banner capitu victor olha de cinema

O velho e o novo

Há três gestos no cinema recente de Julio Bressane que este Capitu e o Capítulo retoma e desdobra: o mergulho na teatralidade dos espaços fechados, em que a luz recorta delicadamente o jogo entre o texto, o corpo e a voz; uma atração pela materialidade da imagem digital, que se espraia por um uso muito consciente daquilo que nela é considerado precário ou amador; e a retomada das imagens e dos sons dos filmes anteriores de Bressane, numa sorte de obra em progresso infinita que cresce por mitose, sempre a nutrir-se de si mesma

De forma mais intensa desde Educação Sentimental (Julio Bressane, 2013), o cineasta vem compondo pequenos dramas de câmara, nos quais uma casa ou um estúdio se convertem em espaços propícios a uma atenção concentrada no texto e no trabalho dos atores. Aqui o material de base é o célebre romance de Machado de Assis, e a expressão usada nos créditos para nomear a operação do filme em relação à fonte (“extraído de”) é precisa: trata-se mesmo de extrair, de arrancar algumas poucas páginas de Dom Casmurro e transformá-las em combustível para um tour de force entre a câmera e os atores. Recatado, o olhar se afasta da cama para enquadrar o duelo entre o fogo de Mariana Ximenes e a cinza de Vladimir Brichta; intrusivo, fatia o rosto da atriz para transformar os famosos “olhos de ressaca” de Capitu em ícone religioso, ou para encontrar em sua boca a intensidade da paixão. Como Sedução da Carne (Julio Bressane, 2019), Capitu e o Capítulo é um filme em que um conjunto muito limitado de elementos – o espaço interior de uma casa, uns poucos objetos, alguns figurinos, um punhado de pinturas – adquire uma consistência palpável. Mas se lá o desejo era literalmente carnal (como esquecer o vermelho daquele bife?), aqui há um turbilhão que se mantém sempre oculto, como se o tratamento fotográfico procurasse impregnar-se da escrita sensualíssima de Machado e precisasse espraiar a lascívia da luz por tudo: sofás, estantes, vestidos.

Mas se a encenação de Bressane faz pensar no esmero das composições de Manoel de Oliveira ou de Rita Azevedo Gomes, há também esses momentos inconfundivelmente bressanianos em que a integridade desse teatro se desfaz em ângulos zenitais agressivos, rodopios violentos da câmera, intrusões de outras imagens que vêm rasgar o delicado tecido do filme. Os personagens anunciam uma viagem à Europa e o plano seguinte nos mostra os afrescos de uma igreja europeia, mas Bressane faz questão de manter a baixa resolução, o tremor da câmera digital e – de forma ainda mais surpreendente – os sons mundanos dos turistas ao redor. Se em Nietzsche Sils Maria Rochedo de Surlej (Julio Bressane, Rosa Dias e Rodrigo Lima, 2019) havia um interesse dedicado à fisicalidade dessa câmera que roça as superfícies do mundo de forma tão particular, aqui suas texturas tão evidentemente atuais são incorporadas à temporalidade desse romance do século retrasado.

Esse palimpsesto temporal se acentua na retomada das imagens e dos sons de um conjunto numeroso de filmes de Bressane, que atravessam décadas de sua produção. Se em Beduíno (Julio Bressane, 2016) o sonho de Alessandra Negrini mobilizava longas sequências de Memórias de um Estrangulador de Loiras (Julio Bressane, 1971), aqui é o filme inteiro que parece se abrir para a filmografia. Uma visão do casarão pode invocar a sala de Marcia Rodrigues em Matou a Família e Foi ao Cinema (Julio Bressane, 1969); um gesto da Sancha de Djin Sganzerla pode chamar as mãos de Guará Rodrigues sobre o rosto em A Família do Barulho (Julio Bressane, 1970). A qualquer momento, um excerto de uma composição de Guilherme Vaz para algum filme anterior pode invadir a banda sonora. Além da generosidade de nos fazer vislumbrar, com olhos novos, fragmentos de sua obra pregressa (que outro cineasta no mundo escreve sua própria autocinebiografia ao mesmo tempo em que filma?), essa conjuração dos arquivos opera uma torção no tempo, como se fosse possível compor com pedaços de memória o cinema do futuro.

O motivo é claríssimo: Machado de Assis é um tesouro do passado e um escritor do século XXII, assim como Julio Bressane é, ao mesmo tempo, um artista do século XIX e o mais jovem cineasta brasileiro em atividade. Para constatá-lo, basta ver uma só vez e sentir o impacto fulminante da sequência em que o Bentinho de Brichta deixa o recital de violino, adentra a casa, é assombrado pelas visões da Capitu de Ximenes por todos os lados, seu rosto a encontrar uma distorção nova em cada objeto espelhado, até que o pé do ciumento atinja em cheio a câmera que começa a girar, e girar, convocando os sons de uma praia longínqua. Ainda antes que recuperemos o ar, o protagonista se transformará em sombra na parede, a câmera no encalço de suas metamorfoses, como se o cinema também precisasse retornar ao século de Méliès para encontrar um fôlego novo.


Leia também: