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Um clássico fugaz do cinema mobile

Na pequena cidade de Papagaios, centro-oeste de Minas Gerais, um grupo de trabalhadores de uma serraria de ardósia tem se dedicado a realizar pequenos filmes cômicos e a disseminar esses materiais em grupos de Whatsapp da região. Foi através do contato com um pesquisador da cidade que acessei esse material e ganhei o dia com aquela boa surpresa.

Filmado e editado com celular, composto por vários quadros em que a ação é organizada em formato piramidal, o filme é melhor visualizado com o aparelho na vertical e em tela cheia. Assim, além de aproveitarmos a concepção dos quadros e suas apostas em duas faixas de ação – uma na base e outra no topo da “pirâmide” –, antevemos o que configura uma de suas forças: a transgressão de parâmetros clássicos de espectatorialidade em um “cinema perfeito”, amparado nas fórmulas e tecnologias do cinema industrial.

Na telinha, um chamado ao final de semana mobiliza corpos-máquinas, que automaticamente se desfazem de um triste engessamento e partem para a reorganização do espaço em que estiveram confinados durante a semana inteira. Aliás, o alívio do confinamento é representado por pessoas que respondem ao chamado surgindo dos lugares mais inesperados e tomando de surpresa o quadro, assumindo protagonismo temporário da própria vida. Como no clássico do funk em que Jonathas da Nova Geração joga tudo pra cima e no final de semana se vinga dos esporros que tomou na escola soltando pipa e jogando bola, aqui os operários encontram suas pipas entre o material de trabalho: máquinas e outros materiais disponíveis são tomados em nome da diversão e da mistura entre o mundo do trabalho e o mundo do lazer.

São esses indícios de “impureza” que aproximam os cineastas de Papagaios da ideia de “cinema imperfeito” de Júlio García Espinosa. Um cinema feito nas bordas do trabalho que paga contas e aprisiona, suga as energias criativas e põe o trabalhador na condição de artista de final de semana. Uma arte nos escombros, de apropriação (in)devida, de reelaboração nos usos de ferramentas (materiais e cognitivas) e de produção de encontros inesperados. Falando em encontros, eles produzem relações com o pop através do uso da canção “Recairei”, dos Barões da Pisadinha. Ainda que guardem um tanto da alegria infantil de Jonathan ao encontrarem o final de semana, existe, num regime de fantasmagoria, algo que paira sobre aquela catarse entre amigos: uma (ou mais de uma) força cuja presença ausente é agora motivo de comemoração.

Nesse contexto parece mesmo uma boa escolha o formato vertical dos stories e sua implícita referência à efemeridade, posto que o efêmero é um conceito que permeia o filme de cabo a rabo. Liberdade de fim de semana, uso da fábrica em contexto de zoação e a felicidade de já não estar atrelado a uma força estranha que os domine – tudo parece frágil, ainda que explícito e palpável enquanto momento. Os stories são citados nominalmente na música dos Barões como negação, enquanto, no fundo, a mesma canção garante que basta uma mensagem de texto para que aquela sensação de felicidade seja transformada novamente em uma paixão triste. Mais uma amostra da impermanência como força discursiva: as relações humanas permeadas pelas mesmas tecnologias que permitem produzir um filme com amigos devido à familiaridade com os dispositivos e à natureza fugaz dos processos em jogo expõem um mundo em que estar inserido é produzir/consumir imagens de si. Para se manter a salvo de algo a receita parece simples: basta deixar de seguir nas redes, ocultar stories, bloquear palavras-chave de referência e assim deixar de acessar aquela janela de conteúdo cuja atividade produz perturbação. Acontece que a realidade desses jogos de poder imagéticos é bem mais complexa, e o consumo de subjetividades e modos de vida no meio digital trabalha com a ideia de presentificação em fantasmagoria, criando vínculos que já independem da materialidade em presença para a produção de seus efeitos. Jogo duríssimo em terreno de maquinário desejante plumoso.

Vale aproximar deles um clássico do cinema de trabalhador, A Classe Operária Vai ao Paraíso (Elio Petri, Itália, 1971), que na versão mineira promove uma catarse bem diferente do filme italiano, no qual o operário se descobre o verdadeiro motivo vital da atividade industrial e do acúmulo de poder na esfera do capitalismo em fins de século XX. Aqui em Papagaios os operários tomam de empréstimo a fábrica, transformando-a em cenário de uma sincera alegria e ode ao não-trabalho, adicionando mais uma camada de interessância ao filme de pouco mais de um minuto: a fixação no agora, a boa percepção do momento e de suas tecnologias de comunicação e alcance do outro.

Como num cenário de escavação arqueológica de tempos recentes, as máquinas passam e do chão borbulham vestígios. Ao passarmos a mão por cima das camadas do filme encontramos o presente, indícios de um clássico viral captado/editado/distribuído via celular, que expõe também seus lugares frágeis: circulando massivamente, sem se fixar em nenhum arquivo ou coleção, provavelmente sumirá em semanas, servindo de matéria apenas a pesquisadores do fenômeno. No entanto, sua vitalidade memética deixa no rastro a alegria popular de produzir imagens, refratando e multiplicando espelhos de si.


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