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Isto não é um filme político

1. Política como colheita

Nem à frente, nem soterrado pelos cataventos do tempo. A Mostra de Tiradentes não poderia ter um timing mais preciso ao abrir sua programação na praça da cidade. Empate é uma espécie de transmutação fílmica das já históricas últimas palavras libertas de Luiz Inácio: “eles” não podem prender Lula, por que suas ideias estão por aí, semeadas / “eles” podem até matar Chico Mendes, mas não destruir o legado que plantou. O filme de Sérgio de Carvalho (e adicionaria Beth Formaggini) é sobre a retomada de um espírito, outrora adormecido, de luta dos seringueiros que, ao final da década de 1980, vinham mostrar ao mundo que talvez fosse possível explorar a natureza sem devastá-la por completo, antes mesmo da ECO-92 institucionalizar a coisa toda, antes mesmo da palavrinha sustentabilidade carimbar qualquer embalagem – de caixinha de suco a desodorantes –, ali nos anos 2000, nos fazendo crer que assim salvaríamos o mundo juntos. Quase chegando aos anos 2020, o processo de desmatamento no Acre volta com força e assim a necessidade de se re-unir.

Desse quadro temporal de Empate espelha-se o quadro brasileiro (ou vice-versa, como queira): depois de décadas de opressão (anos 1960/70) chegou a “resistência” – ou apenas a “existência de uma alternativa” (meados da década de 1980) – que trouxe algum conforto mínimo que nos descansou a ponto de, relaxados, vermos a coisa estrondar bem aos nossos olhos incrédulos (2016-2019). Os principais personagens do filme são aqueles que estavam ao lado de Chico Mendes nos empates até 1988. Empate mais que uma manifestação de força, era uma estratégia onde os ativistas seringueiros formavam uma corrente em torno de uma área prestes a ser devastada. A comunidade geralmente ia em peso: dos mais idosos, passando por homens e mulheres adultos até as crianças, estas às vezes ficavam na frente para evocar algum sentimento nobre sobre os homens armados que ameaçavam o terreno. Logo no começo do filme, vemos uma mulher contando sobre um episódio desses com as crianças. Nunca vemos qualquer empate, afinal ele não mais acontece. O filme é esse instante pré-guerra, onde já se intui pelo novo governador e pelo novo presidente do país que a terra nativa provavelmente não será respeitada. É um filme de pouca ação efetiva, pois anterior – de preparação de terreno, de volta às origens sindicais da fala, do encontro, da organização.

Um plano recorrente que parece querer sintetizar a visão política da comunidade é um plano de drone em ângulo reto que chapa a imagem, desnivela o relevo humano do verde da mata e do arenoso da terra batida, funde figura e fundo como uma coisa só. Quando se desmata, se desmata flora e gente. Perspectivas se fundem. Um desses planos de drone enquadra um descampado com um tronco enorme, deitado morto, como num enterro sem caixão. Outro plano intermitente é o plano geral bem aberto que, quando enquadra os pastos, boa parte da composição se dedica ao cinza nublado quase sem informação do céu, como se a morte passasse pelo quadro, junto a vida daqueles poucos gados reis do solo. São os planos de respiro entre muita fala e reunião que sintetizam e espiralam essa angústia apocalíptica.

Empate retoma registros jornalísticos dos anos 1980 para estabelecer esta ponte entre dois momentos: a peleja que reverberou internacionalmente e a preparação para a volta de um momento aparentemente bem similar. É como se Sérgio entendesse a importância dos veículos de mídia para ecoar a causa há trinta anos e corresse atrás agora para, novamente, jogar o holofote nos acontecimentos. A ideia matriz do filme-denúncia. Porém não é a captura de um grande momento da História, mas entreatos. É o olhar rememorativo voltado ao futuro imediato. É objeto de luta, alarme – até mesmo histeria com seus CAPS LOCKs – para os próximos meses, não sei se documento histórico das formas. Acho difícil. Mas nesse caso, importa pouco não só o que acho, como sua perduração às décadas. Importa, o filme parece gritar, é que nos aproximemos desse estado nacional tão isolado.

Para além dos planos abertos e de drones citados acima, a câmera procura sempre o verbo, a face ou a consequência da devastação. Às vezes esses três elementos se misturam. Como filmar uma calculista demolição de um lar? Aqui, a decupagem começa pelo close dos vestígios e depois se afasta a um plano geral dos destroços – paredes destronadas de sua verticalidade – para voltar ao que importa, um close da reação descrente de quem morava ali, o filho que construiu aquilo tudo com as próprias mãos e sua mãe que não consegue verbalizar a dor, como se precisasse.. Certas coisas não escapam ao óbvio. Certas obviedades não perdem seu impacto.

Mas qual seria o rastro desse impacto?

Impacto, choque, violência, força são palavras que recorrem a um entrelaçamento. Não simples, puro contexto, mas recombinação fatorial de elementos visuais e estruturais de uma narrativa ou de um jogo formal. Crueza pode ser uma força também, mas às vezes é só um apontamento travestido. O cinema direto pode ser cinema de intervenção de força ou pode desandar ao mais banal jornalismo de aferição. Empate oscila entre ambos. Gosta de um maniqueísmo desde o primeiro plano que um cinturão (quase uma figura viva) entra em cena e seu dono importuna uma mulher, indicando-nos a distância silenciosa que deveríamos delimitar ali. O antagonismo entre a riqueza das botas do caubói e a simplicidade do descalçado é a indicação acertada de um conflito de classes (e de uma mentalidade de consumo), mas a metáfora morre na página três. E o mundo nonsense e cruel da vaquejada que assistimos en passant vira reafirmação argumentativa para a defesa dos descalçados.

É curioso como este filme-lacuna de um presente vivido, limbo entre passado e futuro possa ser, ao mesmo tempo, tão imediatista. Mesmo que a guerra perdure anos, Empate parece sempre nos apontar o dedo para esta primeira batalha que insurge agora: “acordem!”. É um filme exclamativo. A exclamação tem seu lugar na história do estilo, mas a eloquência aqui é um justaposto inverso do famoso cachimbo de Magritte: “isto é um filme político e não há nada mais político que a urgência dessas batalhas.” Por isso a lente suja volta e meia, especialmente quando a câmera na mão se defronta com aquelas faces prenhe de rugas áridas de luta. Como se dissesse “da urgência, faz-se necessário filmar a vida em risco”. Empate parece ambicionar esfacelar a representação à pólvora, tornar a realidade magnânima, maior que o cinema. Esta é sua grandeza e sua perdição.

2. Política como lampejo

Conte Isso Aqueles que Dizem que Fomos Derrotados também deriva desse plano representacional político. Mas sua estrutura é enganosa. A urgência não vem do tema, mas de uma própria vivência. A natureza do filme não vem de uma busca, mas de uma consequência inevitável da própria experiência do quarteto de autores que fazem parte do MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas). É fácil enxergar Conte Isso… como um filme político de praxe, mas é também leviano. O curta mineiro-pernambucano tem tanto de político quanto de experimento. É afinal um tratado do lampejo – tanto da luz sobre a escuridão quanto do ruído sobre o silêncio. As pás que cavam, as lonas que se estendem, as cavadeiras de boca que levantam terra são menos narrativas – afinal o filme poderia ser resumido na redundância de um só plano – do que compassos de uma polirritmia. Essa inferência sonora impossibilita o silêncio e é o silêncio que reverbera os tempos sombrios. Se vivemos numa época onde sabemos que não podemos nos calar, mesmo que pequenos, que se faça barulho. Não necessariamente gritos exclamativos, mas pios de coruja.

Os personagens são menos histórias pessoais e individualizantes do que iluminuras sobre a escuridão. O soturno é agente crucial estratégico – se não nos vê, não nos fere – e a demarcação temporal do arco que é levantar um assentamento em uma noite. Vendo no cinema é mais fácil perceber os stuck pixels que pontuam o quadro sob a penumbra. Diferente da sujeira na lente em Empate que vem da urgência, de uma rapidez afobada no trânsito entre o ver e o filmar e nos remonta à contradição opacidade/realismo ao nos depararmos com a existência de uma lente de cinema, em Conte Isso… os stuck pixels são a inferência pauloemiliana contemporânea por excelência, constituintes originárias de uma condição colonial de subdesenvolvimento. São pontos afirmativos de uma câmera desgastada, surrada pelo embate diário de um movimento social, sinais inerentes (e um tanto simbólicos) à ação direta. E diferente dos dead pixels, esses pontos não são lacunas, falta de informação em um quadro, mas pontos vermelhos do RGB de uma imagem digital. E aqui, junto às lanternas que tracejam a pictorialidade do filme, compõem antiteticamente contra a escuridão que tende a engolir a imagem. São redutos de resistência. Se um blecaute já nos engoliu, há espasmos de luz que perduram sob a noite de um eclipse.


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