A SEITA 2021 leve

Um dândi na periferia do futuro

Em meados da década de 2010, em um momento no qual ainda não estava claro o caminho político que o país tomaria, André Antônio realizou A Seita, uma das primeiras novas ficções pós-apocalípticas que tomaram de sobressalto o cinema brasileiro nos últimos anos. Nascido da colaboração com os seus companheiros do coletivo Surto & Deslumbramento, o filme foi realizado com um orçamento mínimo, adquirido inicialmente para realizar um curta-metragem. Em 2040, no filme, o mundo se encontra dividido entre uma sociedade próspera e regrada, assentada em colônias espaciais, e um planeta Terra abandonado, em que restaram os que não tiveram chance de ir embora. O protagonista do filme é um jovem herdeiro de gosto refinado e de silhueta delicada e esguia, construído como um dândi do século XIX, cuja aparência é reminiscente da pintura Pré-Rafaelita. Entediado com a vida nas colônias espaciais e nostálgico do velho mundo em que viveu sua infância, ele retorna à sua cidade natal abandonada, Recife. Em voz over, o personagem narra sua história de um ponto de vista do futuro, quando registra em um gravador suas recordações já velho, “isolado e falido em uma torre de marfim espacial”, incapaz de diferenciar o que foi apenas um capricho de sua imaginação e o que foi algo que realmente viveu. O filme apresenta-se, portanto, como um sonho dentro de um sonho: o personagem procura retornar pela memória a uma experiência do passado enevoada, experiência que consistiu, ela mesma, em uma tentativa ludibriada de regressão no tempo.

A Seita narra a história de um viajante espacial que resolveu romper com o sentido do tempo, dirigindo-se para o passado. O protagonista do filme procura em sua cidade natal não apenas a matéria de suas lembranças, mas uma imagem do mundo anterior à consolidação da nova sociedade do trabalho, que fora instituída por uma campanha de vacinação obrigatória universal, que pretendeu eliminar o sono da humanidade. A campanha havia sido bem-sucedida nas colônias, mas na periferia do sistema ela se encontra ainda mal implementada, como de costume. O personagem encontra em Recife um mundo em ruínas glamouroso e fascinante, onde as pessoas, misteriosamente, ainda são capazes de dormir. O filme de André Antônio retoma, assim, um motivo que sempre permeou a imaginação do futuro no Brasil: a experiência de não-simultaneidade entre o centro e a periferia do capitalismo global. A ordem moderna do tempo baseou-se na convertibilidade de diferenças espaciais em diferenças temporais, das distâncias geográficas em distâncias históricas, no qual o centro apresentou-se como uma imagem das expectativas de futuro da periferia. O tempo adquiriu, assim, um sentido claro de direção. Em um momento em que a retórica de desenvolvimento que animou o país no início da década sofria o começo de uma retração catastrófica, o filme realiza uma série de torções no modo de experiência periférica do tempo, a partir do tratamento singular que oferece a seu personagem fora do compasso histórico.

A Seita é uma ficção científica bastante consciente de sua condição periférica que resolve tomar de empréstimo da metrópole seu imaginário da decadência. O filme imagina a condição depauperada da periferia como os decadentistas imaginavam a Europa crepuscular do fin de siècle. O protagonista passeia nos espaços deteriorados e desertos do processo de urbanização descontrolado e desigual de Recife se deleitando esteticamente com sua decadência pobre e acanhada, sem a grandeza de um passado aristocrático nem a aura de uma grande civilização degenerada. A concepção estilística do filme termina exprimindo a intrigante sensibilidade do personagem, em que se encontram a indiferença e o preciosismo: A Seita afirma um maneirismo pobre, que assume abertamente a estética precária e desavergonhada de uma ficção científica de baixo orçamento, ao mesmo tempo que ostenta um gosto afetado pelo capricho e requinte dos detalhes, tratando cada imagem como uma superfície plana a ser meticulosamente decorada. O gosto pela ornamentação nunca foi afirmado de maneira tão explícita e consciente no cinema brasileiro. A Seita deseja assumir, ainda, o estado de ânimo torporoso do seu protagonista, preferindo desdobrar-se no tempo vagarosamente, de modo a seduzir o espectador com seu ritmo letárgico.

O desejo do personagem de voltar ao passado não representa no filme a aspiração reacionária de ver restaurado um tempo perdido, mas expressa uma certa inconformidade com o sentido compartilhado do tempo. O filme exprime, primeiramente, uma certa indiferença em relação ao horizonte de inserção na sociedade do trabalho, que se manifesta tanto pela intriga escolhida, quanto pela opção por um modo de produção cinematográfico em certa medida amador, fundado pelo trabalho entre amigos e por um orçamento bastante inferior à norma do mercado, em um momento de consolidação da indústria da cultura no Brasil e de emergência de Pernambuco como polo produtivo nacional. O filme sugere ainda – e de maneira mais radical – um certo ceticismo em relação às promessas dominantes de redenção histórica. O dândi que conduz o filme não teme a distopia, mas a persegue com fascínio, embebido por sua atmosfera decadente. A sua intrigante afirmação da distopia não exprime apenas o gosto decadentista de identificar em toda postura desviante um signo maior de requinte, mas manifesta uma certa performance da identidade queer como indiferente ao horizonte de inserção à ordem patriarcal heteronormativa, que nos anos 2000 definiram a compreensão hegemônica das lutas por reconhecimento LGBT. O filme, não por acaso, decide encenar a identidade queer sob o famigerado signo do antinatural, expressando seu modo de estar no mundo a partir de um personagem e de um filme para o qual tudo é enfeite e todo enfeite é artifício improdutivo, é crime contra a Natureza. A apropriação do motivo do antinatural é uma reivindicação de um modo de estar no mundo que não espera ser assimilado à ordem normativa sexual e familiar hegemônica, que afirma seu caráter desviante. A escolha de André Antônio de pôr no centro do filme a instituição da pegação e da clandestinidade aponta para a mesma direção. A vida em segredo aparece no filme não como o estado de opressão em que vivem as minorias sexuais; ela é, antes, um ritual sombrio e sagrado a ser monumentalizado. A pegação, a festa secreta, as identidades ocultas, tudo adquire a aura de uma cerimônia esotérica, feita para que os iniciados gozem de seus segredos. A imaginação distópica em A Seita expressa, portanto, menos o temor pelo futuro catastrófico que nos aguardava, que o desejo de desertar dos horizontes disponíveis de redenção histórica, em nome da invenção de uma maneira queer de estar no tempo.

As deambulações do personagem, insone e enfastiado, aprisionado em um tempo cíclico de encontros amorosos passageiros e insatisfação contínua, parece hoje expressar a atmosfera de meados da década, em que uma juventude se encontrou perdida em meio a um ciclo infernal de superaquecimento e frustração de expectativas. O personagem do dândi, não por acaso, abandona seu fastio brevemente, quando descobre a seita secreta que deu título ao filme, que conduz em segredo a revolta contra a vacinação. Ele infiltra-se na luta política clandestina, antes de ver o movimento ser dispersado e seu líder assassinado pela polícia. Realizado justamente no início da crise econômica dos anos 2010 e logo depois da dispersão do entusiasmo de junho de 2013, A Seita revisita temas clássicos de nosso imaginário político, como a vida na clandestinidade, o terrorismo revolucionário e a violência de Estado, sob uma atmosfera nebulosa em que se confundem euforia e desilusão, temas que desde então têm assombrado o cinema brasileiro. Em um momento em que revisitamos o cinema dos anos 2010 em busca de sinais de uma compreensão do ciclo histórico que estávamos embarcando, A Seita revela-se como um filme incontornável.


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