Quando o causo vira filme: reflexões sobre a arte de Faela Maya

Barzinho Clandestino se inicia com um plano onde uma personagem manda uma mensagem de áudio para outra falando que está a caminho. O plano seguinte é dela chegando a uma calçada onde outras três meninas estão em pé. Aqui há a ausência de uma convenção narrativa audiovisual: o plano de estabelecimento. O local onde elas estão, no entanto, é rapidamente apresentado em poucas linhas de diálogo: – O mototáxi não achou o canto – Também, a gente tá quase escondida… – Eu consegui esse bar… CONTINUA

Vulnerável ao imprevisível

Do lado esquerdo, um jovem olha fixamente para baixo enquanto um boné do Flamengo cobre seu rosto. Ele abre a jaqueta escura, como quem sabe que a partir daquele momento as coisas ficarão acaloradas. Do lado direito, outro jovem escuta atentamente a voz do mestre de cerimônias fazendo os preparativos. Seu corpo está mais agitado, transparecendo a ansiedade. Ao fundo da imagem, uma multidão de outros jovens, tal como nós, acompanha atentamente. Estamos em um duelo de rima no Espírito Santo em 2017. Durante toda… CONTINUA

As coisas mudaram, tá?

O pequeno filme sem título, como é comum nos materiais feitos para distribuição nas redes sociais, vem acompanhado da legenda: “vocês tão fazendo com que o branco sofra racismo!!!”. A afirmação não engana o consumidor habituado à gramática zombeteira dos três sinais de exclamação. No vídeo vemos um jovem negro, kaique brito (é como ele assina) que interpreta de maneira literal – em uma sequência de minúsculas cenas – as declamações de áudio de uma indignada voz feminina que afirma, com ares de objetividade, que… CONTINUA

Um efeito paranoico

Em O Verdadeiro Motivo do Programa do Jô Ter Acabado, o material de um programa em que Jô Soares entrevista o cantor Gusttavo Lima é remontado em um vídeo de três minutos onde a entrevista quase some e dá espaço a uma situação tensa e distorcida por close-ups e interferências sonoras. Uma espécie de filme de terror se desenrola. A presa é conduzida até a armadilha. Não há como escapar porque não há sequer ameaça evidente. É preciso que qualquer coisa aconteça para que as… CONTINUA

“Papo torto” ou toque gera toque – Notas sobre Vem Tranquilo 3

“Aí tu mexeu com meu corpo” – diz Rony, protagonista e diretor de Vem tranquilo 3, quando o mano manda um ritmo como tentativa de retomar a amizade em conflito. Seu corpo vira música e obedece à onda do beat espontâneo quase como se não tivesse escolha: seus membros precisam dançar – sarrar, puxar, quebrar – seguindo nos movimentos de travamento e liberação próprios ao funk. E assim o trio que segundos antes batia boca se reconcilia em nome do baile de improviso, um convite… CONTINUA

Brumadinho: olhar para o que se apaga

Em meio à tragédia, alguém liga uma câmera. O primeiro quadro aponta para uma nuvem de poeira que cria um horizonte curto e enevoado. Homens uniformizados correm de sua influência. Um ruído de máquina, carro e respiração ofegante. O marrom do minério da terra impregna tudo, como uma matéria fundadora, mas ali se precipita uma catástrofe perscrutável, localizada nos domínios da empresa Vale, em Brumadinho, no ano de 2019. Os gestos organizados pelo operador da câmera serão testemunho, corpo de resistência diante de um crime… CONTINUA

Um clássico fugaz do cinema mobile

Na pequena cidade de Papagaios, centro-oeste de Minas Gerais, um grupo de trabalhadores de uma serraria de ardósia tem se dedicado a realizar pequenos filmes cômicos e a disseminar esses materiais em grupos de Whatsapp da região. Foi através do contato com um pesquisador da cidade que acessei esse material e ganhei o dia com aquela boa surpresa. Filmado e editado com celular, composto por vários quadros em que a ação é organizada em formato piramidal, o filme é melhor visualizado com o aparelho na vertical… CONTINUA

Sinfonia do conjunto

um dois três quatro: (caminho percorrido por @vovodorap, @dedezinhodobem, @gusmuniz1 e @peedromarshall) O quadro acima foi retirado do quarto passo de uma sem-fim correspondência. O recurso utilizado pelas pessoas que compõem a peça, que gera o efeito criador-coletivo, é facilitado pelo uso de uma ferramenta do aplicativo Tiktok. A ferramenta permite que as usuárias adicionem seu próprio vídeo a um vídeo pré-existente, mantendo o áudio do primeiro material. Os remixes com o áudio inaugural de Dezeri Xavier entoando os versos de Hungria Hip Hop se… CONTINUA

Pé de pano, arte da fuga

“Cê é doido?” / “Vô filmar mesmo que isso é covardia”. / “Hoje suas cara vai passar no Balanço Geral. Cês vão ver, sô! Cês vão ver”. Enquadro A câmera de celular não é apenas instrumento de defesa nas mãos do homem que profere as palavras reproduzidas acima, materializadas num vídeo que ganhou no YouTube o título de “Detido dá golpe em policial e consegue fugir com apoio de populares”. A câmera é arma empunhada rumo a um ataque que se sabe ser desigual. O… CONTINUA

Roda Viva ou É Deus, Mamãe

“É Deus Mamãe, eu Filmei tudo, um Redimunho kkkkkkkkkkk”, assim como vários vídeos da era em que as coisas simplesmente caíam na internet, em vez de serem subidas para ela, é identificado, na versão com mais views, por um compilado de momentos-chave (a reação do público marca o gênero: kkkkkkkkkkk). Enquanto sua certidão de nascimento – título, resolução, autor, data, duração original – se decompôs em uma camada já compactada de sedimentos pixelados da web, seu espírito permanece vivíssimo, vibrando no boca-a-boca e provocando reações… CONTINUA