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Brumadinho: olhar para o que se apaga

Em meio à tragédia, alguém liga uma câmera. O primeiro quadro aponta para uma nuvem de poeira que cria um horizonte curto e enevoado. Homens uniformizados correm de sua influência. Um ruído de máquina, carro e respiração ofegante. O marrom do minério da terra impregna tudo, como uma matéria fundadora, mas ali se precipita uma catástrofe perscrutável, localizada nos domínios da empresa Vale, em Brumadinho, no ano de 2019. Os gestos organizados pelo operador da câmera serão testemunho, corpo de resistência diante de um crime que um ano depois vê seus responsáveis com ações em ascensão no mercado financeiro.

Sua máquina filmadora gira 360 graus, insatisfeita na busca de capturar a ameaça que se insinua por todos os lados. Operando a partir de um lugar onde a compreensão plena do acontecimento não está dada, sustentar o enquadramento incorre no perigo de trabalhar contra preservar sua própria vida. Esse estado liminar, que impede a fixação do quadro, cria uma convergência sensível das cenas, de imagens e sons lancinantes, ruidosos. O rompimento da barragem é captado em uma estética que já prenuncia o apagamento que viria a cair sobre o povo e o solo filmados. Toma corpo um terror próprio de conjurar a câmera na iminência da dissolução, onde as imagens podem mesmo não ser legadas ao futuro como evidência do que se desvela.

O trabalhador arfante volta a câmera para si e diz: “Nossa Senhora, caiu tudo.”. Outros se aproximam gritando, alguns entram apressados em um carro, mas o único rosto que podemos ver com clareza é o seu, que pergunta assombrado: “Aconteceu?”. O peso da sua respiração é capturado pelo microfone da pequena câmera no momento em que olha para trás, para o lugar de onde é preciso fugir. Ele se detém por breves segundos e sabemos que no contracampo a neblina só tende a se tornar mais espessa pela poeira marrom que adentra a indústria, que engole seus caminhões abandonados. Ainda assim, é preciso devolver o olhar para o que fica para trás. Os funcionários estavam lá por contrato da empresa Vale, que escolhia ignorar, como também fez em Mariana (2015), a fragilidade da estrutura de contenção dos rejeitos da extração do minério, e agora são eles que precisam fugir por suas vidas, já cientes de que a tragédia se repetia. A fragilidade do corpo é novamente preterida pelo valor de mercado. Questão de especulação necropolítica.

O cineasta corre atrás do carro que dá a partida sem ele e tudo se transforma em borrões de luz entre o seu uniforme, o chão de terra e o mato. Sua mão segura uma forma pixelada que emerge da abstração. Por poucos segundos esse objeto preto aparece, muito possivelmente um par de óculos, peça que compõe o uniforme e elemento dos equipamentos de proteção individual. Não vemos sinal de um capacete, mas captamos as cores de seu colete. Objetos fornecidos pela Vale para proteção de seus funcionários. O corpo inteiro vestido para a redução de danos, tendo no acidente de trabalho uma expectativa a ser prevenida por sua recorrência. Segurando nas mãos os óculos de trabalho no desespero da fuga, na indiscernibilidade do que está ao redor, o cineasta nos lembra daquilo que o colocou ali no primeiro lugar. Sua mão agarra firme a fragilidade da proteção e da memória, a precariedade de sua condição.

Mas a questão do limite da visão está colocada desde o primeiro quadro do horizonte enevoado. O objeto se projeta momentaneamente na discernibilidade, ativando possibilidades, para retornar como elemento em dissolução, estilhaçado pela urgência da mirada. O som ruidoso pulsa com os movimentos do corpo até que a câmera corta. A contingência desse filme de um minuto e meio, de um único corpo diante do rompimento de uma imensa barragem, é também sua força. Nas condições que levam o cineasta a levantar a câmera e registrar, captura-se seu pensamento urgente de renovadas intenções a cada gesto fílmico, sempre à beira do colapso. É nessa vulnerabilidade que as imagens inscrevem seu rasgo que marca a memória.

Como registros legados ao futuro, se já não é possível estabelecer uma relação anterior a toda a exposição visual sobre (imagens aéreas, verticais) Brumadinho (na descrição da postagem no YouTube, a Record TV afirma exclusividade sobre o acesso a este plano-sequência, como se fosse possível reivindicar a propriedade dos ruídos, dos movimentos ofegantes, dos gritos), ainda podemos retornar à estética vertiginosa desse vídeo para retomar e lembrar o trauma. Não só como testemunho fílmico da natureza insustentável das relações de exploração e trabalho que engendram um mundo rumo à destruição, mas dos rastros de resistência de um trabalhador-filmador que organiza essas imagens como força de vida.


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