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Ensaio enquanto filme, traição enquanto método

Como nos filmes que aqui serão comentados, esse texto se fará assumindo o gesto de costura de diferentes retalhos e derivando pelas pistas que as coincidências abrem. Partimos de um dos últimos filmes de Eduardo Coutinho, Moscou (2008) para pensarmos a relação entre ensaio e cinema, chamando atenção menos ao ensaio enquanto gênero do que justamente enquanto processo de criação. O inacabamento primordial de Moscou nos parece uma base para analisarmos alguns pormenores que constituem, por exemplo, o longa Esse amor que nos consome, de Allan Ribeiro, de 2012. A pedagogia do escuro do primeiro acende os vaga-lumes do segundo. Fazemos a deriva ainda de um texto recente, publicado na Cinética, intitulado Um silêncio da imagem. Não que aqui estejamos tratando de um silêncio, mas talvez sim de uma ética do silêncio – noção que reforçaria, quem sabe, uma outra relação com filmes que tem a ver com uma certa postura de escuta diante deles. Assim, não se trataria só de ouvir o que é dito, tampouco o que é mostrado, mas justamente, ali, seja quando se cala, na partilha de uma dor ou em alguma coisa da vida que se exala, funda-se uma relação singular de escuta.

Talvez Moscou nos ofereça alguma coisa em relação a tela negra a partir da pedagogia do blackout no teatro. O final do filme adianta o blackout na encenação como se fosse o término da peça. O narrador, Coutinho, lê as rubricas do texto dramático, prossegue sem que a fala tenha um ponto final – o som da sua voz é reduzido de volume e cresce o som ambiente do teatro, habitado pelo Grupo Galpão. Depois que, por assim dizer, a cena visível da peça termina, Coutinho retoma aquelas que são as últimas falas de Olga, umas das protagonistas da peça As três irmãs, de Tchekhov, que é motivo da empreitada cênica que vemos. “Vão esquecer…”, diz ele, “mas o nosso sofrimento se transformará em alegria para aqueles que virão depois de nós”. Repetição que acentua o esquecimento, ao tempo que o combate pela anacronia do uso da rubrica que já não mais indica algo aos atores, senão aos espectadores – ou, se quisermos, indicação à cena da vida. O blackout, que incide numa tela negra, é uma espécie de passagem de tempo-espaço. No teatro, nos devolve ao mundo… e no cinema? A passagem da voz de Coutinho à imagem do elenco conversando, reafirma que o elenco sobrevive e que, no caso do filme, a peça (enquanto roteiro) era apenas motivo para uma outra coisa.

Bom, no ano de lançamento de Moscou, foi publicado na Cinética um especial sobre o filme reunindo um conjunto de textos, dentre os quais nos chama atenção o de Ilana Feldman, “Do inacabamento ao filme que não acabou” – que retomaremos mais ao final -, e um segundo de Fábio Andrade que nos parece dar linha para a costura que aqui se faz. “Em Moscou, Coutinho nos leva para o escuro”, diz Andrade, ao tempo que tirando consequências da cena em que dois atores cantam “Como vai você”, de Roberto Carlos, num breu, iluminados apenas por isqueiros e por suas vozes, ele continua extraindo uma pedagogia da cena: “nos entregarmos às infinitas possibilidades daquela escuridão – capaz de se amalgamar com a da própria sala de cinema. Em ambos os casos, o que se impõe é uma canção, um ritmo, uma melodia que, embora absolutamente familiar, evoca a cada ouvido um conjunto de sensações diferente, único, intransferível”. Único sim, mas não tão próprio pra dizer posse, nem tão individual para dizer indivíduo. A canção de amor, ora por sua dimensão popular, ora pelo amor ali narrado ou a angústia ali cantada, reconstrói uma comunidade mínima na incompletude que nos forma – incompletude, vale dizer, que o amor acende.

Ali, onde a imagem se apaga e a canção se ressalta, parece também trecho justo a aporia do amor: “Porque o amor sempre é um salto no escuro”, como canta Jorge Mautner. Do murmúrio à capela entoado pelos dois, do isqueiro ao fósforo que ritmam o encontro, o amor aparece ora como a chama intermitente ora, contraditoriamente, como a escuridão que acende os vaga-lumes. “Anoiteceu e eu queria só saber”, cantam os dois às voltas com uma pergunta sem resposta, tendo a vida modificada, a paz esquecida e o si despossuído de si (“nem sei se gosto mais de mim ou de você”). A canção cantada e decantada atua como máscara: rosto postiço que serve a nós espectadores, uma vez mergulhados na escuridão. Não há mais lugar, não há mais Moscou, nos resta o salto provisório no escuro. A chama intermitente que se acende na zona de indistinção é o jogo, a comunicação, a arma e a luz no fim do túnel a quem saltou no escuro – na noite experimental do cinema (em que estamos) e do amor (que estão os personagens). O prólogo do filme – um ator com uma fotografia e uma memória encenada – nos diz da demolição de um cinema, que doeu nele mais do que a visão da sua própria casa sendo destruída. Sob o risco da sobreinterpretação, pensamos que o cinema se reconstrói ali onde parece menos, se refaz sendo um outro ou qualquer lugar. Demolido, o cinema se reconstrói enquanto Moscou ou ainda, porque jogo com o tempo, o cinema se refaz enquanto ativação de um espaço improvável, afetivo e nunca-visto. Se reconstrói ao explorar as potencialidades criadoras do preto fundamental do espaço teatral. No filme, do mesmo modo que o real se mostra num lampejo da chama de um isqueiro, a vida se expõe e se refaz num processo de três semanas. Salto no escuro do teatro para reconstruir o cinema. Salto ensaístico, não porque o filme é um ensaio, mas porque o ensaio reforça-se enquanto filme.

Também em 2009, Alan Ribeiro lançava o curta Ensaio de Cinema. No filme, por um momento, assume-se a tela negra como um corte que separa (ou une?) o filme especulado, cujo nome seria Dança de Barbot, do filme especular, aquele que se faz e coincide com a duração do que vemos. Se primeiro temos o casal Barbot e Gatto em sua vida, diríamos, ordinária – acordando, preparando o café, pondo em dia os afazeres -, logo em seguida prepara-se diligentemente o ritual que dará origem ao filme por ser feito, que, bem sabemos, já se se faz ali onde é a preparação. Close na mão que faz o pão, close na mão que costura o vestido. O filme especulado começa já se expondo enquanto construção, não parecendo, no entanto, tratar-se apenas de uma mise-en-abyme (embora também o seja). O começo desse duplo do filme é, portanto, ponto que o une à vida ou, mais precisamente, ponto que refaz a união com seu extracampo – momento que ele ainda não o era, já o sendo. Como também, a inscrição da data e do lugar (tal como em Moscou) é um falso fim: a conversa do casal ao pé da mesa jantando o pão preparado, é o momento em que, contentes, celebra-se o ensaio, louva-se o dia vivido e elocubra-se ajustes a serem feitos na performance por se apresentar um dia, quem sabe. Cerimônia do cotidiano que refaz o elo do ritual com a vida, sem a ela se submeter. O filme, no entanto, triunfa-se no inacabado, naquilo que é processo, na forma mesmo do ensaio. Como se o cinema, por um momento, achasse seu lugar no interstício, no processo laborioso, na tentativa, na fenda, finalmente – ou, se quisermos, naquilo que não tem nome. Afinidade fundamental com o devir: as coisas que não tem forma pronta, caem bem ao cinema, desde que o cinema não se apresse a colocar seu nome ao que ainda é inominável. Como o amor, o cinema joga com a incompletude sem a esperança de complemento, mas reticenciando de modo a diferir sempre, aferindo mais.

É, no entanto, no filme de 2012 de Alan Ribeiro que essas duas instâncias – o amor e o ensaio – se justapõem, talvez, de maneira mais direta. Nos referimos aqui ao longa Esse amor que nos consome e seu método da traição. Não estamos certos que traição seja a melhor palavra, mas se ela não bem traduz, acreditamos que ao menos ela não reduz a força que ali se expõe. Retomaremos isso mais adiante para falar do gesto de tradução para o cinema das coisas do mundo e, em especial, das coisas da arte – marcadamente a dança. Tradução que, a bem dizer, realça sua dimensão traidora, e o faz porque ao traduzir recria-se a coisa, sem a dominá-la.

Haveria uma primeira aproximação mais visível entre os dois longas que citamos aqui nesse texto, o de Coutinho e o de Ribeiro, que se dá naquilo que é a forma do ensaio, forma em si que não tem um ponto de chegada, um resultado por se fazer, mas se vale enquanto processo. Nem mesmo o cinema, no ensaio, é o fim. Em Moscou, por exemplo, não se pode dizer onde começa cena da peça, ensaio, vida pessoal, preparação… as coisas se justapõem de tal modo que ao invés de um arco, o filme se dá numa deriva em que tudo o é, não sendo por completo. As três semanas que se propõe para o processo de construção, já são em si a criação. O caminho da criação é, pois, a própria criação. “O inacabado, o fragmento, é maravilhoso”, diz Coutinho aos atores no início do processo, como também escutamos dele essa frase no início do filme. Deriva não por um lugar, posto que o ambiente do teatro ali evidencia a possibilidade de ser qualquer lugar ou lugar nenhum. Deriva, portanto, por alguma outra coisa, como na cena do escuro que começamos esse texto. Moscou, a cidade sonhada, o paraíso perdido, o lugar evocado, está no fora de campo das cenas, mas também é o próprio filme – como exposto no título do longa. Assim sendo, não o é por completo, e parece ser nessa margem aberta que reside sua força. Nós, espectadores, diante de Moscou, as personagens distantes de Moscou… eis o paradoxo. Fato semelhante parece acontecer em Esse amor que nos consome. O belo título do filme é homônimo a um espetáculo por se remontar, último de uma lista de montagens cênicas que aquela companhia está preparando, como escutamos de Gatto em conversa por telefone. O filme mesmo, enquanto colcha de retalhos, faz da cena final um encontro entre o plano, em que vemos a companhia estender na marquise do prédio a colcha de retalhos por sobre a placa de “vende-se”, e o programa do longa. Lemos essa justaposição entre plano e programa a partir da leitura de um outro texto de Fábio Andrade (2012), também na Cinética. Diz ele: “As agulhas e linhas que não existem – ou seja, a arte – estão ali apenas reafirmando o gesto simbólico da costura, reconectando as diferentes roupas que já coabitam em um mesmo mapa multicolorido, plural e concreto”.

Não é à toa que em ambos os filmes de Alan Ribeiro, que tratamos aqui, Barbot reaparece em cena costurando. No curta, ele entra em campo com sua maleta de costura para finalizar o processo que fazia no extracampo, antes mesmo do filme começar. No longa, um dos momentos é justamente ali onde o cinema é reclamado, intervindo de modo a compor o processo. A cena final de “Otelo”, que nas palavras de Gatto seria uma “cena muito cinematográfica”, é traduzida no plano seguinte de modo a trair o cinema, não em seus recursos ou mesmo numa perturbação mais radical da forma, mas num avizinhamento despossuidor. Metáfora justa seria dizer que o cinema, finalmente, entra na dança (e não contrário). O desfecho da cena, sabemos, co-estruturada pela canção que continuando a reabre, deságua na costura que Barbot diligentemente conduz e comenta. Não fica nítido se, ali, trata-se de aperfeiçoar a sutura na colcha porvir ou do figurino de Claudia, que acabamos de ver dançar, vestida com uma composição de retalhos que dá forma a uma saia – forma ensaística, vale dizer. No entanto, a mão visível de Barbot que costura, no curta e no longa, mais forte insinua a aparição da arte, ali mesmo onde parece tratar-se apenas de uma preparação, de um bastidor. No curta, ele pergunta a Gatto se é preferível costurar o figurino com linha preta ou branca. A escolha de uma ou outra é uma escolha entre assumir a costura ou disfarçá-la, sabemos bem. A pensarmos pela evocação do “cinematográfico”, primeiro sugerido por Gatto e em seguida concretizado pelo filme, nos parece haver ali uma dimensão de traição que se dá porque o cinema não é o fim. O ensaio como forma nesses filmes parece, finalmente, fazer o cinema parte do processo e o inacabado margem para uma costura por vir que, a bem dizer, não é o cinema que o fará.

Assim, no contorno que faz, o sutil desfecho do filme sublinha também a força decisiva de um programa: estender coletivamente a colcha na varanda, através das janelas que vimos serem abertas pelo esforço de reativação das forças e da circulação do ar por aquele prédio, se expõe quase como um manifesto de ocupação em que a colcha é também bandeira, como sugere Alessandra Brandão e Ramayana Lira em conversa na Mostra 10 Olhares, mas sobretudo poética e processo. Se a bandeira sobrepõe-se à especulação imobiliária e ao “direto com o proprietário” isso se dá porque seu cumprimento é na costura das diferenças que a cresce em tamanho, cores e texturas – diferença e multiplicidade, para resumirmos. A “resistência pelo retalho”, para usar o termo posto por Lira e Brandão novamente, vence a propriedade privada. E, nos lembra, Barbot: para a especificidade desse desafio é preciso reforçar a costura. O ensaio, a obra que o ensaio cria, faz dessa bandeira não mais metáfora, mas metonímia, de modo que a costura deve ser reforçada em muitas dimensões (artisticamente, pelo sagrado, materialmente, etc.).

A pensarmos novamente pelos títulos desses três filmes, acreditamos haver uma sugestão para a obra fílmica ela mesma enquanto um bordado, mas o que vemos finalmente é o avesso (os nós, as costuras, os remendos, etc.). A imagem bordada é insinuada, mas materialmente ausente: importando o avesso e o bastidor. Porém, a imagem que ela produz e sustenta é tão difusa quanto imprecisa: “Esse amor que nos consome”, que intitula o filme, não se confunde nem adianta o espetáculo ainda por se remontar – não sendo sequer seu ensaio, é ao contrário, a tentativa e a emergência de algo outro. Nesse título, mais decisivamente a traição se mostra quando o amor que consome é o mesmo que mobiliza a criação. Vida, obra e ensaio se contaminam de tal modo que se torna impossível separá-los. Em Ensaio de Cinema, os verbos no pretérito imperfeito reforçam a pulsão da incompletude e uma abertura que se dá entre o que se vê e o que reconstrói o visível: o cinema reclamado por Gatto na performance – a pensar, por exemplo, no enquadramento que ele faz com a mão ou em suas falas ocupando a direção da cena – ora coincide com o plano que vemos, ora é o cinema ele mesmo que se defasa para potencializar o jogo especulativo que refaz a matéria especular. Eis a traição: “onde queres o ato, sou o espírito”. Finalmente, em Moscou, escreve Ilana Feldman, “todas as cenas, como cacos coloridos de um mesmo caleidoscópio (…), são dispostas soltas e unidas, isoladas e solidárias, instáveis e equilibradas, sem nunca chegarem a formar uma imagem matricial”. Ausente a imagem matricial, sabemos que ela não é remontável – ela mesma é postergada a um futuro intangível, vulnerável a todas incertezas que atravessam aqueles corpos que protagonizam os filmes. O título do texto de Feldman reforça o jogo proposto: do inacabamento ao filme que não acabou. Mas, nesses casos em que o ensaio assume-se enquanto filme, haveria acabamento? Em outras palavras, nesses filmes, já não é mais a imagem matricial que importa, nem bem elas o acabariam. Uma estranha e deliciosa margem se abre quando o ensaio, enquanto repetição e tentativa, torna-se a criação. O cinema traduzindo o ensaio enquanto criação, o ensaio traindo a vinda enquanto tentativa e repetição.


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