A sombra de uma dúvida

fevereiro 18, 2014 em Em Pauta, Fábio Andrade

The Ward (2010), John Carpenter

The Ward (2010), John Carpenter

por Fábio Andrade

Em 4:44 – Last Day On Earth (2011), de Abel Ferrara, a personagem de Willem Dafoe espera pela chegada do apocalipse final em seu apartamento em Manhattan. Nas últimas horas de vida da humanidade, o protagonista assiste a uma série de entrevistas – previsões? maldições? palavras de conforto? – em que diversas personalidades (incluindo o Dalai Lama) ligadas a diferentes projetos de transcendência (religioso, científico, artístico, afetivo) reprisam máximas e bordões que podem ajudar a conferir algum sentido ao encerramento definitivo. Em uma das entrevistas, um guru diz algo como: “O mundo é uma imagem que colocamos na cabeça. Quando se vê uma caneta, não se vê uma caneta, mas uma pequena imagem que temos na cabeça”.

4:44 - Último Dia na Terra (2011), Abel Ferrara

4:44 – Último Dia na Terra (2011), Abel Ferrara

A fala do guru não parece ter papel mais decisivo em 4:44. Ela determina, porém, um espaço bastante específico de existência capaz de projetar luz ao seu redor e iluminar certo estado de desconfiança presente em parte específica do cinema norte-americano recente, não raro resultando em contos apocalípticos como 4:44. Essa falha entre o ente e a imagem que se tem dele – entre a caneta e a imagem de caneta que temos na cabeça – aparece de maneira menos literal, mas ainda mais potente, em um momento chave de Passion, de Brian de Palma, justamente quando ele lança mão de um de seus mais célebres recursos: a tela dividida. Ao menos desde Carrie (1976), Brian de Palma recorre ao split screen como ferramenta frequente de conjugar múltiplos pontos de vista ou acontecimentos paralelos em uma mesma tela, buscando uma soma de imagens parciais que possa, de alguma maneira, se aproximar de uma “imagem total” de um determinado evento – algo que Raul Arthuso olha com maior detalhe, extraindo outros sentidos, em seu texto para esta mesma pauta. Mesmo um filme que já parte da impureza, como Guerra sem Cortes (2007), faz uso de uma estrutura em mosaico para tentar dar conta de uma determinada impressão de mundo que se quer una. Em Passion, porém – um filme de personagens que certamente estudaram os outros filmes de Brian de Palma até encontrar as brechas, os pontos cegos nestes mosaicos -, o uso da tela dividida chama atenção não tanto para as imagens paralelas, mas justamente para a incisão que abre a tela ao meio (uma espécie de ralo ou buraco negro), ressaltando sua própria defasagem em relação à ação, sua incapacidade de mostrar o que de fato acontece. A montagem de ações que parecem paralelas termina por revelar uma falha entre a aparência (de continuidade) e a coisa em si, um espaço que instaura – e sustenta, até o final do filme – uma incontornável desconfiança. Os múltiplos pontos de vista se somam em apenas um, e a imagem cinematográfica precisa lidar com seu inevitável e fatalíssimo atraso em relação à verdade.

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Passion (2012), Brian de Palma

De certa maneira, essa “dramaturgia da dúvida” tem se tornado quase onipresente, de diferentes formas, na produção contemporânea de diretores norte-americanos que começaram a filmar na década de 1970 e que, embora tenham tido lugares de relativo sucesso em Hollywood, hoje são empurrados de maneiras que parecem mais ou menos irreversíveis para as margens da indústria. A dúvida e a constatação de uma defasagem – característica que Agamben definia como essencial ao contemporâneo, e que três anos atrás abria um artigo que escrevi sobre Caminho para o Nada (2011), de Monte Hellman – parecem motivar uma explosão de projeções e reflexos que apontam para a mesma impossibilidade do cinema em servir como evidência de qualquer coisa que não dessa inevitável diferença entre a caneta e a imagem da caneta. O que interessa a esses filmes, porém, é menos o recalque denuncista dessa limitação, e mais a potência possível de uma outra indagação: uma vez que o cinema não pode mostrar a caneta, o que ele de fato mostra?

Se a Nova Hollywood incorporou algumas estratégias dos Cinemas Novos sem quebrar o engodo de crença fundamental à Hollywood clássica (e talvez boa parte de seu sucesso junto ao público venha daí), o moderno, no caso, vinha como possibilidade de revitalizar o pacto clássico, sem transformar as bases construtivas da diegese hollywoodiana. Hoje, é curioso perceber como, justamente quando alguns desses diretores parecem ter menos compromissos (e chances) com o sucesso dentro da indústria mais tradicional, eles parecem incorporar uma instabilidade do registro ficcional presente em filmes como Hiroshima, Mon Amor (1959) ou mesmo Rashomon (1950). O desencanto para com a indústria nos filmes recentes, neste conjunto de filmes, tenciona desembocar em um desencanto também com uma determinada forma de narrar, e com um regime de crença que fundamenta essa narração. Nesse sentido, é mais revelador observar como filmes que lidam mais diretamente com o cinema de gênero – e que têm como princípio um conjunto de convenções que não abre espaço para a dúvida – e com o gosto popular usam essa mesma desconfiança para tematizar seu não-lugar no cinema contemporâneo, trilhando tentativas de reinserção em uma indústria (mesmo quando marginal) hoje pautada por outros gostos, outras demandas, outras convenções, outros valores. É nessa defasagem que as fragilidades perceptíveis em The Ward (2010), de John Carpenter, e Pânico 4 (2012), de Wes Craven, são mais reveladores sobre o presente do que a suposta robustez de seus mais bem sucedidos sucessores. Em ambos os filmes, as especulações mais interessantes parecem vir de uma pergunta essencial aos folhetins de mistério: quem é o assassino?

O abismo do outro

Pânico 4 (2012), Wes Craven

Pânico 4 (2012), Wes Craven

Após ter atingido a marca de número mais baixo de espectadores para um lançamento em 3D até então com A Sétima Alma (2010), é inevitável a sensação de que Wes Craven retoma a série Pânico – franquia de sucesso criada por Kevin Williamson e que teve Craven como diretor permanente até o momento – como tentativa de restabelecer para si um lugar na indústria que já lhe foi de direito. Criador de um personagem tão emblemático dos humores da década de 1980 quanto Freddy Krueger, foi com a série Pânico que Craven estabeleceu dois novos paradigmas para a indústria de entretenimento que se fariam presentes posteriormente em obras tão distantes quanto os filmes da série Shrek ou a série de televisão Family Guy: as referências e a metalinguagem.

A necessidade de quebrar o paradigma em dois vem da insuficiência do português em dar tradução exata para um termo que aparece em um dos muitos prólogos de Pânico 4 e que condensa ambos os termos: self-awareness. Desde o primeiro filme (1996), a série Pânico se constrói a partir da exposição para o espectador das regras do gênero e pelas particularidades da constituição estrutural de uma trilogia (algo que reforça a falta de lugar deste quarto volume), seja pelas citações literais que os personagens fazem ao cânone do cinema de horror (incluindo preciosos momentos de auto-humor em que Craven debocha de seus próprios fracassos) seja pela exposição das regras que o filme provavelmente (mas nem sempre) seguirá. Essa “auto-consciência” era menos uma inclinação à piada interna do que uma busca pela possibilidade expressiva de um auto-espelhamento. Logo em Pânico 2 (1997), a ação sai de Woodsboro (a cidade onde se passa o primeiro filme) e adentra o cinema: os eventos do primeiro filme foram adaptados na série de filmes Stab, criando uma nova dobra de ficção dentro do universo do filme.

Personagens de Pânico 4 assistem ao primeiro Stab

Personagens de Pânico 4 assistem ao primeiro Stab

Mais do que um simples exercício de auto-paródia (que por vezes traz diretores convidados de luxo para criar as imagens do filme dentro do filme, reinterpretando as imagens de Pânico, como Robert Rodriguez faz neste quarto volume), o que Wes Craven realiza é uma espécie de casa de espelhos, de sucessão de reflexos que se alteram e se contaminam. Em Breakfast of Champions, romance de 1973, o escritor Kurt Vonnegut cria uma imagem especialmente poderosa para o cinema, e que exprime com perfeição esse espaço entre a caneta e a imagem da caneta que a série Pânico (em especial nos volumes 3 e 4) dá forma: para Kilgore Trout, escritor de ficção científica vagabunda que protagoniza o livro, os espelhos eram vazamentos (leaks) de um universo paralelo dentro do mundo concreto. “All around him were what other people called mirrors, which he called leaks. The entire wall which separated the lobby from the cocktail lounge was a leak ten feet high and thirty-feet long. There was another leak on the cigarette machine and yet another on the candy machine. And when Trout looked through them to see what was going on in the other universe, he saw a red-eyed, filthy old creature who was barefoot, who had his pants rolled up to his knees”. A velha criatura descalça era, naturalmente, o próprio Trout. O que vemos na interação das várias dimensões que integram o universo da série Pânico (ou um filme como Caminho para o Nada) pode ser resumido nesta ideia de dois universos paralelos infiltrados por vazamentos que refletem sua própria imagem. É como se, de certa maneira, os crimes do primeiro Pânico fossem motivados pelos Stabs que aparecem em Pânico 2, 3 e 4 – como se a adaptação de um ato em uma imagem posterior, em ficção, fosse, paradoxalmente, a razão que antecede e motiva o ato. É como se a imagem da caneta desse origem à caneta.

Ao longo da série, Craven tensiona cada vez mais essas mesmas infiltrações. Em Pânico 4, isso fica claro logo na absurda sucessão inicial de falsos começos do filme: a primeira sequência do filme se revela em realidade a abertura de Stab 6 (sim, a série dentro da série está vários volumes à nossa frente), que as personagens de Stab 7 assistem na TV como parte da abertura de Stab 7, que as personagens de Pânico 4 assistem na TV. A construção em abismo (um filme dentro de um filme, dentro de um filme, dentro de um filme) é ainda coroada com comentários irônicos sobre a defasagem do próprio filme em relação ao cinema de horror contemporâneo – com direito a menções diretas a Jogos Mortais 4 -, ao mundo contemporâneo – o que pode um assassino que escolhia suas vítimas por ligações telefônicas em época de stalkers no Facebook, identificadores de chamada e aplicativos de smartphones que emulam a voz do assassino do primeiro filme? – e em relação aos próprios paradigmas estabelecidos pelos filmes anteriores. Quando uma das personagens de Stab 7 reclama da abertura de Stab 6 dizendo que “it’s been done to death. The whole self-aware, post-modern meta-shit” (frase que poderia bem estar em Caminho para o Nada), Wes Craven faz um comentário irônico sobre a estrutura da própria sequência, ao mesmo tempo em que aprofunda suas camadas de auto-consciência a tal nível de absurdo que tudo que vemos em tela passa a existir sob esse estigma da dúvida, da indefinição de qual universo ele habita. Assim como De Palma usa o split screen para fundar suas imagens justamente na linha que separa as duas telas, em Pânico 4, Wes Craven parece realizar um longa inteiro que repousa imediatamente sob a superfície de um espelho, ou melhor, de um vazamento.

A abertura de Pânico 4...

A abertura de Pânico 4

... é a abertura de Stab 6...

… é na verdade a abertura de Stab 6

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… assistido pelas personagens do prólogo de Stab 7

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… que é assistido pelas personagens do prólogo de Pânico 4

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… no terceiro prólogo de Pânico 4.

Essa dedicação à metalinguagem não é traço recente na série Pânico. O interessante, no caso, é ver como ela se transforma de um volume a outro. No primeiro episódio, a auto-consciência é fonte de identificação fruto da cinefilia – mesmo que mortal -, de conexão entre o mundo e o cinema; é, sobretudo, fonte de entusiasmo. No segundo filme, a história se repete como tragédia, começando com uma morte dentro de um cinema, e incorporando ao clímax final um potente vazamento que conecta Hollywood às bases de Agamémnon – ou seja, às bases da narrativa grega. No terceiro, é a vez da farsa, que, no que nos concerne, é ainda mais reveladora: toda a maldição de Sidney Prescott (Neve Campbell) começa quando um produtor de cinema se aproveita de sua mãe, que desejava ser atriz de cinema quando jovem, e termina com uma matança realizada por um diretor de cinema. “Maybe the sad truth is this is not the city for innocence”, diz John Milton (Lance Henriksen), produtor da série Stab, “you wanna get ahead in Hollywood, you gotta play the game, or go home”.

Pânico (1996), Wes Craven

Pânico (1996), Wes Craven

Pânico 2 (1997), Wes Craven

Pânico 2 (1997), Wes Craven

Pânico 3 (2001), Wes Craven

Pânico 3 (2001), Wes Craven

No quarto volume, o jogo (um tanto mais amargo) passa a ser o do remake, mas um remake que vem de fora para dentro, vazando de uma dimensão a outra: a tragédia de Jill (Emma Roberts) é não ser sua prima Sidney, é não ter sido a original. Soma-se a isso o fato de que os assassinos estão fazendo seu próprio filme dos novos assassinatos – durante a Stabathon (maratona em que os 7 Stab são exibidos em sequência), há uma brilhante cena de interação entre um assassinato na tela e sua repetição “real” registrada por uma outra câmera, dentro do cinema improvisado -, e não é preciso divagar muito para se concluir que a grande questão de Pânico 4 é o assassinato inevitável do próprio filme. Esse assassinato vem tanto da percepção lúcida de Craven sobre a absorção em larga escala de suas próprias marcas – e uma inserção de um trecho de Shaun of the Dead (2004) cristaliza a inevitabilidade paródica dessa auto-consciência -, quanto de seu não-lugar no cinema de gênero de sucesso atual. Pânico 4 é um filme que nasce necessária e irremediavelmente datado, desconectado de um presente que ele ajudou a definir, mas que ele não consegue ver senão como um desdobramento externo, incontrolável, paródico e um tanto perigoso de si mesmo. Não à toa, quando o assassino fala com Sidney Prescott ao telefone, fica a impressão de que as mesmas palavras poderiam ser ditas a Wes Craven, por seu próprio filme: “Welcome home, Sidney. You’re a survivor, aren’t you, Sidney? What good is it to be a survivor when everyone close to you is dead? You can’t save them. All you can do… is watch”. É justamente essa impotência desesperadas que faz o filme girar em uma espiral que vai do centro para as bordas, em uma espécie de casa de espelhos invertida, em que o reflexo é sempre maior e mais parcial do que a imagem original.

O abismo de si mesmo

Créditos de abertura de The Ward (2010), John Carpenter

Créditos de abertura de The Ward (2010), John Carpenter

The Ward, primeiro longa-metragem para cinema de John Carpenter desde Fantasmas de Marte (2001), traz um dado revelador logo nos créditos inicias: imagens que se estilhaçam feito espelhos quebrados. Há uma função diegética para os cacos, mas sua potência vai além disso. Afinal, Carpenter – em essência, eternamente hawksiano – sempre foi um artista do espaço concreto, autor de uma decupagem extraordinariamente hábil em delimitar e esclarecer os limites da cena como blocos fechados. Não à toa, grande parte de sua obra documenta a ameaça do fora-de-quadro a este espaço cênico íntegro, inquebrantável: o ataque à delegacia em Assalto ao 13o Distrito (1976), a ameaça alienígena ao posto de pesquisas em The Thing (1982), a chegada dos piratas fantasmas em A Bruma Assassina (1980), o voyeurismo pelas janelas do apartamento de Someone’s Watching Me! (1978), a invasão de Michael Myers à casa em Halloween (1978). Como em Nosferatu (1922), de Murnau, o drama é o do risco de invasão, de profanação do sujeito por uma força externa – daí vieram as diversas acusações de que Halloween seria um filme pudico, com uma suposta defesa da virgindade que vira piada no primeiro Pânico. De qualquer maneira, tanto em Murnau quanto em Carpenter, vive-se o risco da modernidade.

Assalto ao 13o Distrito (1976), John Carpenter

Assalto ao 13o Distrito (1976), John Carpenter

A Bruma Assassina (1980), John Carpenter

A Bruma Assassina (1980), John Carpenter

Someone's Watching Me!, John Carpenter

Someone’s Watching Me! (1978), John Carpenter

Em The Ward, porém, o movimento é o de documentar os estilhaços de uma imagem partida, implodida de dentro para fora. O sujeito se fragmenta de tal maneira que se transforma em outros personagens: Alice (Mika Boorem) é Kristen (Amber Heard), que é também Emily, Sarah, Zoey, Iris. Apesar de existir um protagonista, não há um centro – ou melhor, tudo é centro. John Carpenter usa como desculpa um transtorno psicológico para desdobrar uma narração inconfiável que espirala para dentro e permanece neste movimento após a resolução final, jogando o espectador no colo de um nada afável psiquiatra (Jared Harris) e com uma repentina mudança de protagonista que se beneficia da impossibilidade do espectador em fazer tamanha manobra de identificação nos minutos finais de um longa-metragem.

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Kristen, Emily, Iris, Zoey, Sarah em The Ward

Essa espécie de transtorno dentro da narrativa gera um efeito surpreendente ao aderir à própria superfície do filme: The Ward é um filme de terror dos anos 1970 assombrado pelo presente. Seja pela anacrônica limpidez estilística de Carpenter – um dos mais discretos poetas da grande-angular na história do cinema – ou por um trabalho incisivo de direção de arte, figurino e fotografia (em especial no que tange as cores), The Ward tem a frieza extremamente sedutora de sua mise en scène frequentemente atormentada por mudanças bruscas de velocidades de filmagem (as famosas “rampas” que o cinema – e a publicidade – de terror contemporâneo ordenha feito uma vaca morta), efeitos especiais em CGI e inserções de frames que pululam feito mensagens subliminares, como se a trazer o filme em choque constante com o cinema de gênero de sucesso nos dias de hoje (Jogos Mortais e cia) e, ao mesmo tempo, se afirmar em descompasso. Da mesma maneira, as inserções quase sempre canhestras de flashbacks em contraluz contribuem para essa sensação de um filme que também sofre de múltiplas personalidades, de um transtorno interno estrutural que chama frequente atenção para sua própria defasagem, por mais coerente que este universo possa parecer internamente.

As cores de The Ward

As cores em The Ward

Nesse sentido, parece ser interessante uma comparação com um filme obviamente próximo desde The Ward, que é Ilha do Medo (2010), de Martin Scorsese. Pois enquanto Scorsese infla uma atmosfera de cinema de gênero para desaguar em sequências grandiloquentes de gosto no mínimo duvidoso (e lá está o subtexto da guerra para trazer lastro ao vazio superfaturado), Carpenter parece lutar o tempo todo pelo direito à secura, à precisão e à economia. Assim como Scorsese constrói seu filme como uma longuíssima preparação para uma reviravolta final (que, de tão súbita, gera sensação de abandono parecida com a que sentimos ao final de The Ward), no filme de Carpenter o distúrbio psicológico é apenas o ponto de partida para um trabalho de caracterização e encenação minucioso que, em vez de aprisionar a enunciação, quer justamente mandá-la pelos ares para, ao final, devolver-lhe unidade (no fim das contas, retornamos à velha idéia do corpo violado para quem a casa incendiada no princípio do filme permanece como metáfora e espaço concreto).

Novamente, a questão aqui está em encenar a distância entre a caneta e a imagem da caneta que temos em nossa cabeça – ou, no caso, na cabeça da protagonista. Mas John Carpenter trabalhará de forma a fazer coincidir a experiência (senão o ponto de vista) da protagonista com o nosso, apresentando um filme tão visivelmente espatifado quanto a percepção do mundo de sua suposta heroína. Estamos sempre ao lado dela, mesmo que sua inteireza, sua unidade, parta necessariamente do rompimento, da mais irrestrita fragmentação. Como relato espatifado de um mundo que não pode voltar a existir, The Ward guarda vislumbres arrebatadoramente incompletos de um filme que não pôde ser (da vida que não pôde ser), mas que sobrevivem para que o espectador possa, ao fim, recolher os estilhaços e formar, com eles, sua própria imagem. Em The Ward, toda imagem é necessariamente esburacada (em si mesma, e no mundo), parte de uma história que não fecha, de um quadro que nunca se completa; mas é justamente neste desencaixe que reside sua declaração mais contundente sobre o presente e seu possível lugar nele.

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