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Tudo acontece

O livro escrito pela acadêmica e pesquisadora brasileira Ivone Margulies sobre a obra da cineasta belga Chantal Akerman, recentemente editado no Brasil pela EdUSP, traz em seu título uma síntese do estado de espírito requisitado ao espectador por um filme como Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles: nada acontece. Há, no título do livro, um chiste com o tom jocoso facilmente aplicado aos filmes de Chantal Akerman que, na secura de seu minimalismo, podem gerar a impressão de serem narrativas – muitas vezes longas, como é o caso aqui – ou composições plásticas nas quais nada acontece. Mas há, também, um segundo sentido contido no título do livro: mesmo o nada é algo que acontece. Guardados todos os pressupostos políticos e ideológicos que determinam, para cada espectador, o que é algo e o que é nada, até esse nada toma tempo e espaço, ocorre em lugar específico (no caso de Jeanne Dielman, um título que pode ser buscado com exatidão no Google Maps) e age sobre alguém.

Essa percepção de Margulies, desdobrada de maneira muito rica em seu livro, é tão valiosa por apontar o movimento primordial feito por Chantal Akerman no seu mais célebre filme: promover uma profunda reavaliação das escalas. Ao dedicar tempo e atenção à rotina de Jeanne (Delphine Seyrig), esquadrinhada como uma operação tática de guerra ou como uma autópsia etnográfica, a cineasta condensa a expectativa do espectador a uma outra medida de percepção. Na musicalidade com que ela descasca batatas, lava axilas ou arruma camas, Jeanne Dielman na verdade revela-se um filme de ação ininterrupta, cujas pequeníssimas variações ganham enorme peso dramático: tudo acontece. Esse sentimento seria literalmente condensado três décadas depois pela grande artista Louise Bourgeois: “O que você fez ao longo de vinte anos? Você jogou seu tempo fora. A mulher que perdeu toda a sua vida, ela cozinhou, limpou a casa, costurou, lavou, cuidou da escada, das janelas, do chão, do peixe e da sopa”. (Hours of the Day, 2006).

Tamanha mudança de escala promove um encontro entre o deslocamento do heroísmo para o homem comum do Ulisses (1922), de James Joyce, com a perspectiva de um inventário espacial feminista de Virginia Woolf em Um Teto Todo Seu (1929). Se Ulisses é, ainda, uma cartografia de Dublin, com seus cafés, praças e portos, Jeanne Dielman é uma exploração da potência de um endereço, dos sonhos e traumas que se inscrevem nas paredes, sempre pressionadas pelo fora de campo. Esse fora de campo aqui carrega o peso da guerra, dos pais e marido mortos, da identidade judaica em apagamento, das expectativas e demandas da vida porvir de seu filho. Em 23, Quai du Commerce, está impresso o século XX, pois “basta que entremos em qualquer cômodo de qualquer rua para que essa força extremamente complexa da feminilidade nos salte aos olhos por inteiro. E como poderia ser de outro modo? Pois as mulheres têm permanecido dentro de casa por todos esses milhões de anos, de modo que a essa altura as próprias paredes estão impregnadas por sua força criadora, que, de fato, sobrecarregou de tal maneira a capacidade dos tijolos e da argamassa que deve precisar atrelar-se a caneta e pincéis e negócios e política”, escreveu Woolf.

Ao fim da sessão, o espectador talvez seja capaz de descrever o cheiro e desenhar a planta baixa daquele apartamento (uma primeira surpresa, quando Jeanne e o filho saem de casa: um elevador! É um apartamento, não uma casa!), pois o filme lhe confere o privilégio de, simultaneamente, habitá-lo e observá-lo de fora. Esse estranho equilíbrio se dá porque a câmera de Akerman perscruta esses espaços de maneira ao mesmo tempo detalhada e distante, com a ambiguidade do registro científico e do recalcamento coletivo, cego e surdo à disritmia do moedor de carne que sustenta a aparente estabilidade do cotidiano. A fatura vem na infiltração progressiva desse cotidiano com um verdadeiro sentido de tragédia. “Quando ela bate com o copo de leite na mesa e você pensa que o leite pode derramar, isso é tão dramático quanto um assassinato”, dizia Akerman. À medida em que disrupções ditam uma outra percussão nessa coreografia emudecida, o filme de ação se torna filme de suspense.

À primeira vista talvez reiterativo, Jeanne Dielman na verdade aplica, de maneira extremamente econômica, uma lógica de modulações – tão cara ao minimalismo quanto à cultura tradicional judaica – calcada em repetição e diferença. Não retornamos às mesmas ações da mesma maneira; há sempre uma pequena variação nas tarefas cotidianas, que sedimentam essa revolução imperceptível. A duração faz-se proposição fundamental, pois as transformações – esse grande agente narrativo que encontra na imagem em movimento território privilegiado, seja num filme da Pixar ou nos retratos filmados de Andy Warhol – sempre ocorrem no tempo, acumulando como poeira nos batentes. Na redução de escala proposta e levada às últimas consequências por Akerman, o diabo se instaura nos mais ínfimos detalhes.

Para alcançar esse nível de ambiguidade propositiva, a diretora promove uma combinação surpreendente entre narrativa e rarefação; compaixão e estoicismo; Bresson e Minelli; Hitchcock e Michael Snow. Se a obra de Akerman é um grande compêndio de gêneros e registros do cinema – do documentário à ficção; do cinema estruturalista à comédia musical – Jeanne Dielman parece absorver e ressignificar toda essa vida de paixão pelas imagens e pela música das imagens, mudando o cinema dali por diante, e dali para trás. O cinema é um só e, na solidão esgarçada de Jeanne Dielman, ele encontra um dos mais belos e completos reflexos em sua curta história.


A Sessão Cinética exibe Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, de Chantal Akerman (Bélgica/França, 1975) nos dias 16 de Dezembro, sábado, no IMS Paulista, às 16h45, e 17 de Dezembro, domingo, no IMS Rio, às 17h30. Após as sessões, haverá debates com os críticos da revista e convidados especiais.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, mantendo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional no Rio de Janeiro e em São Paulo. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles será exibido em DCP.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS e no site ingresso.com.


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