Jean-Claude Bernardet e as comédias

julho 16, 2013 em Cinema brasileiro, Em Campo, Raul Arthuso

De Pernas para o Ar 2 (2012), Roberto Santucci

De Pernas para o Ar 2 (2012), Roberto Santucci

De Pernas para o Ar 2Carnaval Atlântida e a profissionalização dos conceitos
por Raul Arthuso

“Após acalorada discussão em torno de De Pernas Pro Ar 2, venho a público manifestar minha esperança de que as gentes bem pensantes, os intelectuais, os artistas, os autores, os poetas e outros de gosto requintado, não caiam na mesma burrice dos anos 50. Foi preciso esperar a morte da chanchada para que a elite percebesse que Oscarito e Grande Otelo eram grandes atores, e que Carnaval Atlântida era um filme político.

De Pernas Pro Ar 2 é um filme atual que trata de problemas que angustiam boa parte da classe média como: o trabalho da mulher, a relação da mulher que trabalha com o marido, os filhos e a casa, o stress da mulher executiva que estressa os homens, o péssimo estado da telefonia celular no Brasil e também o celular como adição, a exportação de produtos brasileiros, etc.

Se o filme não abordasse comicamente questões do seu interesse, o público não teria sido tão numeroso”.

O comentário acima, escrito por Jean-Claude Bernardet em seu blog, repercutiu no meio cinematográfico brasileiro desde sua publicação. Num momento em que retornam com força as discussões sobre o fomento da indústria e o tipo de apoio a se dar aos filmes de mercado (desculpe o palavrão) visando o “grande público”, em comparação ao dado aos filmes de arte (desculpe novamente), uma opinião dessas dada por um sacrossanto de nossa academia ganha o caráter de gol numa decisão de campeonato. A fala motivou manifestações de produtores nas redes sociais e matéria no Estado de São Paulo, assinada por Luiz Zanin, com o sugestivo título “Produções cômicas trazem reflexões sobre o Brasil”, cujo baricentro é a opinião de Bernardet.

Tomo emprestadas, então, as palavras de Francis Vogner dos Reis, em artigo publicado aqui na Cinética, em Agosto de 2009: “Em uma época tão entediante em sua escassez de inteligência e lucidez, qualquer opinião que venha sacudir minimamente questões que parecem unânimes e generalizadas tem o poder de um abalo sísmico – ainda mais se essas opiniões venham legitimadas por alguém que inspire respeito por sua integridade ou por sua história”.

Não se trata de a opinião de Jean-Claude Bernardet ser usada como arma ideológica ou que represente opinião definitiva sobre qualquer rumo do cinema brasileiro (seguido ou a se seguir). Sua opinião ser aceita como selo de qualidade vindo da “intelligentsia” brasileira ou ignorada como breve comentário de um pensador cuja melhor fase já passou há algum tempo apronta a armadilha de deixarmos passar tudo o que se pode refletir a partir dela. Onde há fumaça, há fogo. E há muita coisa pegando fogo nessa mata.

Uma questão de crítica

De Pernas para o Ar 2 (2012), Roberto Santucci

De Pernas para o Ar 2 (2012), Roberto Santucci

“Assim, o crítico, em vez de esforçar-se em esclarecer o público e os cineastas, em orientá-los, ciente de toda a responsabilidade que lhe cabe, e aceitar, com a inquietação que isto acarreta, a margem das incertezas e erros que acompanha a responsabilidade, se torna um mero espelho do público, um boneco sem consistência”.

Jean-Claude Bernardet, “Questão de Higiene”, O Estado de São Paulo, 26/08/1961

Chama a atenção, no comentário de Jean-Claude Bernardet, sua idéia de crítica – ou de pensamento crítico – escondida nas entrelinhas do texto. Pois Bernardet, após enumerar “as gentes bem pensantes, os intelectuais, os artistas, os autores, os poetas e outros de gosto requintado” pedindo um olhar para De Pernas Pro Ar 2, diz ser o filme uma obra atual, pois “trata de problemas que angustiam boa parte da classe média”. Para além da obviedade de constatar que um filme é atual por tratar de questões atuais, o mais importante é algo completamente excluído do comentário: a crítica de cinema. Pode-se pensar que Bernardet coloca a crítica no grupo dos intelectuais ou das “gentes bem pensantes” – com certeza, não do lado dos artistas nem dos autores -, mas a princípio a crítica de cinema não está nomeada, senão com certo cinismo. O dado decisivo é a conclusão de Jean-Claude sobre o filme: De Pernas Pro Ar 2 como um filme atual por tratar de temas atuais.

Cabe a pergunta: Bernardet está pedindo uma crítica ao filme que lide com seus temas, percebendo as aproximações e significações de seu enredo dentro do panorama social, econômico e cultural do Brasil ou uma crítica que lide com a forma da obra, sua escritura cinematográfica e aí então uma interpretação da incidência dela nas questões temáticas? Resumindo: o que falta a De Pernas Pro Ar 2, no pedido de Bernardet, é uma crítica sociológica-cultural, atestando o lugar do filme (e, ampliando, das comédias) na sociedade, ou uma crítica de cinema, um pensamento em torno do pensamento artístico inerente à obra cuja análise pode nos revelar seu verdadeiro posicionamento em relação à sociedade?

A oposição entre uma crítica sociológica e uma crítica de arte pode ser menos clivada que minha pergunta faz parecer, mas seus fins são outros. Olhar para as transformações do Brasil no começo dessa década – o trabalho da mulher, as relações dela com a família, com o homem com as estruturas sociais estabelecidas – em De Pernas Pro Ar 2 para atestá-lo como um filme atual não passa de um método estanque de abordagem da obra, uma descrição de sintomas. O verdadeiro valor e atualidade de um filme não estão apenas no tema, mas também na forma, em como cria relações com seu objeto que implicam, após incidirem sobre o tema, numa visão de mundo. Estão aí os limites do que pede Jean-Claude: atestar os sintomas da sociedade brasileira encaixotados nos estúdios de produção das comédias brasileiras ou mostrar a visão de mundo guardada nas escolhas de plano, nas relações de montagem e nas conexões que a dramaturgia audiovisual é capaz de fazer? Sociologia ou crítica de cinema?

Porque é nessa escolha sobre o pensamento de um filme que o comentário de Jean-Claude Bernardet fraqueja.  Primeiro, por “erro de cáculo”: há, sim, páginas e páginas sendo gastas nos grandes jornais com as resenhas dos filmes quando de seus lançamentos. E se essas resenhas não são “pensantes”, não tentam ou não conseguem lidar com as questões críticas em torno dos filmes,  há o trabalho sistemático de alguns críticos  com o cinema popular brasileiro – não apenas o atual, mas pensado dentro da história e, mais ainda, no contexto de uma história do cinema popular no contexto nacional. Vem à cabeça o trabalho de Andrea Ormond que escreveu textos, para a Cinética ou para seu blog, Estranho Encontro, sobre os dois De Pernas Pro Ar, assim como de outros filmes de mercado como, fossem bem sucedidos ou não – Gonzaga – De Pai para Filho, Billi Pig, Os 3, À Beira do Caminho, Totalmente Inocentes, Vai que Dá Certo – além de resgatar em seu blog raridades do cinema popular dos anos 1970/1980 e entrevistando diretores, produtores, atores que fizeram parte dessa história, num garimpo cujo impulso é reescrever a história com as armas à mão, lidando, a meu ver, astuciosamente com os filmes (de hoje e do passado),  colocando-os em seu contexto dentro da sociedade, da história e, principalmente, da idéia de “cinema popular” como arte cinematográfica no caso brasileiro.

O segundo ponto fraco vai direto na obra. Pois quando se deixa as categorias de lado por alguns instantes (filme comercial, filme de arte, nacional, estrangeiro) e vamos ao filme de fato (De Pernas pro Ar 2 e não apenas ele), ao que o faz ser cinema e não outra manifestação cultural, artística ou de comunicação de massa, as rachaduras conceituais começam a pulular e então qualquer argumento sociológico como o retrato do papel social, das mudanças econômicas do país, dos problemas de determinada classe, demonstram sua incapacidade de lidar com a obra. Cinema é relação, movimento, enquanto retratos são instantâneos. Os retratos tirados num determinado momento podem ser atuais em relação à atualidade, mas, no cinema, é a cosmogonia e implicações desses retratos que garantem a atualidade da obra.

Por último, há um erro de comparação gritante: diferentemente do que transparece no comentário, ao buscar no exemplo da chanchada o modelo de tratamento dado às comédias atuais, não se trata de achincalhá-las por sua má realização, precariedade, mau gosto, como se toda a rejeição a De Pernas Pro Ar 2 fosse fruto da síndrome de vira-latas reinante no pensamento dos anos 1950. De Pernas Pro Ar 2 é um belo exemplo do cinema popular século XXI, de artesanato de alta qualidade e bom gosto, feito para uma classe média que, além de bens duráveis, quer consumir artigos de luxo, como cultura. Existe uma crítica – praticada por poucos, concordo – interessada não nos aspectos evidentes da primeira camada temática dos filmes, mas nas formulações das comédias populares partindo do que lhe é cinematográfico, para apontar entre outras coisas sua visão de mundo e política. Que cheguem a conclusões divergentes de Bernardet é questão de ir aos filmes. Da parte de seu comentário, há um desconhecimento ou má-fé de Jean-Claude em relação a esse trabalho, além de um ponto de partida para análise, a meu ver, equivocado.

Uma questão política

Carnaval Atlântida (1952), José Carlos Burle

Carnaval Atlântida (1952), José Carlos Burle

“Toda e qualquer fita se pronuncia diante de todos os valores. Qualquer fita, desde a mais despreocupada narração policial até as fitas que tratam conscientemente dos valores, pressupõe um certo conceito de liberdade, favorece um certo regime político. Não há fitas inocentes. Os valores implícitos, é urgente que os críticos se esforcem em desvendá-los”.

Jean-Claude Bernardet, “Questão de Higiene”, O Estado de São Paulo, 26/08/61

Qualquer crítica sócio-cultural das comédias atuais fica incompleta sem botar na roda seu modo de produção e sua posição dentro do cinema no Brasil hoje. Quando Jean-Claude traz para o debate Carnaval Atlântida (1952) e as chanchadas, mais uma vez é preciso separar os diferentes para analisá-los, compará-los com precisão e não apenas igualá-los como se maçãs e bananas fossem a mesma coisa. O sucesso popular das chanchadas, diferentemente do que acontece hoje, não vem acompanhado de certo poderio político, econômico e cultural. Evidentemente, os sucessos populares, em especial no Brasil, são reflexo de alguma máquina de financiamento, distribuição e divulgação que alavanque a coisa. No caso da Atlântida, havia o circuito Severiano Ribeiro de salas de cinema cujas brechas deixadas pelo produto americano eram aproveitadas com a verticalização garantida na produção de filmes. A pornochanchada, anos depois, fazia um arremedo de indústria que funcionava no circuito de salas populares do centro de São Paulo e expandia-se para outros circuitos pelo país.

A diferença fundamental do atual contexto com esses exemplos é o quanto os filmes populares hoje estão no centro dos modos de financiamento e das discussões políticas, e não mais comendo pelas bordas, existindo ao lado do poderio oficial, e não apesar dele. Filmes como De Pernas Pro Ar 2 têm uma série de investimentos de empresas privadas e de mecanismos importantes de apoio estatal, como o Fundo Setorial do Audiovisual, além de ter na cidade do Rio de Janeiro, epicentro das comédias recentes, um porto seguro chamado RioFilme. Há ainda o poderio de distribuição e publicidade que colocam os filmes em posição estratégica dentro do mercado, na maioria das vezes com o apoio da Globo, garantindo suporte de divulgação do grande império de comunicações do país. E, claro, diferente da chanchada (e mais ainda da pornochanchada), o governo não se opõe à existência das comédias hoje, não persegue institucionalmente sua produção ou difusão, nem há uma política de Estado claramente voltada para superar sua existência, como se o filme popular fosse o retrato de nosso subdesenvolvimento.

Não, filmes como De Pernas Pro Ar 2 são hoje produto estratégico do consumo cultural e da produção de cinema no Brasil. Com grandes orçamentos e poder de barganha, as comédias usufruem de roteiristas de carreira, diretores “competentes” (entre aspas, pois a definição de competência se dá num terreno muito relativo) no artesanato básico, técnicos experientes, equipamento de ponta, atores famosos e acima de qualquer suspeita. São o produto de primeira linha, pautado pelo bom gosto de feitura técnica, a prova factual da capacidade do brasileiro de fazer audiovisual como a grande indústria do cinema, voltado para uma classe média ávida pelo consumo de cultura – e não do que historicamente ficou marcado como “cinema nacional”, o filme mal-feito, tosco, vulgar; esses sim apontamentos de rejeição das chanchadas nos anos 1950.

Não se trata apenas de inverter os valores e fazer a “carnavalização” dos conceitos; transformar o tosco e o vulgar em valor positivo e abominar o “bem feito” e a técnica. Mas é preciso entender como esses valores, estampados no modo de produção e refletidos na forma do filme, constituem parte da visão de mundo da obra. Se não, os conceitos transformam-se em chavões e estes podem ser utilizados como se bem entender. É o caso de duas formulações de Paulo Emílio Salles Gomes em torno das quais o discurso corrente de alguns cineastas e produtores vem girando sem questionar seu significado para além das palavras: “a incapacidade criativa de copiar” e o subdesenvolvimento não como estágio, mas como estado. Transformado em “chavões conceituais” (um paradoxo), essas formulações servem tanto para justificar uma busca desenfreada por uma implantação de uma indústria quanto para a defesa de um modo de produção pequeno, baseado no impulso de fazer como é possível; contemplam tanto a reprodução de clichês cinematográficos quanto a importação de formas estéticas do cinema contemporâneo de festival; justificam, enfim, nossos maiores méritos e as retumbantes fraquezas com justeza retórica.

Então, para começo de conversa, numerar apenas que “se o filme não abordasse comicamente questões do seu interesse, o público não teria sido tão numeroso” é certa inocência ou embuste intelectual, pois De Pernas Pro Ar 2 é um representante do centro do sistema de produção hoje, projeto nascido com o destino de ser grande e batizado para o sucesso com todas as armas aprendidas com a indústria americana de cinema, cujo objetivo último é implantar algo similar por aqui.

Óbvio que há questões de poderio de mercado para o tamanho do sucesso do filme; e é óbvio também que o público só foi “numeroso” (e considerar cinco ou seis milhões de brasileiros “numeroso” é algo a ser discutido) porque o filme aborda questões que lhe interessam de alguma maneira. É aí que entra a crítica de cinema, de arte, para desvendar seus valores implícitos, sua visão de mundo, sua política. Pois não há filme inocente. Com De Pernas Pro Ar 2 não poderia ser diferente. Porque há uma até que óbvia constatação de Jean-Claude Bernardet do retrato do lugar da mulher no mercado de trabalho, da irritação causada nos homens por essa posição, da telefonia celular, do objeto como extensão do corpo e organizador da vida, temas ligados à classe média. Uma análise disso tudo, contudo, permanece apenas no nível temático do filme e não o desbrava como obra.

Em De Pernas Pro Ar 2, não é apenas da posição da mulher executiva que se está tratando. Formula-se um certo elogio do “gerenciamento”: família, trabalho, prazer são institucionalizados, armando-se um jogo de contabilidade em que é preciso saber equilibrar essas instâncias na corda bamba. Como o filme nomeia, “estar por um fio” e conseguir o equilíbrio na pressão, mantendo a máquina toda (a vida) em funcionamento ordenado – a personagem menos discutível moralmente, mais profunda e menos ironizada pelo filme é a que serve de ponto de fuga exemplar a Alice: Vitória, a mulher que consegue cuidar dos cinco filhos, da casa sem empregada, e ainda trabalhar fora. Administrar essas instâncias é então o caminho da felicidade, ou como o título do texto de Andrea Ormond sobre o filme astuciosamente formula, “a profissionalização da felicidade”.

Um momento chama a atenção em De Pernas pro Ar. Durante a feira erótica no primeiro filme, de início ocorre no palco um número de strip-tease com algumas garotas. Literalmente, o show é desligado, após a mãe de Alice tirar o fio de iluminação da tomada. Isso para a entrada da apresentação da Sexidelícia, loja virtual de Alice, em que várias garotas desfilam com tailleurs e malas de viagem, como executivas bem sucedidas, no ápice da mitologização do filme. Não há ironia, sarcasmo ou cinismo; muito menos a carnavalização, principal artimanha de Carnaval Atlântida, motivo pelo qual Bernardet o aponta como exemplo de comédia popular política e paraleliza com De Pernas Pro Ar 2.

Em Carnaval Atlântida, diferente daqui, há a intromissão de um elemento estranho na alta sociedade. O requinte e o “bom gosto” cinematográficos são ironizados na figura do produtor Cecil B. de Milho, cuja megalomania o coloca em desajuste com a realidade ao seu redor. Esta realidade se materializa na dupla Oscarito e Grande Otelo, o primeiro como um pseudo-intelectual que disfarça sua idiotia e falta de jogo de cintura com a especialização em cultura grega; o segundo, como o populacho, o vulgar, o excluído da sociedade que vem perturbar a ordem do estúdio de cinema. Desfigurando o sonho megalomaníaco de reproduzir a indústria desenvolvida de cinema numa sociedade ainda imatura, o samba, o carnaval e o popular vêm escrachar o desejo culturalista e higienizador das elites intelectuais e financeiras. O reconhecimento posterior que o cinema nos anos 1970 vem dar a Grande Otelo reside na figura de resistência (negro, baixinho, alcoólatra) materializada no ator. Sua persona na chanchada sempre andava no fio da navalha da exclusão e da perturbação, como a parcela da população brasileira não retratada nos filmes se fazendo representada por sua presença – o que, de certa forma e sem inocência, é um mecanismo de satisfação e anestesia do público.

De Pernas Pro Ar 2, em suas entranhas, parece seguir a posição oposta. Isso é mais sensível na figura da empregada Rosa, única presença de fato das classes populares nos dois filmes. Em primeiro lugar, ela não é apenas a doméstica da casa, mas um membro da família. Prova disso é que, quando da viagem da família a Nova York, Rosa vai junto como um agregado. Em todas as cenas, Rosa é o elemento exótico, em que a falta de conhecimento da vida moderna se apresenta quase como idiotia, o alívio cômico da comédia do gerente – mesmo sendo De Pernas Pro Ar uma obra cômica. E todas as vezes em que o filme lhe dá voz, os momentos em que a narrativa se desvia para mostrar a empregada, a inaptidão da personagem cria um qüiproquó que obriga os patrões a virem em seu socorro. O principal deles é a cena em que Rosa, nos Estados Unidos, vai pedir um garfo e ao invés de dizer “fork” diz “fuck”; o atendente do restaurante responde tentando se aproveitar da situação. Mas a câmera abandona Rosa e ela retorna momentos depois correndo, pedindo socorro a Alice. A diferença crucial para Carnaval Atlântida – e em extensão a toda chanchada com Grande Otelo e Oscarito – é o quanto esse desvio da narrativa era realmente uma curiosidade, um mostrar a ação do elemento estranho, perturbador, mostrar o desenvolvimento da carnavalização em paralelo à trama principal, que em geral consistia de um melodrama convencional com certa intriga do vilão, e aqui os pouquíssimos desvios seguem a lógica de alimentar a narrativa central, dar mais força e elementos de ação para a trama principal que aborda, justamente, a capacidade da profissional de administrar a vida. Ou seja, o desvio narrativo lá era como o curto-circuito que atrapalhava e solucionava a convenção importada do melodrama, verdadeira contribuição da chanchada para uma possibilidade narrativa do cinema brasileiro. Hoje, esse “desvio” virou a gag que mantém o edifício de pé, o reforço necessário para as dificuldades com as quais o gerente tem de lidar para o elogio do filme se completar. A figura popular, excluída, “por um fio” na vida urbana, desapareceu. Foi cooptada para o seio da família, amansada e embranquecida.

Então, não se trata de uma rejeição de qualidade técnica, mas de visão de mundo, de política. De Pernas pro Ar 2 – e não apenas ele – é um filme para o seu público, desde seu modo de produção até os detalhes de sua narrativa: a classe média endinheirada, viajante para o estrangeiro, preocupada com a limpeza da casa e a gerência dos negócios em seus lares pré-fabricados de condomínios fechados. O cinema “popular” passa a refletir a visão dos donos do dinheiro e do poder, afirma e consolida a consciência da classe abastada, institucionaliza os valores conservadores do bem-estar social, ironizando alguma coisa aqui, dando voz a outra coisa ali (a mulher empreendedora), mas no fundo mantendo a roda girando nos eixos. Bernardet identifica os retratos com certa precisão, mas erra no tom e nos caminhos a serem desvendados. Reduzir a questão a polarizações (bem feito/mal feito, vulgar/requintado) é não perceber a nuvem de fumaça acumulada na frente dos filme, cuja crítica faz a vez de dissipar.

Share Button