leona-header

O animal belo feroz

Quando assistimos a sequência de episódios que compõe a saga da Leona Assassina Vingativa adentramos a particularidade do universo forjado no instante em que uma câmera amadora é acionada com o intuito de experimentar, através do registro em vídeo, outro modo de recriar aquela brincadeira de encenação já improvisada tantas vezes quando de bobeira pelos cômodos da casa, na companhia vespertina das amigas depois de verem juntas algum episódio de Maria do Bairro ou A Usurpadora. Nessa tarde, o registro será mais um caminho para realizar a brincadeira cujo vigor consiste justamente em se atrever por tantas modalidades de investimento quanto a imaginação e os meios permitirem. Se o audiovisual – implicado nas especificidades do YouTube enquanto plataforma de exibição – foi a via adotada, é no cotejo entre os filmes que percebemos o desenvolvimento de diferentes percursos narrativos, estilísticos e estéticos indicando a variação de agenciamentos que, com o decorrer das produções, a faísca da brincadeira efetuou no audiovisual e o aprimoramento audiovisual foi condicionando na brincadeira.

Partindo do filme de fundação, intitulado Leona a Assassina Vingativa 1, acessamos a novidade de procedimentos que atravessarão a maioria dos episódios posteriores. Leona Vingativa e a Aleijada Hipócrita tem seu primeiro encontro observado pelo olhar de uma câmera única manipulada no ritmo dos impulsos corporais que se manifestam tanto na risada quanto na respiração ofegante de quem filma. A Aleijada acusa Leona de ter assassinado o próprio marido e as duas dão corpo ao frenesi de uma interação eufórica que agita o espaço e a si mesmas.

O arroubo dessa agitação inventa um curioso jogo entre o visível e sua enunciação, de onde os filmes retirarão parte da força cômica e fecundidade dramática. O jogo ocorre na medida em que não existe identidade assinalável para qualquer um dos elementos em cena até o momento em que as personagens se relacionarão com eles. Assim, aquilo que primeiramente identificaríamos como uma cadeira se revela enquanto porta uma vez que Leona bate nela antes de entrar. Já o que poderíamos supor ser um grampeador de papel é apresentado como a câmera de filmagem que Leona destruirá no ímpeto de aniquilar as provas contra si. No limite, tudo pode se tornar outra coisa a depender da verve criativa que anima a intervenção das personagens.

A novidade desse jogo de ressignificação das aparências – já bem familiar às nossas memórias de infância ou à experiência empírica de qualquer menina e menino que ronde os oito anos de idade – diz respeito ao modo em que, ao se inscrever no vídeo, a brincadeira põe em xeque uma série de postulados das instituições (cinema ou televisão) com as quais flerta. A começar pela chave da verossimilhança que colapsa na indeterminação conferida a cada objeto ou representação. Leona não nos ativa a imagem de femme fatale por sua fisionomia reproduzir o ideário de uma típica femme fatale, mas pela vitalidade inconfundível de sua figura. Do mesmo modo, a Aleijada Hipócrita não é aleijada por lhe faltar o movimento das pernas, mas por circunstancialmente ser tratada e se manifestar como tal. A verdade não será assegurada por qualquer regime de nomeação previa, não obedecerá às limitações do que está à vista. A verdade aqui é matéria de performance e só existirá reformulando-se na imprevisibilidade de cada interação ocorrida.

Assim, os episódios vão prestando uma solene irreverência à tradição de cada linguagem que visitam. Talvez por isso, a presença da câmera corpo que se expressa e até ri enquanto filma não incomode a experiência da fruição. E não se trata aqui de qualquer complacência com a precariedade técnica da filmagem, mas a súbita percepção de que aquilo que poderia ser interpretado como enfraquecimento do poder envolvente do drama – dentro do paradigma da transparência que orienta a filmagem naturalista a esconder os meios através dos quais ela se realiza – pode se tornar seu potencializador, uma vez que nos transporta com ainda mais intensidade para o viço da brincadeira ao evidenciar os rompantes irreprimíveis da cinegrafista que, assim como nós, teve sua atenção surpreendida pelo desenrolar anárquico das cenas. Nessa irreverência, portanto, a saga de Leona Assassina Vingativa funda novos medidores de eficiência para as convenções gramaticais que costumam direcionar a elaboração das narrativas audiovisuais.

Outra modalidade narrativa que será interpelada pela anarquia da saga – e provavelmente onde a interpelação ocorre de maneira mais evidente e implacável – é a linguagem televisiva. O esquema dramático das novelas é diretamente invocado no teor da trama e no arquétipo das interpretações. A rivalidade feminina vivida entre as personagens, a atuação apelativa que dispara o drama e a tônica afetada que rege os diálogos são alguns dos signos que, acionados pela mise-en-scène de Leona Assassina Vingativa, a aproxima de um esquema melodramático consolidado pelas novelas. Esse esquema, contudo, será investido até o limite em que seu próprio código de conduta for ofendido. Porque em Leona Assassina Vingativa a afetação se exacerba na gesticulação e entonação das personagens, o apelo é desenfreado pelo conteúdo e volume sonoro das falas e a tal rivalidade feminina rompe qualquer barragem de contenção ou código de etiqueta já que tudo é motivo para que as personagens se atraquem fisicamente. Os procedimentos naturalizados pela novela são, assim, estranhados na mesma medida em que são reproduzidos.

Nesse exercício heterodoxo, Leona Assassina Vingativa canaliza suas energias para o elemento que parecer ser o real propulsor de seu curso narrativo: a intensidade atrativa do choque. Propulsor percebido na fúria corporal que, mais do que uma ideia de enredo, incita o desdobramento das situações e faz a filmagem soar como um pretexto (ou dispositivo) para que os corpos possam colidir novamente. Tal desejo pelo choque também organizará as operações de montagem na medida em que a narrativa vai se complexificando com o aumento da quantidade de cenas a partir do segundo episódio. Não à toa, o primeiro corte que assistimos em Leona a Assassina Vingativa 1 é efetuado no instante em que a Aleijada bate em Leona com um tênis e existe para repetir o movimento em looping, enfatizando e criando ritmo no espasmo que o ato provoca. Já em Leona a Assassina Vingativa 2, a articulação das cenas obedece menos a uma linha cronológica de causa e consequência – considerando que primeiro assistimos a surpresa de Leona com a noticia da denúncia já feita para só depois vermos a denuncia acontecer de fato – e mais à coesão de um arranjo intensivo entre os fluxos que atravessam a obra.

Como se existisse um bicho invisível surgindo de qualquer lugar para desmantelar a ordem das coisas e a quem a brincadeira, na companhia da filmagem, tanto persegue quanto recria incessantemente; bicho-furacão que corre à revelia de predeterminações e age na espontaneidade de uma presença que desnuda e subverte as normas que a permeiam. É essa subversão que encarna quase todas as personagens femininas em corpos hegemonicamente lidos como masculinos e a demarcação do gênero se efetuará mais na postura do que em qualquer tentativa de compensação a partir de adereços ou correções visuais. Lembremos da fina ironia presente em Leona Assassina Vingativa 3 – A Aliança do Mal ao enunciar o ato de Leona em vestir uma peruca loira (aproximando seu semblante à ideia socialmente instituída de feminilidade) como justamente o movimento de “disfarce” da personagem no intuito de passar desapercebida pelo quarto de hospital em que a Aleijada Hipócrita está internada. Já um exemplo dos códigos sociais desnudados pelo desmantelo insurgente na cena pode ser encontrado nas interações entre a Aleijada Hipócrita e a personagem sem nome próprio que a serve e acompanha no hospital. Porque é no momento de fúria e eclosão da cena – sugerindo a passagem do tal bicho inquieto que deixa a Aleijada caída por cima de sua acompanhante – que a desigualdade das posições emerge sob a distinção entre a maneira como ela se refere a Aleijada – “minha amiga”- e como a Aleijada se referirá a ela – “minha empregada”. Evidenciando, assim, a relação de poder que a personagem de Leona não teme em nomear ao referir-se, na cena seguinte, ao vinculo das duas a partir do termo “a escrava dela”.

leona01

Porque se os filmes são constantemente perturbados pela ventania desse pequeno animal invisível que move tudo de seu lugar, é mesmo no corpo da personagem de Leona que ocasionalmente ele encarna sem inibição. Em torno de sua aparição os elementos e sentidos se mobilizam, adquirem força de expressão. Sua densidade de atração se manifesta tanto na habilidade com a qual Leona agrega cúmplices e companheiras para a execução de seus planos e fugas quanto na maneira em que ela faz do corpo o motor que dirige parte das operações fílmicas realizadas na obra. De todos os personagens, são seus os olhos que não se furtam em encarar a câmera e o gesto que originará uma espécie de bordão da saga indica a sua disposição em conduzir a construção das cenas ao cruzar os dedos mirando as espectadoras e incitar a filmagem no comando “pode cortar”.

Nesse ponto, é interessante considerarmos a singularidade que insere Leona Assassina Vingativa 4 – Atrack em Paris no conjunto dos filmes discutidos até agora. Realizado após um considerável intervalo de tempo em relação ao terceiro episódio da série, Atrack em Paris situa sua narrativa oito anos depois da fuga de Leona para a capital francesa. Não apenas a ação do tempo se refletirá no amadurecimento do corpo e expressividade de Leona, mas também na singularidade da proposta estética do quarto episodio em relação a alguns traços estilísticos que marcaram os filmes anteriores.

O já citado jogo entre o visível e sua enunciação será acionado no início do filme durante aquele que constitui o primeiro plano externo de toda a saga: Leona e Julio Valentina tomam champanhe na beira do rio enquanto Leona narra a si própria a partir da celebração do ambiente ao seu redor referido por ela enquanto a cidade de Paris. Eles estão rodeados por pontes e prédios que poderiam ser associados às construções características da paisagem histórica do Recife antigo, mas a ênfase do seu ato de fala – em parceria com a inserção de alguns elementos folclóricos da cultura francesa – fabula e ativa uma presença de Paris no âmago do cartão postal recifense. Invocando, assim, aquele mesmo movimento de ressignificação das aparências que impulsionou seus filmes anteriores. Contudo, ao longo desse quarto episódio, o exercício do tal jogo – que teimava em revelar a verdade enquanto matéria de performance – se mostrará bem mais tímido do que nos episódios que o antecederam. A despeito da fabulação em torno da cidade, todas as demais cenas abarcam elementos cujos sentidos e usos já se estabilizaram em noções previas. O copo servirá para beber, o telefone para se comunicar. Aquele ímpeto de enunciação que permitia a qualquer secador de cabelo se tornar uma arma de fogo não mais esquiva os objetos presentes em Leona Assassina Vingativa 4 – Atrack em Paris dos seus nomes e funções predeterminadas.

Agora, a instância da fabulação será acionada através da aplicação de recursos e técnicas audiovisuais cuja manipulação exibe um considerável aprimoramento em comparação aos filmes mais antigos. O imaginário será infligido no real por meio de procedimentos como o jump cut – que na primeira sequência confunde a personagem de Caia Coelho com a Aleijada Hipócrita dando a ver a alucinação de Leona – ou a distorção na textura da imagem indicando a passagem do sonho de Leona para seu despertar. A transfiguração da realidade não aposta mais no ato de fala enquanto seu disparador proeminente, mas conta com a sintaxe do cinema para continuar se realizando. Não por acaso, o quarto episódio nasce da parceria entre os coletivos de cinema Surto e Deslumbramento, Cine Barato e a dupla Aleijada Hipócrita e Leona Vingativa.

Se por um lado, a possibilidade de intervenção na narrativa a partir de operações formais posteriores à cena se sofisticou na construção desse quarto episódio, por outro, a intensidade energética daquele bicho fugidio que invadia cada ato nos outros filmes está menos latente no Atrack em Paris. Mesmo porque as situações do sonho ou da alucinação – nas quais os procedimentos técnicos são acionados para perturbar o real – ainda reinstituem uma separação entre realidade e fantasia. Nesses casos, o episódio retorna à terra firme da realidade após atravessar a turbulência do imaginado. Enquanto que, na passagem do animal indômito que movimentava os episódios anteriores, o real está sendo incessantemente desfeito pelo imaginado a ponto de que já não temos sequer para onde retornar.

Num primeiro momento da série, o cinema emergia enquanto disparador da brincadeira e as personagens assumiam a contínua tarefa de transformar qualquer situação numa oportunidade para desfrutarem a mistura, a briga, os tapas, a queda e o chão como destino irresistível. Cada cena era pretexto para um experimento de corpo, para que o bicho corresse solto. No quarto episódio, a imprevisibilidade não é mais a mãe da fúria e a mistura dos corpos tem data e hora certa para acontecer. O único momento em que algo de furioso surge e as personagens se atracam é na cena em que as rivais finalmente se encontram e o curso narrativo do filme já havia repetidamente nos preparado para recebe-la. Certo comedimento percebido nas interações, contudo, se afina com a postura que o transcorrer do tempo parece ter ocasionado numa Leona mais velha e aflita com o fantasma da Aleijada Hipócrita constantemente atormentando seus pensamentos. Assim, o instante em que aquele conhecido gosto pelo chão chegará a ser experimentado pelas atrizes não diz mais respeito a um encontro entre corpos, mas à queda repentina e solitária de Leona enquanto caminha preocupada pelas ruas de Paris.

Não apenas oito anos separam o momento de realização dos três primeiros filmes com relação ao período em que Atrack em Paris é feito, mas também os circuitos de exibição que envolvem cada uma das duas épocas. Enquanto na criação do primeiro episódio a filmagem nascia exclusivamente em função da brincadeira (como nos conta a jovem Leona em entrevista da época), os dois episódios seguintes serão elaborados a partir do sucesso repentino do filme de estreia na internet e o desenvolvimento da saga pode ser percebido em diálogo com as particularidades do YouTube em seus números de visualizações, caixas de comentários e índices de vídeos relacionados. Já no caso do último filme, a aproximação com o universo de realização e circulação do cinema brasileiro – considerando que foi a única das quatro obras a ser exibida em festivais – agregou à construção da serie uma perspectiva que impulsionou a nova produção para experimentos pouco vistos nos filmes anteriores. Ao que parece, a questão que se insinua a partir de agora é de que maneira as próximas produções de Leona Assassina Vingativa conseguirão se aprimorar na descoberta das ferramentas de linguagem disponíveis de modo que potencialize a irreverência de sua brincadeira, não sufoque o bicho inquieto mas, ao contrário, abra novos caminhos para sua passagem. A tirar por um dos últimos planos de Atrack em Paris, no qual um efeito especial permite que a gargalhada estridente de Leona (tão contagiosa quanto perturbadora) surja dos céus para nos atormentar, a fertilidade da contaminação mútua entre a mágica do cinema e da gréa ainda tem muito a render.


Leia também: