esboço de um começo sem princípio

Virgindade (2015) se mostra como um esboço. Os primeiros ensaios de um menino que é arrebatado pelo seu desejo por outros meninos. Esboço não no caráter transitivo ou provisório, que antecede obra final, mas em sua natureza mesma de primeiros riscos. Folha de vida, em estado de aurora, que começa a ser desenhada em rudimentares garatujas. O curta de Chico Lacerda soma corpo ao insólito repertório de cinemas que se deixam ocupar por vislumbres de uma infância kuir. Entre as fendas comuns que marcam o… CONTINUA

“Aqui não se anda só” – Entrevista com Ary Rosa, Glenda Nicácio e Moreira

O aparecimento no cenário público da Rosza Filmes, produtora sediada no Recôncavo Baiano e responsável pelos longas-metragens Café com Canela (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2017), Ilha (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2018), Até o Fim (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2020) e Voltei ((Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2021), é um dos eventos históricos mais importantes da última década do cinema brasileiro. Seu método de trabalho – que associa uma intensa coletividade no processo, uma relação forte com iniciativas de educação, uma ancoragem em… CONTINUA

Cantar no escuro, aprender a voz da noite

Fazer o caminho de volta demanda um corpo que guarde a estrada a ponto de saber narrá-la. Regressar – seja a mulher à sua casa, ou o cinema ao exercício de si – é tarefa que estremece o mundo tal como está. É justo aí, no instante do retorno, que o terceiro longa de Ary Rosa e Glenda Nicácio acontece. Passados 15 anos de distância, quatro irmãs regressam à sua cidade natal para sentarem-se juntas em uma só mesa, no correr de uma só noite.… CONTINUA

Liquefazer a pedra, experimentar o fóssil

Anúncios feitos no escuro, nascenças que se dão no deslocamento, o canto inaugurando estradas, elementos que se fizeram pulsantes nos cinco outros filmes da Mostra Olhos Livres, despontam com roupagem muito própria em Irmã (2020). O filme de Luciana Mazeto, Vinícius Lopes começa dentro do olho, para logo em seguida fazer a pele virar tela. Ana (Maria Galant) e Júlia (Anaïs Wagner) estão de costas, e o contorno das duas se torna suporte para uma imagem projetada, prenúncio de uma viagem que está para começar.… CONTINUA

A dura língua do todo

Subterrânea (2020) parte de um estilhaço. Uma única fotografia emerge silenciosa: oito homens e duas bandeiras hasteadas posam ao redor de uma pedra. A ideia de fragmento – corporificada primeiro pela própria foto que paira desamparada – se estende para o motivo da pose, quando percebemos que a pedra se trata de um meteorito encontrado no interior da Bahia. “Um pedaço de outro mundo”, resto de alguma coisa desmembrada que fez viagem até aqui. Uma voz off nos revela que a foto flagra o momento… CONTINUA

Convívio extraviado

Amador (2020) compartilha de um dos esforços mais belos do cinema documentário: como fazer do filme a companhia de uma vida. O tempo da relação aparece no tempo das filmagens, uma amiga filma um amigo. Por meio de planos que se demoram em conversas íntimas e uma câmera que acompanha e refaz movimentações humanas, somos apresentadas a Jônatas Amador, artista plural que se criou em casas e praças e ruas de Belo Horizonte. O material bruto do filme ficará sempre inacabado, enquanto a montagem precisa… CONTINUA

— Canta pra mim?

Distopia não é a palavra, é tudo perto demais. O mundo já acabou algumas vezes. E renovadas formas de se chegar ao fim se delineiam a cada aurora. A ruína vem sendo escrita, filmada e recontada com distintas fisionomias. Tantas imagens e sonoridades foram concebidas para ensaiar uma faísca que guardasse uma parte desta terra sofrendo o interminável processo de arrasamento e restauro. A matéria trabalhada na mais recente manifestação de Glenda Nicácio e Ary Rosa é o futuro próximo de um Brasil desmoronado. Voltei!… CONTINUA

para Rodson, com amor

Há que se agasalhar bem a sensação de perda, Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó) (2020) é um luminoso excesso. A tela suporta muito mais do que nela cabe, alguma coisa vai escapar aos olhos. Rodson nunca será capturado por inteiro. O filme de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra é efeito de um acúmulo. Nascido de uma longa investigação vivida pelo coletivo Chorumex desde 2015, Rodson é o terceiro acontecimento da Trilogia do Terceiro Milênio, precedido por Tsunami Guanabara (2018), de… CONTINUA

Para que as crianças saibam

Por vezes, filmes desenham mapas, riscam a silhueta de espaços inteiros, traçam a amplidão de estradas, escrevem cartas geográficas e nos convidam a deitar os olhos, os pés, a boca sob as coordenadas de um chão. Outros filmes são como partituras – mapas de música – que guardam a substância que precede a língua. Abandonam qualquer palavra e se fazem de graves e agudos, refundando o alfabeto em rumores musicais. Há ainda filmes que inventam um enlace entre partitura e mapa, de modo que já… CONTINUA

Sinfonia do conjunto

um dois três quatro: (caminho percorrido por @vovodorap, @dedezinhodobem, @gusmuniz1 e @peedromarshall) O quadro acima foi retirado do quarto passo de uma sem-fim correspondência. O recurso utilizado pelas pessoas que compõem a peça, que gera o efeito criador-coletivo, é facilitado pelo uso de uma ferramenta do aplicativo Tiktok. A ferramenta permite que as usuárias adicionem seu próprio vídeo a um vídeo pré-existente, mantendo o áudio do primeiro material. Os remixes com o áudio inaugural de Dezeri Xavier entoando os versos de Hungria Hip Hop se… CONTINUA