banner FF brasileiros olhar

Criação/Recriação/Invenção: notas sobre alguns filmes brasileiros na programação

É uma coincidência iluminadora que o Olhar de Cinema deste ano tenha exibido tanto O Bom Cinema, recente documentário de Eugênio Puppo sobre as origens do chamado cinema marginal, e a estreia brasileira de Capitu e o Capítulo, filme mais recente de Julio Bressane. Seria evidentemente muito injusto cobrar de Puppo um filme com a carga inventiva que Bressane emprega em toda sua obra. Os objetivos de O Bom Cinema são muito mais modestos. Mas a distância entre o cinema de invenção e um discurso sobre a invenção não poderia ser mais clara. Haverá no filme de Puppo um jogo de montagem e organização de ideias inteligente, mas tudo nele é consciente do seu lugar didático e ilustrativo. Muito longe do risco ou da descoberta, o filme se posiciona no terreno da reafirmação do que o espectador conhece sobre o movimento.

A abordagem de Puppo tem seu frescor. Seu ponto de entrada é a Escola Superior de Cinema São Luiz, ligada à escola católica do mesmo nome em São Paulo, fazendo uso de amplo material de entrevistas com Carlos Reichenbach, aluno da primeira turma do curso. Assim como muitos artistas veteranos, Carlão passou a última parte da vida administrando a própria mitologia e, para quem teve o prazer de conhecê-lo ou leu/viu muitas das suas entrevistas a partir de meados dos anos 90, boa parte do território coberto aqui será conhecido. Mas Puppo tem o mérito de historiador de usar os causos do cineasta para uma visão menos batida do movimento. Por exemplo, ao ressaltar as origens do curso como reflexo de um desejo da Igreja católica de investir numa educação audiovisual dos jovens alunos que reforçasse uma correlação entre bom gosto e bons valores – um bom cinema que refletisse uma boa sociedade. O título do filme é, obviamente, uma ironia, e a primeira fase deste cinema, que Reichenbach prefere chamar de “pós-novo”, é muito preocupada com questões de gosto na chave justamente oposta à da gênese do curso. “O negócio é fazer filmes ruins e avacalhar” – como, de forma diferente, Rogério Sganzerla e Jairo Ferreira, os dois maiores teóricos da turma, fizeram questão de afirmar.

O maior mérito do filme é de ordem material: as restaurações de As Libertinas e Audácia, dois filmes de episódios realizados por Reichenbach, Antonio Lima e João Callegaro no final dos anos 60 e que pouco circulavam, e cujas imagens são muito bem utilizadas ao longo do filme. Puppo há muito tempo tomou para si este papel de mantenedor da memória do cinema marginal e o filme é um bom complemento para Ozualdo Candeias e o Cinema (2013), que ele realizou a partir de princípios semelhantes oito anos atrás. São dois olhares complementares, por ângulos bem diferentes, das origens e trajetórias do experimental paulistano. O filme é conduzido pela ironia do título: não só para ressaltar como a ideia de gosto era posta em xeque pelos jovens cineastas, mas no modo como a força e a clareza das imagens resgatadas por Puppo também não se encaixam nas oposições mais simples do discurso dos realizadores. A montagem de Puppo se move na direção de explicar e catalogar os filmes enquanto as imagens recuperadas tensionam o processo. O filme não tem como escapar de certos lugares comuns: as passagens mais fortes são as que lidam com a relação entre os então jovens realizadores e o cinema novo, sobretudo quando Reichenbach discorre sobre a relação entre cariocas e paulistas e o não-lugar de Roberto Santos e Luís Sergio Person no cinema de autor brasileiro do período.

Não é culpa de Puppo que, num evento como o Olhar deste ano, a presença de um filme como O Bom Cinema não deixe de reforçar que um passado inventivo existe num lugar distante e simbólico. Uma das melhores coisas das edições presenciais do festival era sua excelente seção de cópias restauradas e o seu esforço retrospectivo. Na versão online agressivamente contemporânea, o filme é um corpo estranho (não à toa era uma apresentação especial, como era o filme de Bressane). É uma ideia a ser retomada, recuperada, discutida, mas sempre a partir de um lugar distante de vitalidade discutível. O Bom Cinema não consegue exatamente escapar deste lugar ao qual acaba arrastado.

Capitu e o Capítulo, por sua vez acaba reforçando este fora do lugar. Num festival que termina por ser voltado para realizadores jovens e contemporâneos, era o “filme de mestre consagrado” da seleção. Não só isso, mas de um mestre que está retomando não só um dos textos mais canônicos da nossa literatura, mas sua própria história, já que muitos anos antes de Dom Casmurro, Bressane também já filmou Memórias Póstumas de Brás Cubas nos anos 80 – em Brás Cubas (1985) – e, entre os dois, o diretor extraiu de Machado de Assis A Erva do Rato (2008), cujas opções estéticas não deixam de informar o novo filme. O próprio Bressane reforça a aproximação entre os dois filmes quando circunscreve as origens de Capitu e Capítulo a uma conversa com o poeta Haroldo de Campos à época da realização de Brás Cubas.

A provocação de Campos que animou o desejo criativo de Bressane é de que o mais importante em Dom Casmurro não seria a personagem Capitu, mas a ideia de capítulo. Um gosto formal de Machado por uma série de episódios curtos, cujos capítulos têm em média pouco mais de uma página, que se sucedem rapidamente. Um gosto dividido por Campos e Bressane de afirmar a forma por sobre o enredo. Capitu e o Capítulo assim como antes fora Brás Cubas, se propõe menos como uma adaptação do que como uma leitura, um desejo de buscar no cinema formas de tratar a escrita machadiana. Neste sentido, seguindo o caminho apontado por Campos, este novo trabalho de Bressane, muito mais do que qualquer outro dos seus filmes digitais realizados nos últimos anos, é um filme de montagem, cujos sentidos se dão menos na força dos momentos individuais – que existem –, mas no choque constante entre eles.

É um filme de oposições, a começar pela decisão de separar o Bentinho personagem, vivido por Vladmir Brichta, do Casmurro narrador, que se transforma num Enrique Diaz sempre isolado e carrancudo, num monólogo que é menos texto do que dança entre um ator e a câmera. Uma decisão que tem pouco de narrativa: Brichta e Diaz têm presenças de cena muito diferentes, mas sequer estão tão distantes em idade, como mandaria o “cinema bem narrado”. Isso resulta num choque entre estes dois espaços de imagem: o da ação constante da relação Bentinho/Capitu e o da memória remoída de Casmurro. Não sei o quanto foi intencional, mas nesta passagem constante entre aspectos de imagem, Bressane extrai do romance de Machado algo bastante forte sobre ressentimento, que por vezes se perde nas discussões mais estéreis sobre a ação do livro. Quando o filme reimagina a ação através do capítulo e não de Capitu, não é que Bressane encerre qualquer interesse na personagem – pelo contrário –, mas ele a desloca para um acúmulo de memórias.

Há uma ênfase notável neste novo filme em cada um dos espaços habitados. Como sempre acontece nos filmes de época de Bressane, a criatividade para imaginar lugares a partir de quase nada chama a atenção. É uma ênfase que reforça essa ideia de um filme de choques: existem muitos espaços e o filme é o movimento constante entre eles. Entre O Bentinho/Casmurro, mas também entre as muitas Capitus que a narrativa de Casmurro aciona. Cada lugar e cada cena traz consigo um peso específico – e a força do filme passa pela maneira pela qual a obra transita entre eles.

Há uma sintonia muito forte entre Campos e Bressane, mas há também uma distância, já que como bom homem de cinema, Bressane se interessa por uma potência da presença muito própria do meio. É algo que afinal está no centro da obra do cineasta desde os filmes contemporâneos ao período coberto por O Bom Cinema. O que seria o primeiro curta de Bressane, Bethânia Bem de Perto (codirigido com Eduardo Escorel, 1966), se não o confronto da presença concreta e poderosa de Maria Bethânia com o discurso cinemanovista um tanto cansado sobre “o popular”? Da mesma forma, Capitu e o Capítulo é um filme dessas transições, mas animado constantemente pelo prazer de Bressane com a presença e o gesto. E lá estão Brichta e Mariana Ximenes para lhes darem o devido corpo. O contraste de vitalidades entre Brichta e Diaz é importante para as desleituras machadianas particulares de Bressane, mas também é crucial a Capitu muito contemporânea proposta por Ximenes, que está sempre sobrando em cena em conflito com o décor, e num tom à parte em relação ao dos outros atores.

Destes vários movimentos Bressane extrai um discurso real sobre a criação. Parte-se do cânone, de Machado e Haroldo, e chega-se em Capitu e o Capítulo – que é cinema e é Bressane, e ele próprio um gesto de descoberta, por vezes engraçadíssimo e noutras tantas amargo. Termina-se como é praxe no Bressane tardio, com a descortinada do processo e o cineasta dirigindo atores e a equipe – menos um reforço do peso da presença da câmera, como nos tempos de Brás Cubas, e mais uma afirmação do gesto compartilhado que parece cada vez mais destacado nos filmes de Bressane produzidos por Bruno Safadi na última década. Bressane pode ser o último mestre, esta figura enorme que não cabe em nenhum lugar, a ponto de figurar numa “apresentação especial”, mas por trás de toda esta carga se escondem sempre filmes emotivos e curiosos, um cinema de revelação, bem distante de qualquer encastelamento.

De um modo geral, a seleção brasileira do Olhar, pelo menos no recorte parcial que tive a chance de conferir, foi bastante irregular – e com frequência puxando para o desgaste de formas. Algo bem visível no filme de abertura, O Dia da Posse (2021) de Allan Ribeiro, que retoma um certo retrato de personagem, uma performance redimensionada por ser um assumido filme de pandemia. Nem o personagem tem força para sustentar uma performance de 70 minutos, nem o tom morno do filme consegue investir nas contradições aparentes para ajudá-lo. O filme é um sintoma do esgotamento dessa ideia retratista tão recorrente por aqui.

Igualmente decepcionantes foram os dois filmes pernambucanos conferidos, que reforçam uma dificuldade muito grande com a ficção por caminhos opostos. Carro Rei (2021), de Renata Pinheiro, que venceu recentemente o festival de Gramado, busca uma estética forte para uma trama de horror fantástico sobre mecanização. Tudo, porém, deságua num didatismo muito frágil, símbolos que são mais dados do que absorvidos pela estética do filme para construir as suas várias oposições. Falta vigor na dramaturgia rala para que se escape da impressão de que o filme está recitando temas, e a única coisa que escapa de alguma forma é Matheus Nachtergaele, cuja atuação elétrica certamente deve agradar seus fãs. Na chave oposta, Rio Doce (Fellipe Fernandes, 2021) investe no cotidiano observacional também rico do cinema local. É um filme sobre um homem posto em xeque por revelações sobre suas origens, cujos únicos confrontos reais são algumas observações sociais à margem, feitas de uma distância segura. A encenação morna parece existir para ilustrar os sentidos sem produzir qualquer tirada de lugar por parte do espectador, qualquer incômodo real ou conflito dramático. Qualquer charme é reduzido aos esforços do ator principal, Okado do Canal, diante do qual o filme parece trabalhar sempre para emoldurar seu tom neutro.

Dois filmes de estreia ajudaram a manter o interesse da seleção nacional. O Sonho do Inútil (2021), de José Marques de Carvalho Jr., e A Cidade dos Abismos (2021), de Priscyla Bettim e Renato Coelho. São filmes bastante diferentes, que respondem à ideia de como buscar um frescor de formas ao mesmo tempo em que permanecem assombrados por imagens passadas e promessas incompletas. O filme de Carvalho é um tanto desengonçado, mas muito ressonante. Ao buscar seu passado e o do coletivo que manteve com um grupo de amigos que produziam vídeos de humor e choque nos anos 2000, o diretor chega numa imagem-memória potente sobre um futuro do pretérito. É um retrato de uma juventude carioca cujas possibilidades não foram. Busca-se retomar aquele grupo de amigos espalhados com destinos díspares, mas o filme existe menos nos encontros presentes do que neste passo do “não sido”. Os vídeos do inútil existem entre a molecagem juvenil e um desejo de empreendedorismo (completado pelo longa “maduro” a que assistimos) e o filme por vezes sugere uma versão mais bem sucedida e menos esperta dos filmes do Marcos Curvelo. Há uma ideia de juventude carioca e de vida cotidiana do Rio de Janeiro em jogo, mas existe também essa lembrança constante da incompletude, da nostalgia por um passado que resvala numa incerteza total e corrente.

Fala-se muito sobre essa ideia daqueles que entraram na vida adulta neste período de vinte anos entre o Plano Real e o fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff, e que foram lançados nos últimos anos na completa incerteza. O filme de Carvalho tem uma carga muito forte para dar corpo a isso. Muito também porque o faz a partir de um olhar regional bem claro, de uma força descritiva sobre existir no Rio de Janeiro e suas peculiaridades. É um filme limitado por ser, no fundo, muito conciliado, sua própria existência tornada um gesto reconfortante em meio ao seu amargor, mas há uma força inegável ali.

O Sonho do Inútil e A Cidade dos Abismos, títulos que por si só demarcam de forma clara suas existências em mal-estar e fragilidade, têm em comum um foco nos desejos interrompidos e nesta ideia de uma nova marginalidade. As ilusões neoliberais de O Sonho de Inútil não deixam de seu confundir com as da chamada Retomada, e o filme existe num certo vazio histórico e estético muito consciente. A Cidade dos Abismos, por sua vez, integra de forma muito clara uma relação com o experimental brasileiro, com direito a referência direta a Limite – o que não deixa de sugerir um contraponto ao trabalho que Puppo realiza a partir do experimental paulistano. O filme de Bettim e Coelho, por vezes, sugere uma nova releitura de A Margem (1967) de Ozualdo Candeias, por um viés marcado pelo cinema paulistano dos anos 80 (Anjos da Noite (1987), de Wilson Barros, em particular).

É um filme que busca encontrar muita vida numa existência de desespero. Um filme no qual esse desencontro entre os gestos dos atores e a motivação por trás deles é redimensionado o tempo todo. Quatro personagens marginais estão ali à deriva – duas amigas trans, uma mulher fugindo de uma relação ruim, um imigrante nigeriano – e a cidade é pano de fundo bastante amplo, mas há o espaço de um bar em destaque, uma noite simbólica – a véspera de Natal – e uma certeza de interrupção. A ideia de abismo intransponível já nos é dada no título: coleta-se lugares e pessoas, o que seria esquecido é reinventado pela imaginação de cinema. Bettim e Coelho encontram um tom improvável no qual o grito desesperado encontra um acolhimento terno, justamente aquele equilíbrio que com frequência falta em filmes sobre figuras marginalizadas que vão demais numa direção ou na outra (ou podando a revolta num falso afeto, ou se afundando num excesso punitivista).

Em determinado momento a Cinemateca tem uma ponta, e não deixa de causar um choque vermos a entrada e a logo da instituição num filme brasileiro de 2021. Outro local esquecido de São Paulo, mas um que traz consigo uma série de outras associações. Na mesma passagem há uma ponta de Francis Vogner dos Reis, cujo curta A Máquina Infernal também foi exibido no Olhar. Pode-se traçar um paralelo entre aspirações de A Cidade dos Abismos e A Máquina Infernal, ambos filmes calcados em liberar um silêncio opressivo pelo viés do fantástico no cinema.

É fácil perder a noção de que existe uma trama policial ali no meio, com crime e investigação – não diria que Bettim e Coelho têm a maior das preocupações narrativas, mas ela ajuda a dar ao filme uma estrutura e forma que por vezes iludem experimentos similares. A cidade é infernal aqui, mas ela é imaginada nas suas muitas dores. É uma imaginação que permite uma existência para seus personagens, mas que também ajuda a responder a este desejo inicial de repensar a história do experimental brasileiro para longe deste lugar simbólico, distante e confortável.


Leia também: