniana do “romance ruimbom, primeirúltimo em seu gênero”, no qual se aliaria “o ótimo do ruim de Adriana Buenos Aires com o ótimo do bom do Romance da Eterna”. La Flor é a refundação desse insólito gênero ruimbom, a narrativa dos trânsitos fecundos entre um e outro.

Mas para isso é preciso enxergar na carne das imagens um pouco mais do que a confirmação do gênio de quem as concebeu. Novamente Gilda de Mello e Souza: “a intenção do criador é precária diante da autonomia incontrolável das formas”. Ao contrário do que possa parecer, não há melhor homenagem documentária a Pilar, Valeria, Laura e Elisa do que oferecer a cada uma a oportunidade de se transformar em fabulosas personagens da mais pura ficção: uma estudante inglesa muda que se torna espiã e troca de lado em meio à Guerra Fria; uma assassina fria e calculista que esconde um amor por seu parceiro de crime; uma funcionária do alto escalão da espionagem soviética; uma guerrilheira sanguinária nicaraguense convertida em Joana D’Arc dos trópicos. Não há melhor maneira de pensar a história do cinema latino-americano do que inventar uma intriga de espiãs internacionais que dá a volta ao mundo sem sair do lugar. Não há melhor forma de ser contemporâneo do que filmar o deserto eterno dos pampas através de uma carcomida pele de boi. Em um filme tão absurdamente recheado de ações insólitas, intrigas fantásticas, aventuras cinematográficas, não há homenagem mais incisiva e bela à potência da imaginação do que, em meio aos créditos finais de uma narrativa que aparentemente já acabou, filmar por longos minutos um rapaz sentado em uma cadeira de produção no meio do mato depois que até a equipe do filme já foi embora. Mas para fazer com que algo aconteça ali, naquele plano perfeitamente banal de bastidores, é preciso ter despertado no espectador, ao longo de horas e horas, noites e noites, o desejo incontrolável da ficção. Para que a bomba exploda onde menos se espera, é preciso espalhar o pavio por toda parte.


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