Para que as crianças saibam

Por vezes, filmes desenham mapas, riscam a silhueta de espaços inteiros, traçam a amplidão de estradas, escrevem cartas geográficas e nos convidam a deitar os olhos, os pés, a boca sob as coordenadas de um chão. Outros filmes são como partituras – mapas de música – que guardam a substância que precede a língua. Abandonam qualquer palavra e se fazem de graves e agudos, refundando o alfabeto em rumores musicais. Há ainda filmes que inventam um enlace entre partitura e mapa, de modo que já… CONTINUA

Às que veem sem mapas

O plano geral de uma casa que emana, da pequena janela lateral, uma luz vermelha, abre o longa de Isaac Donato, Açucena. Como se fossemos observadores ocultos na penumbra que acomete o mundo na virada do dia para noite, gravitando em direção à luz rosácea, consolida-se, já na primeira cena, o ambiente enigmático e lúdico que habitaremos a partir daí. O filme se passa no tempo de preparação do aniversário de sete anos de Açucena – que se cumprem há mais de vinte anos –… CONTINUA

Sóbrio, soturno, São Paulo

Quadros do Romero Britto, uma imagem da Coca-Cola, a televisão ligada e um jogo de computador. Viviane Machado, mãe de Bruno Risas, diretor e, em certa medida, o narrador do filme, acende um cigarro enquanto joga nessa sala que não poderia ser outra coisa que não um primoroso esboço da classe média paulistana. O longa-metragem se passa no contexto de uma série de infortúnios que envolvem o desemprego do pai (Julius Marcondes), o emprego mal remunerado da irmã (Iza Machado) e o retorno para a… CONTINUA

Fé árida

Sequizágua comunga dos desafios vividos pelo cinema brasileiro que mais recentemente inventou seus passeios entre real e ficcional a partir da aproximação ao cotidiano de territórios e sujeitos à margem dos holofotes midiáticos. Na busca por uma poética do convívio, retrabalhada em matéria de cinema, as obras formularam diferentes arranjos para o encontro criativo entre equipe de filmagem e pessoas filmadas. Ao se inserir nessa teia de experimentos, Sequizágua aponta novidades formais, ensaia caminhos plásticos e nos põe a questionar a energia que o filme… CONTINUA

Da imaginação como potência à produção como resistência

A abertura da 23ª mostra de Tiradentes, cujo tema é “Imaginação como Potência”, se dá em um contexto, para dizer o mínimo, curioso. O festival acontece pouco mais de um ano após a posse do novo presidente da República que, se desde o princípio já se apresentava como uma ameaça ao setor artístico, concretizou o desmantelar de estruturas culturais ao longo de sua ainda breve gestão. O tema é, de alguma maneira, um eufemismo para a elaboração de estratégias de resistência enquanto realizadores do cinema… CONTINUA

Enterrando nossos vivos

Lá pela metade da terceira história do excepcional La Flor (2019), de Mariano Llinás, Dreyfuss (Horacio Marassi), um cientista alemão sequestrado que termina amarrado no banco de trás de um carro em terras desconhecidas, liga os pontos que o levaram até aquele momento para tentar imaginar seu destino. Enquanto as sequestradoras guiam por planícies desertas, falando apenas em francês, ele especula que elas estão apenas esperando que o cair da noite: – “Chegou a hora. Elas vão me matar.” Mas elas não o matam. E… CONTINUA

O futuro de um passado

Em ao menos duas ocasiões ao longo de The Irishman, o mais novo filme de Martin Scorsese, a câmera passa do exterior ao interior de uma locação, atravessando o parabrisa de um carro em uma delas, e a porta de vidro de uma lanchonete em outra. Esse movimento traz à memória um plano bastante célebre de Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, em que um movimento de grua passa por entre as letras de neon do luminoso sobre o El Rancho e atravessa uma claraboia,… CONTINUA

“Deus ajuda quem cedo madruga” – Considerações tardias sobre o 21º Festival Brasileiro de Cinema Universitário

É certo que hoje podemos pensar o mundo do trabalho como um tema especialmente recorrente nas imagens do cinema brasileiro, mas mais interessante do que evidenciar um diagnóstico de problemáticas à vista, é buscar compreender os sentidos que se produzem e se transformam a partir das novas e variadas formas de relacionamento com essa questão que há muito nos persegue; é perceber como eles articulam os reflexos de uma realidade em mutação, ou ainda: como eles mesmos se tornam a própria expressão dessa mutação. Não… CONTINUA

Os destroços da civilização europeia

A Portuguesa é o sétimo longa-metragem de Rita Azevedo Gomes, cineasta da linha de frente do cinema português que apesar de três décadas de uma produção rica, só nos últimos anos veem recebendo timidamente um pouco da atenção merecida. Recentemente o filme circulou pelo Brasil, primeiro no Olhar de Cinema e depois numa pequena retrospectiva dos seus filmes em São Paulo. O cinema de Gomes traz à frente alguns elementos da tradição do cinema português, sobretudo na sua relação com a literatura e aristocracia, com… CONTINUA

A política para além do quadro: cinema brasileiro em tempos de incerteza

Não é fácil realizar um festival de cinema num cenário tão turbulento quanto o do Brasil hoje, ainda mais quando o financiamento para cultura (incluindo de forma bem direita os festivais) está sob questão. Era difícil não pensar nisso cada vez que passávamos pela entrada dos cinemas e víamos com destaque nos cartazes “o Ministério da Cidadania, Governo do Paraná e Copel apresentam…”. A simples mudança do ministério responsável, um lembrete bem direto sobre o momento presente. O perfil do Olhar de Cinema nessa oitava… CONTINUA