“Uma trepada com o cinema” – Encontro com Carlos Adriano

O cinema de Carlos Adriano sempre insistiu num caminho inteiramente apartado das correntes principais da história do cinema brasileiro. Em sua insistente poética dos arquivos, Adriano cavou uma estrada solitária, que lhe rendeu homenagens e admiradores ao redor do mundo, mas permanece ainda muito desconhecido em seu país. A série de filmes Sem Título, realizada a partir de 2014 e que já conta com seis trabalhos, é um marco do cinema de invenção brasileiro da última década. Por ocasião da série #RevisõesAnos10, decidimos retornar a… CONTINUA

Enterrando nossos vivos

Lá pela metade da terceira história do excepcional La Flor (2019), de Mariano Llinás, Dreyfuss (Horacio Marassi), um cientista alemão sequestrado que termina amarrado no banco de trás de um carro em terras desconhecidas, liga os pontos que o levaram até aquele momento para tentar imaginar seu destino. Enquanto as sequestradoras guiam por planícies desertas, falando apenas em francês, ele especula que elas estão apenas esperando que o cair da noite: – “Chegou a hora. Elas vão me matar.” Mas elas não o matam. E… CONTINUA

O futuro de um passado

Em ao menos duas ocasiões ao longo de The Irishman, o mais novo filme de Martin Scorsese, a câmera passa do exterior ao interior de uma locação, atravessando o parabrisa de um carro em uma delas, e a porta de vidro de uma lanchonete em outra. Esse movimento traz à memória um plano bastante célebre de Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, em que um movimento de grua passa por entre as letras de neon do luminoso sobre o El Rancho e atravessa uma claraboia,… CONTINUA

Tudo acontece

O livro escrito pela acadêmica e pesquisadora brasileira Ivone Margulies sobre a obra da cineasta belga Chantal Akerman, recentemente editado no Brasil pela EdUSP, traz em seu título uma síntese do estado de espírito requisitado ao espectador por um filme como Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles: nada acontece. Há, no título do livro, um chiste com o tom jocoso facilmente aplicado aos filmes de Chantal Akerman que, na secura de seu minimalismo, podem gerar a impressão de serem narrativas – muitas vezes… CONTINUA

Viver em desencaixe

Após um curto prólogo, As Duas Irenes convida a câmera à mesa, onde quatro mulheres de idades diferentes gravitam em torno de um patriarca que olha pela janela. A decupagem inaugura o nó dramático com um plano médio que coloca Tonico (Marco Ricca) na cabeceira da família, olhando para fora daquela casa (e, no cinema, todo olhar é uma forma de desejo). O filme não será sobre ele, assumindo seu ponto de vista, e o corte seguinte anuncia que suas ações deflagrarão (ou melhor, deflagraram)… CONTINUA

A revanche das sinhás

Festival de Cannes, 2006. Sofia Coppola, à altura ainda trajando os louros de nova auteur pelo sucesso estrondoso de Encontros e Desencontros (2003), aporta no tapete vermelho com uma bomba-relógio sob o vestido. Dali a duas horas, Maria Antonieta – seu extraordinário terceiro longa-metragem – conquistaria lugar para todo o sempre nos inventários de incompreensão acrítica da grande imprensa: “11 filmes que foram vaiados em Cannes”, listou o Telegraph dez anos depois; “A França diz ‘non’ a Marie-Antoinette”, escreveu, malandramente, o today.com; uma “proto-Euro Disney… CONTINUA

A imagem em jogo

O Inquilino (2010) é uma das obras co-dirigidas pelo cineasta Cao Guimarães com a artista visual Rivane Neuenschwander – parceria que inclui também trabalhos como Quarta-feira de Cinzas (2006) e a obra-irmã Sopro (2000). A diferença de titulação é proposital, senão propositiva: Cao Guimarães tem como marca de sua trajetória um trânsito entre a galeria e a sala de cinema – inclusive com uma produção frequente (e de altos e baixos) em longa-metragem; já Neuenschwander tem, no vídeo, matéria de uma fração delimitada de sua… CONTINUA

O específico está morto; longa vida ao específico

1. Moonlight é uma história em três partes sobre a vida de Chiron, um garoto que cresce em um bairro barra pesada sob o sol de Miami. O filme é baseado em uma peça não-montada com o belo título In Moonlight Black Boys Look Blue, escrita por Tarell Alvin McCraney, que, como o diretor Barry Jenkins, cresceu naquela região. No texto que apresentava a mostra de filmes curada pelo diretor para o Lincoln Center, em Nova York, Jenkins estabelecia um paralelo entre a estrutura de… CONTINUA

A poesia está morta; longa vida à poesia

1. À primeira vista, Paterson parece um filme dedicado a simplesmente contar uma história, mesmo que de sua maneira levemente peculiar. Há, aqui, suficiente aderência dramatúrgica para não alienar uma plateia recentemente reconquistada pelo diretor, muito embora a catequese tenha sido fruto de um de seus piores filmes – Only Lovers Left Alive (2013). Nesta nova ficção (simultaneamente, o diretor lançou também o documentário Gimme Danger), essas estratégias narrativas tradicionais são colocadas na vitrine, como iscas sedutoras a um espectador que o filme sabe bem… CONTINUA

A política da atenção

Na conferência A Política da Arte, o filósofo Jacques Rancière conta uma narrativa de emancipação operária publicada em um jornal militante durante a Revolução Francesa: “Sentindo-se em casa enquanto ainda não terminou o piso do cômodo em que trabalha, ele desfruta da tarefa; se a janela se abre para um jardim ou domina um horizonte pitoresco, por um instante ele repousa seus braços e plana em ideias para a espaçosa perspectiva, gozando dela melhor do que os proprietários das casas vizinhas”. Essa breve chance de… CONTINUA