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A intenção como limite da imaginação

No dia-a-dia monótono e repetitivo da quarentena à brasileira, Allan Ribeiro e Brendo Washington compartilham o tédio e uma casa. Enquanto o som da TV invade o quadro e sinaliza o contexto político brasileiro de 2020, Allan filma os detalhes de algumas partes do corpo de Brendo. Proximidade estabelecida, uma conversa entre os dois se desenrola, até que o corte nos leve para a figura de Brendo, que está posicionado frontalmente à câmera, declarando que eles estão fazendo um filme e compartilhando qual é sua temática. Embora funcione como uma fissura entre os limites da ficção e não-ficção, é nessa primeira auto-enunciação que acessamos o que vai se alastrar por todo o resto de O dia da posse (2021): retórica, intenção manifesta e autoconsciência formam a tríade que torna o novo filme de Allan Ribeiro uma experiência discursivamente fechada e morna.

O filme de abertura do 10º Olhar de Cinema tem como personagem principal um jovem de 23 anos que estuda Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre a feitura da comida e o corte de cabelo dentro de casa, a rotina do isolamento é acessada pela câmera empunhada por Allan Ribeiro, que parece estar sempre em busca de algum tipo de movimento para contrastar com a vida monotemática imposta pela pandemia da Covid-19. Se o mundo ao redor de Allan e Brendo pouco se move, brincar de fazer filme, ensaiar para a inscrição do Big Brother Brasil ou sonhar com o pronunciamento do dia em que se tomaria posse do cargo de Presidente da República do país viram atrativos para nos aproximar da personalidade de Brendo. Mas é nesse mesmo movimento que o filme assume como dispositivo uma metalinguagem constantemente reafirmada, cujos procedimentos reiteram sempre o lugar comum mais banal da revelação dos bastidores da ficção. .

Frases como “diante de uma câmera ninguém é o que é de fato” e “se é um filme, não é real” antecipam ininterruptamente a leitura da espectadora. Nesse sentido, pouco se dá espaço para que a audiência consiga se encontrar com o longa-metragem de maneiras que não sejam aquelas enquadradas e verticalmente delimitadas por ele mesmo. Ainda que a troca entre os dois desperte entre nós certa vontade de compartilhar os encontros, como aqueles que presenciamos na relação entre Brendo e Allan, a forma do filme não se impregna dessa mesma disponibilidade. Se o fechamento de sua narrativa e de seus quadros poderia ser lido como reverberação material do clima produzido pelo isolamento sócio-geográfico que estamos atravessando, por outro lado, o circuito interno criado pelo filme acaba se sustentando mais em sua verborragia autoprotetiva do que na elaboração formal daquilo que se apresenta como temas e desejos que o estruturam.

A construção dessa “armadura retórica” produz uma profunda desatenção aos movimentos despretensiosos e inesperados que a câmera de Allan parecia se empenhar para capturar. O filme parece mais deslumbrado com o próprio gesto de desconstrução de seu esqueleto ficcional do que com as aparições intensas que se apresentam diante da câmera. O vagar pelas janelas da vizinhança, o ir atrás do registro de um pequeno bicho no espelho ou de uma inesperada gota de sangue dentro do box do banheiro anunciavam as miudezas e marcas de um cotidiano, mas acabam sendo devoradas por uma narrativa autoconsciente que, com o decorrer do filme, torna-se cada vez menos atrativa.

Quando O dia da posse abre espaço para que seu discurso se afrouxe, a afronta de Brendo perante Allan e o jeito engraçado do personagem principal transbordam deliciosamente na tela. “Allan que é meu sugar daddy!”, diz Brendo numa videoconferência que está fazendo com um amigo, enquanto os dois se dividem entre fofocar sobre a vida de uma amiga, que está desejando encontrar seu “paitrocínio”, e planejar os horários de estudo para as matérias da Universidade. É em momentos como esse que o inesperado que a câmera vagante de Allan procurava nos chega. O mesmo acontece quando Ribeiro filma seus vizinhos dançando ou correndo em uma esteira nas salas de suas casas. No momento em que a materialidade do cotidiano encontra espaço para minimamente se impor, o movimento que vem de fora para dentro do apartamento cria desenhos no quadro que falam mais do que a intenção de reafirmar a todo tempo o gesto que o filme está querendo fazer.

O movimento de entrelaçar aspectos ficcionais e documentais não é novidade para as obras de Allan Ribeiro. De maneira porosa, Esse Amor que nos Consome (2012), por exemplo, sorrateiramente acompanha Gatto e Bardot em sua criação artística e na luta para permanecerem no casarão antigo do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que desenha a ficção e o mistério que são despertados pelos seres noturnos da cidade e pela crença do casal nos orixás. Cada linha que costura o grande lençol de retalhos que é Esse Amor… nos leva a um ponto da “cidade maravilhosa” que, contraditoriamente, aparece pouco solar nos quadros, mas é sempre aquecida pelos encontros, como uma conversa na praça ou um ensaio rotineiro da companhia de dança.

Em O dia da posse, acompanhar os pombos caminhando pela janela sob uma conversa nostálgica, dura e sincera condensa a tensão entre ficção e não-ficção de forma mais aberta do que a escolha de terminar o filme encenando a despedida de Brendo da casa de Allan. Enquanto tomamos a posição do diretor, que filma com distância o corredor que dá acesso ao seu apartamento, acompanhamos a saída do protagonista que, segundos depois, retorna do elevador. Em seguida, escutamos o diretor: “agora você vai embora de verdade”. Nem nos últimos segundos as espectadoras se livram da retórica. Com um final previsível, o novo filme de Allan Ribeiro pouco nos deixa brecha para exercitar a imaginação e compartilhar o sabor dos encontros, traços tão marcantes na filmografia do diretor carioca.


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