Reina a felicidade plácida no reflexo de um freezer gourmet do Leblon

Um Filme de Verão começa com um plano-sequência andando com câmera na mão pelos becos de uma favela em contra-plongée. Muita poluição visual em primeiro plano, mas o céu azul cortante está sempre lá relegando um respiro harmônico aos nossos olhos. A câmera parece caminhar a esmo, virando em becos aleatórios, mas só parece – ela, na verdade, segue uma rede de cabos e fios que conectam aquele espaço. Fisicamente e virtualmente. Um Filme de Verão é um filme em rede, é um filme que… CONTINUA

“Meu amor é assim, bruto e sincero demais”

Poucas coisas podem te preparar para Vermelha. Abrindo o texto assim, pareço falar de uma obra de absoluta novidade, inovação, frescor e ousadia. É isso, mas também não é. O primeiro longa-metragem de Getúlio Ribeiro te instala numa ambiência reconhecível, tanto narrativa quanto esteticamente. Começa com dois homens na faixa dos 70 anos a baterem laje numa casinha simples de bairro. Falam amenidades, discutem quanto mede um alqueire e um hectare e qual a melhor lua para cortar cabelo. Nada parece fora do lugar, e… CONTINUA

Contraplanos

Há algo de incongruente e simplista na cobrança que os bastiões da moral e cívica possam fazer de que haja em Desvio uma representação mais politicamente branda do processo de indulto, ao mostrar o protagonista Pedro (Daniel Porpino) participando de um assalto a um banco – até parece que o detento deveria ir festejar o natal com a família, e depois voltar para a cela sem maiores complicações (como pede a polícia), plenamente redimido, seguindo as prescrições do Código Hays, de uma novela da Rede… CONTINUA

Carcaças

Tragam-me a Cabeça de Carmen M. é um filme de carcaças. Do corpo largado da protagonista encarnada pela codiretora Catarina Wallenstein, passando pela imagens usadas nos recortes neotropicalistas na casa da mulher, os trechos de filmes hollywoodianos clássicos com a presença da “pequena notável”, o incêndio do Museu Nacional, as canções esparsas executadas em certas cenas, o cenário desolado onde se passa o filme dirigido por uma diretora controladora presa a uma cadeira de rodas (Helena Ignez, apenas vestígio do vigor cinematográfico moderno brasileiro), são… CONTINUA

Adiante

A relação entre corpo e linguagem é da natureza do tato. Um corpo tateia no mundo as matérias linguísticas buscando moldar um espaço para si. O mesmo pode acontecer ao contrário: a linguagem, também, toca nossos corpos delimitando, nele, determinadas formas. Essas formas distintas, vez ou outra, acabam por se esbarrar gerando uma fricção entre uma obra que envelhece com enorme rapidez, sem nunca assumir sua validade – a muito expirada –, insistindo em forjar a roupagem do novo (mas, justamente, um conceito de “novo”… CONTINUA

O dorso da imagem

Seus Ossos e Seus Olhos é um filme que trabalha a eminência do Verbo e a caligrafia do Corpo pela chave do antinaturalismo. Na história da pintura, o antinaturalismo, herança do período bizantino, se consolidou, por um espaço irreal, sem profundidade, posturas não muito naturais, composições simples porém agudo expressionismo das imagens. Assim como na arte pictórica, todo filme dessa natureza põe em xeque o que vem a ser natural ao cinema e à vida. Aqui, há não só um aprofundamento e uma radicalização dessa… CONTINUA

Tragédia viva em esqueleto oco

A noção de dispositivo na história recente do cinema virou uma espécie de conceito-coringa, jargão e palavrão, que serve tanto para assinalar estratégias de abordagem, estruturas narrativas, o uso repetido de algum recurso formal e assim por diante. Grosso modo, são as regras do jogo: são procedimentos que o filme estabelece de saída, aquilo que dispõe em cena de antemão, um disparador que aposta em seus desdobramentos, e mesmo na perda de seu controle, como uma arbitrariedade primeira que norteia um processo ainda imprevisível. No… CONTINUA

Canção do exílio

A história é conhecida por alguns: em um fétido porão de mais um navio negreiro cruzando o oceano, havia entre os futuros escravos que desembarcariam no Brasil, um rei africano. Monarca em sua terra, trabalhou em todas as parcas horas livres para comprar sua carta de alforria e se livrar do cativeiro. Não parou de trabalhar até libertar seu filho e o restante da tribo. Chico-Rei agora era também católico, devoto de Nossa Senhora do Rosário. Volta a imperar em nova terra, distante do velho… CONTINUA

Cinema de reinvenção

“O oposto de coragem, curiosamente, não é o medo, é a covardia. Porque, ainda com medo, a gente anda. Medo é necessário, é atenção. É possível ter medo e coragem morando lado a lado, dentro da gente. Agora, covardia não. Covardia paralisa. Covardia anula. ‘O que o cinema quer da gente é coragem.’, seja coragem para fortalecer o que tiver de ser fortalecido; seja coragem para romper com o que tiver de ser rompido; seja coragem para revirar, virar e, de novo, revirar tudo. mas:… CONTINUA

Isto não é um filme político

1. Política como colheita Nem à frente, nem soterrado pelos cataventos do tempo. A Mostra de Tiradentes não poderia ter um timing mais preciso ao abrir sua programação na praça da cidade. Empate é uma espécie de transmutação fílmica das já históricas últimas palavras libertas de Luiz Inácio: “eles” não podem prender Lula, por que suas ideias estão por aí, semeadas / “eles” podem até matar Chico Mendes, mas não destruir o legado que plantou. O filme de Sérgio de Carvalho (e adicionaria Beth Formaggini)… CONTINUA