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“Papo torto” ou toque gera toque – Notas sobre Vem Tranquilo 3

“Aí tu mexeu com meu corpo” – diz Rony, protagonista e diretor de Vem tranquilo 3, quando o mano manda um ritmo como tentativa de retomar a amizade em conflito. Seu corpo vira música e obedece à onda do beat espontâneo quase como se não tivesse escolha: seus membros precisam dançar – sarrar, puxar, quebrar – seguindo nos movimentos de travamento e liberação próprios ao funk. E assim o trio que segundos antes batia boca se reconcilia em nome do baile de improviso, um convite ao balançar malandro. Performance convocada? Não dá pra fugir ao chamado do passinho.

[Depois da dança, Rony permite aos amigos o contato corporal. Ele lança um “tamo junto” e eles se abraçam. A câmera na mão os enquadra de frente, sempre oscilante em sua tentativa de acompanhar o deslocamento inquieto dos atores. A conciliação falada, apenas, não é suficiente. Os menor precisam também se tocar, trocar pele e suor, para concretizar o amor depois do conflito. Nada no filme se desenvolve sem esse tato direto dos corpos.]

Será que a convocação à performance vem da batida mesmo, ou é do toque? Da troca?

[Aqui, toque é múltiplo: está relacionado ao som e ao ruído; à percussão; à troca de contato entre peles; aos cumprimentos de rua (“toca aqui!”); ao detalhe ou modo pessoal de conduzir alguma coisa, como um modo particular de falar, dançar e cantar (“aquele toque especial”).]

É na confusão de toques que geram vibrações destoantes que os meninos de Vem tranquilo 3 começam com um “papo reto” para descobrir que o papo só pode ser torto. Mesmo a rua, teoricamente reta, é repleta de esconderijos e esquinas malditas que escapam à visão. São delas que saem os desencontros e as intrigas narrativas, em espaços reais ou imaginados, fora de campo: o muro onde rola a suposta traição da namorada; o açaí do bairro onde os vizinhos elaboram o plano maldoso; a igreja que coloca o jovem no caminho da reconciliação.

Um dos manos que saem de uma dessas muitas esquinas performa: “Essa rua continua a mesma merda, parceiro. Nada com nada como sempre”. Logo depois, esbarra com Rony no portão de sua casa e a novela pelo perdão se reinicia. Há algo nesse modo de filmar os encontros e a andança pela rua infinita, sempre à procura por rebuliços, pela desordem ou pela agitação, que é típico da cultura de bairros periféricos, nos quais as casas dividem muros finos, e a vizinhança tudo escuta e tudo reverbera – o bate-boca e o chega junto sendo uma constante. A partir da geografia desse cenário carioca, que poderia ser a rua de muitas periferias e comunidades do Brasil, Vem tranquilo 3 parece forjar justamente esse dilema do embate, que envolve tanto o desejo quanto a rejeição do outro (que é, tudo e ao mesmo tempo, o vizinho, o amigo, o inimigo, o parceiro de passinho, o traidor).

Nesse contexto, o papo torto, portanto, só pode ser violento e energético – está num constante vai-e-vem cheio de armadilhas e pegadinhas. Rony canta para os manos sobre sua nova paixão e, logo depois, os mesmos amigos planejam uma briga com ele porque ainda desejam o conflito, mesmo depois de sua suposta resolução. O cumprimento de mão do “tá suave” não é suficiente porque a energia precisa ser liberada. O chinelo precisa voar na cara do menino que mentiu e xingou a mãe, o pai, a namorada e sabe-se lá quem mais. Depois, o malandro volta e o baile continua.

Não à toa, todas as brigas do filme (e da vida?) são geradas pela palavra. Todos os conflitos são consequências do papo cruzado, que não cola, não dá liga. Enquanto Rony se defende da suposta traição da namorada, ele segue repetindo: “não fala da minha mina não”. Ele continua: “cês não sabem nem o risco do que cês tão falando”. O papo é uma disputa constante pela linguagem, que não poderia estar afastada do corpo – o único que pode diretamente tocar o outro que feriu pela palavra. É o corpo que enfrenta o mal falado.

Na violência desses meninos, que aqui é sinônimo de encontro, há uma forte movimentação de energia, de algo que só pode ser gerado a partir do conflito, da discordância, da briga carnal. Porque, no final das contas, os barracos e os tapas não são sobre aniquilar um ao outro, mas sobre abrir possibilidades de combate – provocar a circulação de membros e o arregaçamento da linguagem. Talvez essa violência seja sobre mais uma oportunidade de toque. Os meninos se agarram e a câmera treme junto com eles (de nervoso, de risada?), também performando seu próprio conflito diante do alvoroço da cena. Vem tranquilo – o próprio título convoca o corpo a vir, a chegar, a esbarrar por vias truncadas.

o toque do “tamo junto”/ o afeto, o amor, a reconciliação

o toque da porrada / a recusa, o conflito, o ódio

[Rony faz questão de repetir, durante todos as conversas, para não tocarem nele: “Não encosta não, não encosta não”. Ao mesmo tempo, sempre que há uma reconciliação, há algum contato de corpo (um abraço, um cumprimento). Essa recusa do toque é curiosa porque age como a demarcação de um espaço, do próprio corpo, diante do “inimigo”. É uma navalha protetora. Se o corpo está em conflito, ele recusa o toque, a não ser que ele implique num combate direto, pela briga. Depois, por alguns breves instantes de trégua, pode haver o toque afetuoso, quando o conflito estiver temporariamente suspenso — porque ele nunca será, de fato, resolvido.]


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