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Desmedidas

“Resiliência” é um conceito originalmente desenvolvido na física para descrever as potências de certos materiais capazes de sofrer perturbações sem realizar ruptura. Nas últimas décadas, o conceito rapidamente se espalhou em outros campos científicos, como na ecologia, na psicologia e na teoria dos sistemas, tornando-se uma metáfora privilegiada para descrever a capacidade de certos corpos de sofrer tensionamentos sem se romper, acumulando energia para se recuperar depois da perturbação. O termo é apropriado pelo artista visual e sonoro mineiro Marcellvs L. para intitular o seu trabalho mais recente, uma obra poderosa de imagem e som de duração de pouco mais de vinte minutos, que parece ter passado desapercebida da crítica de cinema. A reivindicação do conceito serve, a princípio, para sublinhar a imaginação geológica que preside o filme. O termo é, ainda, bastante pertinente para uma obra que deseja experimentar, justamente, com os limites de nossas capacidades de ser afetado pelos sons e pelas imagens: um movimento de tensão e distensão se revelará como o motor ao mesmo tempo sensorial e estrutural da obra, como se a resiliência de que se trata fosse a do nosso corpo.

As seis imagens que compõem Resiliência podem ser separadas em dois grupos: três planos marcadamente monumentais, que apenas por hábito chamamos de planos de paisagem, antecedidos sempre por três imagens monocromáticas. A primeira imagem, um monocromo cinza, permanece na tela por cerca de cinco minutos. A longa duração permite que o nosso corpo se adapte ao ritmo do filme, se concentrando na escuta: o som de um cascalhar contínuo, em um pulso ligeiramente regular, que sugere movimento, a despeito da imagem permanecer estática, antes de se dissolver em um ruído disperso. A calma tensa desse primeiro momento é rompida pelo som do primeiro plano do filme. Projetado sempre em volume máximo, sob orientação do próprio Marcellvs L., o filme é marcado por variações de dinâmica sonora violentas, que sugerem movimentos abruptos de tensionamento e relaxamento. Invadido pelo barulho volumoso do que parece ser uma cachoeira, com os graves no máximo, a primeira reação do nosso corpo é crispar-se, como um bicho acuado. Com nosso batimento cardíaco acelerado, nos lembramos como, no cinema, a relação entre o som e a imagem é sempre assimétrica: a imagem vemos com os olhos, mas o som sentimos com nosso corpo todo. O nosso corpo não apenas passa a vibrar sob o efeito da alta intensidade do som, mas a vibração demora-se, estacionando o corpo em um estado de perturbação continuado.

O plano mostra um largo caminho pedregoso e enevoado, entre duas encostas de rocha, filmado de cima, de um ponto de vista distanciado. O trabalho de figuração de Marcellvs L. esforça-se, no entanto, por desorientar a nossa percepção em termos de escalas e dimensões, recusando a oferecer um sentido sólido de profundidade. A distância que separa o ponto de vista da câmera do solo não se apresenta de imediato com clareza, nos abandonando a um estado vacilante de desassossego, em que tentamos sem sucesso nos medir em relação ao espaço filmado, sem um amparo perceptivo sólido. Uma pessoa, no entanto, se revela de repente na paisagem, ocupando um espaço minúsculo no quadro, quase desaparecendo entre as pedras. A sua percepção tem o estatuto de um acontecimento: tomamos conhecimento das dimensões do espaço, que se revelam bem maiores do que a princípio. Sentimos como se nos encolhêssemos, instantaneamente. O plano se desenvolve por um movimento quase imperceptível de câmera, que descortina lentamente a região. O movimento é apenas reconstruído na rememoração, jamais visto em ato. Um jorro branco passa progressivamente a desequilibrar a composição, invadindo o canto inferior direito do quadro e, gradualmente, ocupando metade da tela. Trata-se de uma cachoeira – ou de um gêiser, não sabemos bem -, mas o modo como surge na imagem valoriza os seus valores pictóricos: uma transformação na distribuição de massa branca no quadro, percebido então enquanto superfície plana. Vemos, na verdade, um enxame branco, que passa, contínua e furiosamente, a invadir e tomar o espaço para si mesmo, em um movimento que se dá lateral e verticalmente, antes que em três dimensões, a passos lentos, mas intensos. A origem e o destino da queda d’água são subtraídos do campo de visão, realçando não apenas o seu valor de superfície, mas, sobretudo, insistindo em nossa experiência de desorientação.

O primeiro plano de Resiliência remete a um conjunto de procedimentos conhecidos de outros trabalhos de Marcellvs L., desde os seus primeiros vídeos dos anos 2000. Uma das características decisivas de suas imagens é de se tratarem de transformações figurais gradativas, que poderíamos chamar de processos graduais, para usar a expressão pela qual Steve Reich referia-se à sua música: “um processo acontecendo tão lentamente e gradualmente que escutá-lo se assemelha a assistir ao ponteiro do minuto do relógio – você percebe ele se movendo apenas depois de ter estado com ele por um momento”. O plano da cachoeira é similar, por exemplo, ao plano do homem atravessando uma rua inundada, que é a única imagem do vídeo 0778 [man.road.river], (2004). Trata-se de um zoom digital que se abre lentamente, dando forma de maneira gradual a uma figura a princípio irreconhecível, esmaecida em meio aos pixels. A abertura da zoom se desdobra ao mesmo tempo em que a figura segue em sua travessia, em ritmo uniforme, indiferente à inundação. Em ambos os planos, os processos graduais se desdobram inseparável e simultaneamente tanto no nível do representado, quanto da representação. O ritmo gradual conduz não a uma sensação de estase, mas a uma alta consciência de seu caráter processual. Em um momento em que lentidão tem sido reivindicada como categoria estética de maneira tão apressada, pode ser oportuno observar os processos dos trabalhos em vídeo de Marcellvs L. de modo a reter aquilo do que eles são capazes: as suas transformações gradativas conduzem a produções de disparidade ao mesmo tempo sensoriais e cognitivas, que operam em um espaço de alta volatilidade, oscilando entre a aparição e a desaparição, o figurativo e o desfigurado, a profundidade e a platitude, o perceptível e o imperceptível.

0778 ou man.road.river (2004), Marcellvs L.
                                       0778 ou man.road.river (2004), Marcellvs L.

O primeiro plano de Resiliência possui outra similaridade com o plano da travessia da rua cheia d’água: trata-se de uma situação na qual corpo e paisagem parecem ignorar-se mutuamente. A paisagem, estéril e pedregosa, não é apenas nem um pouco acolhedora para o minúsculo corpo humano que a atravessa como parece resguardar, em sua grandeza ameaçadora, uma certa indiferença cósmica. A encenação da desmedida entre nosso corpo e a paisagem pode se revelar reminiscente de uma concepção bastante tradicional da natureza. A experiência da paisagem natural aparece mediada, assim, pelo sentimento de sublime, que é construído no embate de imagem e som: um misto de terror e maravilhamento diante de uma presença “grande demais”, que cresce na forma de uma profusão misteriosa da cor branca, uma massa em expansão que não apresenta inícios, nem fins, como se virtualmente ilimitada. Intensificado pelo som, com os graves no máximo, a ameaça ganha corpo e peso, se espacializando por toda a sala como um presença esmagadora. Trata-se, portanto, de uma experiência do sublime que não nos coloca em uma posição segura de contemplação, como poderia se esperar, mas que reivindica o nosso corpo inteiro, nosso corpo real, presente na sala de cinema como material de reverberação sonora: um sublime encarnado, que nos permite experimentar a partir dos prolongamentos imaginários do nosso corpo uma ameaça cósmica que supera infinitamente suas medidas.

O sublime, no entanto, é apenas uma passagem particular dentro da economia de afetos de Resiliência. O primeiro plano é seguido por um monocromo cinza, onde o som enfurecido da cachoeira se metamorfoseia no tintilar contínuo e acolhedor de uma gota d’água. O filme entra em um movimento de distensão. O plano seguinte mostra a água em calmaria. O movimento ondular e disperso do reflexo da luz prateada na superfície da água induz o relaxamento, antes de ser sucedido por um outro movimento de tensão: o som estourado da ventania, muitos decibéis acima, que ocupa a sala durante a projeção de um monocromo negro. No último plano, que aparece em seguida, a desorientação das escalas é posta novamente em jogo: a nossa percepção mais uma vez vacila em localizar as dimensões da imagem. Vemos um pinheiro, mas demoramos um pouco para perceber que se trata ainda de uma pequena planta filmada muito de perto e não de uma árvore. A região em foco na imagem é bastante estreita para nos revelar imediatamente as proporções. Um sibilo contínuo e agudo quase inaudível contrasta com o barulho esmagador da cachoeira, ouvido minutos antes. As passagens entre os estados de perturbação e os de placidez se espelham, assim na variação das distâncias e proximidades. Encontramos, no fim, o jogo invertido: onde antes havíamos vivido o perigo, encontramos agora a vulnerabilidade da paisagem.


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