“Este filme é uma versão reeditada do documentário Under the black mask, de Paul Haesaerts (1958). Nessa versão não se fala das estátuas congolesas, mas elas olham e nos respondem em Lingala. Fazem-no através do texto de Aimé Césaire, Discurso sobre o Colonialismo (1950). Este texto [de Césaire] ainda permanece como um espelho confrontacional da Europa.”
Iniciamos Sob a máscara branca: O filme que Haesaerts poderia ter feito (2020) ao som de Sun Ra and The Arkestra e com a nota informativa acima, que nos é apresentada através da legendagem. Os tons vibrantes de vermelho e amarelo que compõem a cartela inicial do curta de Mathias de Groff prologam o nome do filme na tela e, junto ao som instrumental, recebemos as legendas que estabelecem a conexão entre os filmes. Tal escolha confere certa transparência aos procedimentos fílmicos que de Groff optou por fazer. Como num texto curatorial de início de exposição, se a mediação, por um lado, pode construir pontes para relacionar e elaborar significações acerca das imagens que transcorrerão pelo curta, ela também fica sob o risco de antecipar o impacto visual, sonoro e sônico de Sob a máscara branca. A sensação de um ambiente contraditório instaurado por tal procedimento fílmico nos leva a apostar na contradição como chave teórica para nos aproximarmos da obra mais recente do diretor belga.
Rasgar o arquivo, selecionar as imagens
Under the black mask, de Paul Haesaerts, é um empreendimento marcadamente colonial. No filme de 1958, as peças de arte congolesas são expostas à serviço da câmera e do espectador. Como um inventário, os objetos artísticos são permeados pela voice over que constrói uma perícia e um diagnóstico em relação ao que estamos vendo. As adjetivações do discurso inventado pelo olhar moderno-colonial elaboram e reforçam a ideia de que as artes negras são “tradicionais”, “selvagens”, “misteriosas”, “autênticas” e “retrocedentes”. A vinculação entre tais conceituações e as imagens de animais, de regiões desérticas e de florestas exóticas, reiteram a ideologia da arquitetura jurídico-colonial-moderna. Aos nossos olhos, vemos a reatualização da diferenciação racial por meio da exotização das artes, artigos e artefatos apresentados. As imagens frontais e distantes, unidas a voz do narrador que “detém todo o conhecimento” sobre aquilo que nomeia de maneira irrestrita, além de funcionarem como instrumento para a edificação do projeto colonial, parecem querer aprisionar as vibrações sônicas das materialidades que constituem cada peça. Seus sons inaudíveis que representam, significam e resistem ao olhar colonial.
Mas, e se Paul tivesse tido acesso ao livro Discurso sobre o colonialismo, de Césaire? Essa é uma das perguntas-chave que constrói o dispositivo elaborado por de Groff. Em conversa com Carol Almeida, curadora do 10º Olhar de Cinema, o pesquisador, professor e artista mencionou seu desejo de adotar os mesmos procedimentos técnicos que estavam disponíveis na época de Haesarts, para elaborar um filme que ele poderia ter feito, caso ele tivesse se aproximado de pensadores negros da época. O diretor defende seu argumento fazendo uma crítica à ideia de que o fato de “os artistas serem frutos de sua época” não justificaria a adoção de práticas racistas, como as de Paul, uma vez que, ao mesmo tempo que adotava e reproduzia uma visão impositiva e distorcida sobre a arte congolesa e africana, havia uma outra rede de circulação de discursos que combatiam e elaboravam formas distintas de leitura acerca do mundo, da arte, da política e do colonialismo.
Nas mãos de Mathias de Groff, Under the black mask tornou-se um arquivo vivo. Não para preservação do passado colonial, mas para queimar o que for preciso e rasurar com novas letras (e voz) aquilo que estava grafado em suas imagens. É a partir dessa ação de rasgar e selecionar as imagens do filme de Paul Haesaerts que De Groff mantém as máscaras congolesas na tela e sobrepõe aos artefatos a voz de Maravilha Munto, slammer que recita visceralmente um trecho do livro do poeta do Movimento Négritude, em uma das línguas congolesas, o Lingala.
Por um lado, a reinvenção do voice over dá movimento e reação às máscaras congolesas, a partir da tentativa de ativar um discurso opositivo, que poderia estar mais condizente e próximo às materialidades e origem das peças, associados aos movimentos anticoloniais e de liberação da época. No entanto, a tomada de decisão de sobrepor uma “voz real” às peças de artes congolesas aprisionam novamente aquilo que elas – ainda em que seu profundo silêncio – tenham a nos dizer. A escolha movida pela roupagem de um discurso de “autenticidade” parece nos conduzir à crença de que os sons proferidos por aquelas peças, artigos e artefatos seriam, automaticamente, africano e anticolonial. Assim, constrói-se, dentro da autenticidade, uma controversa origem essencializante.
As matérias falam.
Em A Resistência do Objeto – O Grito da Tia Hester, o poeta, professor e filósofo Fred Moten, ao tecer uma crítica ao trabalho de Saidiya Hartman e a sua leitura e escolha de não reproduzir em seus estudos o relato de açoitamento de Tia Hester, contada por Frederick Douglass, afirma que “as mercadorias falam”. Apresentando a resistência do objeto/matéria/materialidade preta como uma condição ontológica e como um esforço propriativo, o estudo de Moten atualiza as significâncias da sujeição e subjugação (que se manifestam no filme de Paul pela apropriação das artes congolesas). Nesse sentido, o ensaio de Moten nos move a ensaiar uma outra forma de imaginação: poderíamos reformular o nosso olhar para as imagens de Paul e para a pergunta que ativa o dispositivo do curta de Matheus de Groff? E se nos perguntássemos: como/o que as máscaras falam?
Tal questão evoca a pensarmos na resistência na devolução do olhar das máscaras e artefatos congoleses. Não pela conjunção entre as imagens e o Lingala, que instaura uma nova roupagem sonora e discursiva ao conteúdo fílmico original, mas pelo o que as matérias, materialidades, traços e cor dessas peças e artigos de arte produzem enquanto matéria sônica, enquanto resistência de dentro do circuito fílmico de sujeição. Nesse sentido, os momentos de silêncio do filme Under the white mask podem surgir como uma tramação, ruptura e vingança do gesto colonial de Paul Haesaerts. E, também, nos estimulam a imaginar que, desde sua origem, no enquadramento inicial de Haesaerts, as máscaras já estavam falando.
O limite entre reencenação das imagens coloniais e da reformulação e reconexão entre as peças com sua origem e o público, suspende e mantém, ao mesmo tempo, o status do filme original. No limite, apesar da voz vibrante de Maravilha Munto e do incontornável texto de Césaire em Sob a máscara branca, a imposição de um discurso pela voice over reatualiza contraditoriamente, dentro do desejo anticolonial, o gesto primeiro do colonizador.
Sim, as matérias falam e interrompem/reformulam/reencenam a violência imposta pela apropriação e a cena de sujeição dos objetos. Mas como ouvi-las?
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