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A sensação de um ar irresoluto

“A sensação de um ar irresoluto”. Com essa frase, Mercedes Gaviria termina seu primeiro longa-metragem. A sentença é antecedida por outras, afirmativas, enunciadas em voz over, diante de uma paisagem bucólica. Entre elas: “Eleger a distância perfeita” […] “O ponto de vista” […] “A beleza do ambíguo” […] Amar a contradição”. A Calmaria Depois da Tempestade (Como el Cielo Después de Llover, 2021) suscita muitas perguntas, algumas sem resposta, outras que a cineasta opta por não responder e ainda as que ela parece nem ao menos fazer a si mesma. É sobre o fio tênue dessa ambiguidade que o filme revela um pouco mais do que parece querer a princípio.

Arte, vida e infância

Victor Gaviria é um importante cineasta colombiano, conhecido por realizar filmes ficcionais brutais sobre questões sociais e trabalhar com pessoas sem formação em atuação, geralmente advindas dos mesmos contextos sobre os quais os seus filmes versam. Mercedes Gaviria, sua filha, cineasta e desenhista de som formada em Buenos Aires – entre outros filmes, fez o som premiado de As Filhas do Fogo (Las Hijas del Fuego, 2018), de Albertina Carri –, para realizar seu primeiro documentário de longa-metragem como diretora, escolhe o pai e seu cinema como personagens. O cineasta está prestes a começar a rodar seu mais recente filme A Mulher do Animal (La Mujer del Animal, 2016), que conta uma história baseada em um caso real: Margarida, sequestrada aos 18 anos, tornou-se esposa de um temido estuprador na periferia de Medellín. Mercedes, recém formada em cinema, após anos morando em Buenos Aires, retorna a Medellin, a sua casa de infância, para trabalhar como assistente do pai nas filmagens.

Para tratar de temas éticos caros tanto à história do cinema quanto ao feminismo contemporâneo, como consentimento, por exemplo, a cineasta realiza um intrincado trabalho de montagem estabelecendo uma narrativa que quase indistingue arte e vida, cinema e intimidade, e que o filme leva às últimas consequências. Surge a primeira pergunta que Mercedes parece não se colocar: existe um limite ético das relações que podemos estabelecer a partir desta relação entre arte e vida, sobretudo quando trabalhamos com imagens domésticas?

Mercedes Gaviria nos apresenta aos poucos, entre imagens atuais e de arquivos familiares, um mundo arquetipicamente organizado em torno do masculino e do feminino. O pai, diretor de cinema, é o que grita ação no set de filmagens, filma a família no ambiente doméstico, é amado e respeitado socialmente, em suma, detém o poder. A mãe, sempre filmada e nunca filmante, nas imagens feitas pelos dois Gavirias cineastas, pai e filha, aparece invariavelmente em contexto familiar, restando como meio expressivo um diário escrito para a filha enquanto ainda estava na barriga: “Você vai ter um pai muito especial na vida”, entre outras frases confessionais de uma mulher infeliz no casamento. Gaviria filha nos apresenta uma família à sombra daquele homem assertivo, assombroso em afeto e importância social e doméstica. Ela quer fazer um filme que seja a síntese dos dois mundos: entre o set de filmagem paterno e o diário materno, e encontra nos vídeos caseiros, cinema e vida, seu mote de trabalho.

O pai e a mãe não são personagens, mas estereótipos com os quais a cineasta joga para criar as suas narrativas. Nunca chegamos a Victor como sujeito, apesar da proximidade devassa de muitos planos e das sequências nas quais ele fala brevemente sobre suas ideias de cinema e de sociedade; tampouco a Marcella, a quem o filme relega a um papel secundário de esposa e mãe infeliz. Temos acesso às construções que a filha cria com a abundância das imagens e as poucas palavras de ambos. Já a imagem de Mercedes é invariavelmente a da infância. Não vemos seu rosto adulto ao longo dos 75 minutos de filme. No início vemos a metade inferior do seu corpo adulto aguando plantas enquanto fala ao telefone, e no final, a diretora está de costas para a câmera, em um plano geral. Ao contrário, em alguns momentos de maior violência, o corte da montagem, o equivalente a um contraplano, é para um rosto infantil, ora chorando, ora fazendo graça para a câmera do pai em ambiente doméstico. Em uma das sequências finais, Mercedes coloca explicitamente o espectador sob um ponto de vista infantil: câmera no banco de trás do carro, assistindo a uma briga entre o motorista, seu irmão, e o carona, seu pai, pelo vão das poltronas. De repente a relação entre cinema e vida na qual a cineasta imbrica o seu filme sugere mesmo o ponto de vista de uma criança que não distingue as histórias contadas por seus pais antes de dormir e o mundo que testemunha. Mais uma pergunta que Mercedes parece não se fazer: é ético construir essa narrativa documental complexa entre arte, vida, cinema, poder, consentimento pela perspectiva de uma criança?

Meu pai estuprador

O ponto alto do filme acontece a partir de uma cena anunciada logo de início. Ao combinar com seu pai que seria sua assistente pessoal nas filmagens de A Mulher do Animal, Mercedes comenta que leu o roteiro, mas que tem dúvidas em relação à filmagem das cenas de violência sexual. O momento chega. Acompanhamos a subida da equipe ao morro que será uma das locações do filme de Victor Gaviria. Vemos de costas a atriz (que na vida real é enfermeira), por uma câmera que entendemos ser a de Mercedes, como uma tomada de making of. De repente, não mais que de repente, presenciamos uma cena de estupro. Apesar da quase imperceptível atmosfera de violência iminente que o filme estabelece desde o início, a surpresa com a qual somos pegos pelas imagens intensifica o choque, já que a narrativa não nos levou até ali, como um filme de ficção faria. Um homem entra com uma menina em um barraco filmado pelo que parece ser a câmera do filme de ficção, e logo depois o plano muda e se torna muito próximo daquele mais temido: o do ponto de vista do estuprador. Como se estivéssemos ao lado do personagem, mas ainda de alguma forma escondidos, vemos a mulher por baixo, em um ângulo levemente inclinado, da cintura pra cima até o rosto. O tempo de cena acompanha as ameaças do homem e a expressão de horror da vítima, sem corte. Sentimos a respiração do estuprador no nosso cangote. Ouvimos alguém falar: “rasga a blusa dela.” A atmosfera densa é captada em um tom realista desconcertante. A câmera se movimenta levemente para cima e para o lado e vemos Victor Gaviria muito próximo da cena e, ao lado dele, um homem segurando uma câmera, na perpendicular, que parece fazer um zoom, provavelmente no rosto do personagem. A câmera pela qual estamos vendo tudo volta para o enquadramento inicial até que o diretor grita: “corta!”. O ator sai do barraco onde a filmagem aconteceu em silêncio, seguido da atriz, amparada por alguém da equipe. Victor Gaviria fala com o cinegrafista alguma coisa sobre o equipamento e se retira logo atrás.

Apesar da atmosfera de horror que A Calmaria Depois da Tempestade nos faz vivenciar, uma pergunta simples e fundamental não para de ecoar: qual Gaviria filmou a cena que acabamos de ver, o pai através de uma segunda câmera que não a que vimos em cena, ou a filha, que fazia o making of? “Mas o que não vemos / é quem dirige o olhar”, repetem incansavelmente Godard e Anne Marie Miéville em Comment Ça Va (1971). Fica o gosto amargo na boca. Após décadas de discussões éticas sobre enquadramento e ponto de vista no cinema, sobretudo em relação a cenas de violência e, ainda mais especificamente, às de violência contra as mulheres, é no mínimo leviano que Mercedes Gaviria filme esta cena sem explicitar quem está por trás da câmera: se é o filme do seu pai, que ela narrativamente acusa de violento, ou se é o seu, que é o cinema ao qual ela parece contrapor o primeiro. Em última instância, é o enquadramento que vemos, e a cineasta assume que os dois pontos de vista, o do seu pai e o seu, podem mesmo se confundir. Elimina-se a questão do “ponto de vista de Deus”, onisciente, do cinema clássico e do documentário jornalístico, e também o “olhar corporificado”, do cinema contemporâneo. Não sabemos da onde parte o olhar da cena mais violenta do filme. Outra pergunta que Mercedes não se coloca: é ético, em um documentário, construir uma narrativa sobre uma cena de violência em que não sabemos quem olha?

Em seguida, a atriz do filme aparece chorando do lado de fora do barraco. Arte e vida: a cena foi tão cruel que ela se sentiu violentada de verdade. Mas alguém grita: “rodando!” e nos damos conta que é a personagem chorando em cena. Corta e Victor está bebendo alguma coisa com o rosto no escuro, dentro do barraco onde aconteceram as filmagens, muito semelhante ao personagem estuprador da cena anterior. Um momento mais poético e ela relaciona por imagem e texto o pai a um touro. Depois, uma imagem atual do pai bêbado em uma festa com amigos, olha para a câmera e diz insistentemente para a câmera: “Mechi (apelido de Mercedes), vem cá Mechi…”, imagem que evoca no espectador a única imagem de “Mechi” que tivemos até agora: ela criança. Chegamos mesmo a cogitar se não se trata de um filme sobre abuso infantil. É por meio deste tipo de estratégia de montagem, que se repete ao longo de todo o documentário ensaístico, que o filme chega realmente muito próximo de acusar Victor Gaviria de estupro. Mas não o faz. E aí se estabelece a ambiguidade que a cineasta diz amar: se ela diz que o pai é um estuprador, mesmo que seja pela analogia de que filmar uma cena de estupro já é estuprar, ela faz uma acusação grave que não consegue sustentar; se não diz isso, não diz nada, e não tem o filme impactante que quer. Ela parece não saber ao certo o que fazer com aquele personagem que construiu, que não é exatamente o pai amoroso da sua infância, mas também não é o monstro que ela precisava para o filme. No fim, talvez Mercedes seja a criança se penteando no espelho que de repente descobre que o pai não é um herói, mas um homem pelo qual perpassa o machismo e a misoginia da nossa sociedade. E ela não sabia disso quando foi acompanhá-lo nas filmagens de A Mulher do Animal?

Poder e consentimento

Aos poucos vamos percebendo o desejo de Gaviria em filmar o pai pelas costas, atenta a sua vulnerabilidade. A diretora parece às vezes mesmo orgulhosa em ter acesso à intimidade daquele homem que ela mesma compara a um touro na chuva ou ao Animal de seu filme. A diretora constrói Victor Gaviria como um homem forte que exerce poder, sobretudo com o seu olhar, sua câmara-arma-falo apontada para todos, sua capacidade de tomar personagens para si e contar suas histórias pelo seu ponto de vista, inclusive os personagens da família. E Mercedes quer tomar este lugar: se os vídeos da sua infância são o olhar do pai sobre si, agora é ela quem o tem na mira da sua escopeta.

A cineasta assume o jogo de poder do pai. A câmera ainda pode ser uma arma, independente de quem a manuseia, e Mercedes Gaviria não tem medo de usá-la. “Mathias nos culpava [a cineasta e ao pai] pelo gesto violento que é filmar o outro”. A cineasta compartilha com o pai esse segredo em comum: o poder que é filmar o outro. O filme repete o gesto de filmar Victor cineasta e Victor pai, uma dupla vida da qual Mercedes participa, é cúmplice. Mais do que isso, Mercedes parece lançar o seu cinema contra o cinema do pai. Um cinema ensaístico, pessoal, não violento, contra um cinema abusivo, agressivo, masculino. O filme chega a sugerir a morte do pai, que não se consuma, em uma analogia de montagem com cena de A Mulher do Animal. A morte de um cinema, o surgimento de um novo. Cotejando os cinemas seu e de seu pai, a cineasta afirma que para o pai os vídeos domésticos eram só uma forma de acumular recordações (o que não é pouco), mas que estava encontrando naquelas imagens cotidianas outra forma de fazer cinema.

O filme de Mercedes Gaviria não se autointitula feminista, mas pode ser lido apressadamente nesta chave: uma jovem cineasta que segue os passos profissionais do pai e denuncia o machismo implícito, ou explícito, em seu cinema e sua vida pessoal. Ainda propõe um novo cinema, pequeno, caseiro, pessoal (feminino?), como um contraponto ao cinema violento e masculino do pai. Mas talvez esses dois cinemas, assim como Mercedes e Victor, se aproximem mais do que se afastem. Consentimento é uma categoria ética importante para o feminismo, assim como para o cinema. Se o cinema de Victor Gaviria é violento, ele não o é sem consentimento, tanto das atrizes quanto do espectador. As atrizes sabem o jogo que estão encenando, e não poucas vezes a cineasta nos mostra imagens do pai conversando com a equipe, convencendo as atrizes em relação às filmagens, argumentando. Da mesma forma, o pacto com o público é explicito, sabemos o que estamos vendo: uma ficção sobre violência sexual. Já em relação a seu ensaio fílmico, Mercedes faz questão de trazer a sua narrativa a falta de consentimento do irmão ao ser filmado. Em uma cena implicitamente violenta, ela insiste em filmar Mathias enquanto ele repete que não quer ser filmado. O mesmo acontece com a mãe, da qual a diretora usa as imagens de arquivo, e mesmo a filma na atualidade, ao passo que narra em determinado momento do filme que ela nunca gostou de ser filmada. A questão do consentimento está claramente posta em A Calmaria Depois da Tempestade. Logo nas primeiras imagens, ainda em Buenos Aires, vemos a imagem da fachada de uma casa e ouvimos uma voz que diz: “você não pode filmar uma casa sem autorização”, ao que Mercedes retruca. Victor retribui os anos de imagens que extraiu da filha e se entrega ao seu olhar como poucos fariam. Foi filmado bêbado, sem camisa, dormindo, fumando um baseado, filmando uma cena de violência, sendo comparado a um estuprador, de forma consentida.

Também são explícitas as imagens que a cineasta traz para seu filme e as imagens ausentes. Vemos mais de uma vez Victor filmando a si mesmo no espelho, nos vídeos caseiros, junto às imagens da família. Vemos ele filmando, falando com os atores, falando com “Mechi” sobre suas ideias sobre as filmagens e o cinema. Sabemos quem está filmando aquelas pessoas, de onde vem aquele olhar. Mas não conhecemos o rosto de Mercedes adulta, não sabemos ao certo a sua ideia de cinema, a não ser que “encontrou nas imagens de crianças crescendo e de uma mulher com cólica a sua forma de fazer filmes”. Não sabemos quem filmou a chocante cena de estupro que acabamos de assistir, mas sabemos quem optou por apresentá-la, daquela forma, em um documentário ensaístico.

Talvez seja um choque geracional. Para quem nasceu sendo filmado e empunhando câmeras, questões como consentimento, ou as diferenças entre encenação e vida, podem ser um tanto nebulosas mesmo. Mas se o cinema de Victor é violento pelo que mostra, o de Mercedes pode ser pelo que não mostra, ou pelo que sugere. É na indeterminação de quem empunha a câmera que os cinemas se encontram? Será esta a sensação de um ar irresoluto? É possível fazer cinema sem sujar as mãos?


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