é deus mamãe modelocinetica 2020

Roda Viva ou É Deus, Mamãe

É Deus Mamãe, eu Filmei tudo, um Redimunho kkkkkkkkkkk”, assim como vários vídeos da era em que as coisas simplesmente caíam na internet, em vez de serem subidas para ela, é identificado, na versão com mais views, por um compilado de momentos-chave (a reação do público marca o gênero: kkkkkkkkkkk). Enquanto sua certidão de nascimento – título, resolução, autor, data, duração original – se decompôs em uma camada já compactada de sedimentos pixelados da web, seu espírito permanece vivíssimo, vibrando no boca-a-boca e provocando reações à flor da pele até hoje.

Em situação de fim-de-semana, uma família curte um descanso em frente a um lago pacato e amarronzado, até que um redemoinho passa por ele. A galera corre para registrar e a câmera chega atrasada para o fenômeno, mas captura um segundo redemoinho, um arco-íris e um cavalo branco – aparições iconicamente milagrosas que transformam a paisagem ordinária em um acontecimento divino e espetacular para nossas testemunhas. Assim como faz com as águas paradas, o redemoinho revolve as paixões daqueles que o contemplam.

redi5 em si

O gatilho do tornadinho dispara a câmera e a imagem nasce em meio ao estrondo. Acompanhamos ávidos e com os olhos apertados, tentando encontrar o que o cinegrafista de guerra persegue, enquanto a dificuldade de capturar e a baixa resolução denunciam a banalidade do fenômeno. O verdadeiro acontecimento passa a ser, então, a emoção das testemunhas, que elevam a magnificência do evento à mesma categoria mitológica e sublime dos tornados, dos corcéis alados e da Arca de Noé.

Em uma performance que transita entre aquela dos vídeos caseiros, que permanecem no núcleo familiar, e aquela dos vídeos feitos para impressionar conhecidos (como os das pescarias de peixe grande, por exemplo) o clã expõe seu encanto (e suas ideologias, suas incoerências, suas esperanças…) numa selfie da alma – alma que é, também, coletiva, o zeitgeist da classe-média brasileira – com os poros não só irretocados, mas amplificados.

Entre o burburinho de impressões que nos indica, de cara, a amplidão do espaço e a pluralidade da família, a voz de nosso narrador se coloca e se sobressai, com folga. Cameraman e showman, o homem que organiza a narrativa é o primeiro personagem que conhecemos, representando o arquétipo que chamo de “Patriarca da Mamãe”. “Patriarca” por se portar como chefe de família, comandando a gravação com uma confiança tipicamente masculina, que interrompe os outros falantes, define o sentido e espetaculariza os eventos. E “da Mamãe” pelo uso exaustivo do vocativo próprio das crianças e dos filhos superprotegidos. Personificado mais iconicamente por Agostinho Carrara, na TV, trata-se de um tipo recorrente na família e na cultura brasileira.

No controle e sob a asa materna, o Patriarca da Mamãe é o único dali que dá grande importância à visão dos espectadores, tentando atrair a atenção de quem vê como um youtuber ou apresentador de televisão. Quando o tremor do redemoinho vai passando, ouvimos o lamento da mãe que não ligou a câmera a tempo. Em resposta, o narrador repete triunfantemente a frase que, não à toa, integra o título: “Eu Filmei Tudo Mamãe!”, inaugurando o segundo e mais emocionante ato da narrativa.

redimunho 2 a mãe

Em quadro, a mãe catalisa a religiosidade que transforma a junção do redemoinho, do arco-íris e do cavalo branco em uma tríade milagrosa e pirotécnica. Em um outro tipo de magia, mais parecida com a do cinema, sua emoção escala inexplicavelmente para alturas inesperadas, da gratidão recatada para uma pregação enérgica, convicta e chorosa que ignora a falta de fiéis.

Enquanto a mãe brada, dando tudo de si, o Patriarca foca em prolongar o show com as rebarbas que sobraram. Na tentativa de capturar um arco-íris que se apaga, ele tira a câmera da mãe. Assim que ela lhe recobra a atenção, o câmera opera o gesto mais simbólico do filme – um superzoom em direção ao cavalo branco, o último resquício da passagem divina. Ao som da pregação da mãe ignorada, o animal que bebe água placidamente, alheio à sua sublimidade, ocupa a tela inteira.

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Como essa passagem ilustra, o narrador se interessa mais pelo frenesi dos eventos (e pela espetacularização de sua experiência como testemunha) do que pela teologia que os eleva para além da banalidade. Terminada a performance da natureza e da mãe, os ânimos se acalmam, mas nosso câmera permanece ligado – o show tem que continuar.

Diferentemente, porém, dos fazedores de vídeo de nossos dias, que estimulam os espectadores com a noção (consciente ou inconsciente) de que a atenção de um ser humano é como a de um peixinho-dourado, o timing aqui é o das descobertas do homem com a câmera. Acompanhamos as ideias se formarem ao vivo e o tempo corre em um passo mais lento, astronáutico até. Após um momento de reflexão, no qual encaramos a grama seca, ele deixa o milagre de lado e passa a se filmar – em um gesto divisor de águas entre a Antiga e a Nova Internet, tão marcante que dá a sensação de que a transição entre as duas aconteceu ali mesmo.

Em coerência ideológica com o discurso, a figura do Patriarca ratifica o arquétipo. Vestindo trinta e poucos anos, sunga havaiana, óculos ovais estilo Oakley (símbolo do Cara Maneiro desde os anos 90, agora apropriado pelos rolezeiros), copo de cerveja na mão, ele posa para a câmera. O pequeno São Jorge no peito, no escapulário dourado que serve de crachá de identificação de homem de família, é a maior participação da religião na performance que exala uma vaidade mundana e desodorante Axe.

A figura evoca também, o tipo do “cristão não-praticante”, recorrente entre os filhos de mães fervorosas. A preocupação em manter o crachá cristão ecoa muitas outras práticas e não-práticas próprias da tradicional família, principalmente (e como é o caso aqui) daquelas Goianas ou Mineiras – estados com raízes fincadas no conservadorismo e no abafamento de casos. Neste tipo de seio familiar, a máxima freudiana de “matar pai e mãe”, chave da emancipação adulta, não se realiza, posto que a tradição confere força vital a todos os membros.

Enquanto alguns costumes genealógicos – como a cervejinha e a gozação – são exercitados no vídeo e na vida, descendo redondo de geração em geração, outros são conservados com a ajuda de aparelhos, de escapulários, de “mamães” para parecerem vivos. A popularização do neopentecostalismo no Brasil, entretanto, tem sido capaz de operar uma manobra cardiorrespiratória certeira no cristianismo, trazendo-o de volta para o corpo.

redimunho ultimo casal é deus

Em “É Deus Mamãe”, o corpo tomado por este espírito é o da mãe, que louva rompendo drasticamente com o ethos recatado da tradicional família. Tomada por um vigor extraordinário, ela coloca uma música altíssima no som do carro e, através da letra, clama pela própria possessão: “Reina em mim com Teu poder/Sobre a escuridão/Sobre os sonhos meus/Tu és o Senhor de tudo o que sou/Vem reinar em mim, Senhor”. A canção – produto da Vineyard, rede evangélica estadunidense com uma gravadora própria e mais de 2.400 Igrejas espalhadas pelo mundo – anuncia a chegada do reino “de cima”. Soprando a 120 quilômetros por hora, ele ocuparia, para além da família, várias instituições brasileiras dali a alguns anos.

Apesar da pregação saltar ao primeiro plano, o corpo sonoro de “É Deus Mamãe” é rico e plural, composto, em todos os momentos, de diversas vozes e personalidades que reverberam juntas (e há camadas tão distantes que são audíveis apenas nos fones de ouvido mais tecnológicos). Em um suspense oposto ao caos do som, o homem-câmera, de acordo com seu interesse, revela as personagens uma a uma, e o retrato imagético – incompleto – da família demora o vídeo inteiro para se construir.

Nessa dinâmica, cada aparição ressignifica a anterior e as dissonâncias entre os membros ficam mais claras, assim como as tentativas de ignorá-las ou amenizá-las em códigos ou indiretas – de superzooms escondidos da mãe a diálogos em torno do politicamente correto. “É Deus Mamãe” acaba se tornando, então, uma amostra caricatural de arquétipos familiares e da relação entre eles, o que explica sua fama como um retrato da sociedade ou da família brasileira. Caetano Veloso chega a dizer, em uma crônica sobre o vídeo no jornal O Globo, que “numa obra de ficção teria sido um grande conseguimento armar um quadro tão representativo e manter tão alto nível de naturalismo e encanto visual”.

Fruto da empolgação com a natureza, com Deus, com a própria imagem e, principalmente, com a câmera que captura e projeta tudo instantaneamente, “É Deus Mamãe” nos empolga. Ignorando as estratégias de engajamentos, ganchos e estrutura de roteiro tão caras à produção audiovisual dos nossos dias (do cinemão ao TikTok) e em um timing particularmente lento para a comédia, ele nos prende até o fim e provoca, por vezes, reações histéricas. Começando no auge do redemoinho, a narrativa não anda para frente, mas para dentro, descascando camadas.

Em meio a uma polifonia vertiginosa, cada mudança de ângulo nos mostra uma face contraditória, que reconfigura o que vimos anteriormente. Tomados pela excitação ou pelo esforço da compreensão, rodopiamos boquiabertos no tornadinho, em um movimento constante e centrípeto que desafia as leis do engajamento.


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