A imagem em jogo

O Inquilino (2010) é uma das obras co-dirigidas pelo cineasta Cao Guimarães com a artista visual Rivane Neuenschwander – parceria que inclui também trabalhos como Quarta-feira de Cinzas (2006) e a obra-irmã Sopro (2000). A diferença de titulação é proposital, senão propositiva: Cao Guimarães tem como marca de sua trajetória um trânsito entre a galeria e a sala de cinema – inclusive com uma produção frequente (e de altos e baixos) em longa-metragem; já Neuenschwander tem, no vídeo, matéria de uma fração delimitada de sua… CONTINUA

Todo dia é um ato

Certa vez um comediante estadunidense disse: “Se você se lembra dos anos 1960 é porque não estava lá”. Para além da evidente provocação com a nostalgia (artística, revolucionária), há na blague uma traição saborosa, pois, para a maioria dos que lá não estiveram, o espírito da época é inapreensível em sua profusão de sentidos, contradições, possibilidades e angústias, especialmente o turbilhão em torno de 1968. Neste ano central para o mundo contemporâneo, os movimentos sinfonicamente dessincronizados em várias partes do Ocidente pontuavam uma promessa nunca… CONTINUA

Do Chile para outro lugar

“Marijuana ou morfina?”: esta era uma das piadas de Pablo Neruda, ao receber os amigos. Em vez de potes com as inscrições de “sal” e “pimenta”, colocava no saleiro e no pimenteiro as palavras “maconha” e “morfina”, como se oferecesse drogas pesadas, que ajudassem na digestão. Passam-se os anos, Neruda morre e o corpo foi exposto em uma de suas casas – aprumado, de terno, no caixão. A poucos passos dali nascia a noite chilena, que havia recebido Augusto Pinochet doze dias antes, em setembro… CONTINUA

O gozo interrompido

Seria possível invocar as glórias heroicas da história do cinema para lamentar a que ponto chegamos com Dunkirk. Para ficar no terreno das superproduções em 70mm e num dos ídolos de Christopher Nolan, bastaria rever a sequência da tempestade de A Filha de Ryan (1970), para a qual David Lean teve de esperar um ano inteiro na costa irlandesa, com a equipe e o elenco, antes de poder filmar. Enquanto Lean aposta no encontro irrepetível entre as forças da natureza e as do cinema, transformando… CONTINUA

Dar a ver: entrevista com Adriano Aprà

Adriano Aprà é uma figura polivalente, que atua desde o final da década de 1950 em diversas das esferas cinematográficas. Foi um dos mais renomados críticos italianos da geração posterior à neorrealista, sendo um dos nomes mais participativos das transformações que ocorreram no cinema de seu país na segunda metade do século XX; teve uma atuação acadêmica exemplar e foi editor de uma quantidade ímpar de coletâneas e publicações refletindo sobre a arte cinematográfica; foi curador do Festival de Pesaro por dez anos, onde consagrou… CONTINUA

Sobre medalhões e excluídos

Antônio Pitanga viveu a Nova Era no cinema brasileiro. Nascido em Salvador, 1939, o fato lhe garantiu um batizado cósmico: estava no lugar certo, na hora certa. Anos depois, no meio de uma turma de loucos, sob as bênçãos do crítico Walter da Silveira, abandonou o sobrenome seco, o sobrenome comedido, o sobrenome funcionário público – um mero “Sampaio” – pelo “Pitanga”. Da árvore frondosa e carnuda, tropical como todos deveriam ser. Se Oswaldo Massaini produziu O Pagador de Promessas (1962), na Boca do Lixo… CONTINUA

Baudelaire e o Diabo na terra da praia

Lívido (Pedro Henrique Ferreira) tem o corpo desconjuntado, o coração empedrado, a alma atormentada: um vulcão guardado sem manejo de suas lavas reprimidas. É um personagem anacrônico e deslocado ao pé de uma juventude afetiva que jamais olharia para uma Igreja com seus grandes olhos vidrados, cheios de indiferença e curiosidade. Um Homem e seu Pecado é menos sobre o incesto em si do que sobre o pecado como reação ao mundo. Um affair, a cidade cartão-postal, o trabalho, os amigos no bar, o hobby… CONTINUA