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Uma noite de “facas longas”

Uma das maiores virtudes de O Animal Cordial, primeiro longa da Gabriela Amaral Almeida (que conta com vários curtas no currículo, entre eles Uma Primavera, A Mão que Afaga ou Estátua, de 2011, 2012 e 2014, respectivamente), é a de saber articular uma intenção de produzir um discurso sobre o Brasil – um Brasil atual, dos dias de hoje, mas no qual o patrimônio histórico, com todas as suas problemáticas e nuances (políticas, culturais, sociais, raciais), está permanentemente presente – com um olhar reflexivo, inteligente e cheio de sutilezas, ao mesmo tempo manejando com apuro e sofisticação uma linguagem cinemática própria. E essa é, desde logo, uma curiosidade paradoxal e interessante: a presença dessa sutileza num filme em que, plasticamente, tudo está no extremo oposto, saturado e explícito, do barroquismo das cores (ainda que balanceado pelos tons cinzentos e azulados) aos elementos gore que vão sendo sucessivamente dispostos (carne, sangue, corpos, facas).

O filme concentra no mesmo (irrespirável) espaço, o restaurante de Inácio (Murilo Benício num papel que transfigura a sua habitual imagem telenovelesca), a totalidade das personagens. Um espaço fora do qual não vemos, em momento algum, o mínimo vislumbre – os prédios, as ruas, as pessoas, enfim, nada-para-além é visível ao espectador. Neste sentido, é como se a “sociedade” não estivesse presente (ficando literalmente “à porta”) no interior daquele restaurante de classe média-alta de São Paulo, e não pudesse evitar o que de terrível (ou não tão assim…) se desenrolará nas horas seguintes. Vendo de outro ângulo, porém, essa mesma sociedade está presente, na medida em que Gabriela Amaral Almeida constrói personagens que, pretendendo sinalizar determinado posicionamento social (o empresário dono do restaurante, a empregada de mesa e os cozinheiros, o advogado e a sua esposa fútil, o ex-policial, os bandidos) – embora nunca as tratando de forma esquemática ou estereotipada –, são forçadas a coabitar num só espaço de piso único. Não por acaso, tal espaço é absolutamente horizontal, plano, evitando outra tradicional disposição que é a de colocar “fortes e “fracos” (ou, em alguns casos, “exploradores” e explorados”) em patamares distintos, os primeiros “em cima”, os segundos “em baixo”, as escadas como ponte possível – e as pontes podem ruir… – entre as relações de poder vigentes.

Pelo contrário, em O Animal Cordial, todas as personagens se encontram numa absoluta relação de paridade – porque ali, naquela noite, naquele restaurante, aquilo que os separa (o dinheiro, a posição social, a cor da pele, o gênero e respectiva identidade) de nada vale. Ou seja, depois da chegada socialmente condicionada ao restaurante, elas partirão do mesmo radicalmente igualitário ponto base para o confronto (mesmo que, à partida, não o saibam). O mesmo é dizer que brancos, negros, heterossexuais, homossexuais, transexuais, ricos e pobres, todos estão condenados a pisar o mesmo chão e a utilizar as mesmas divisões – e as mesmas armas.

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Mas se as personagens não estão cientes dessa radical paridade ou nivelamento que o filme imprime ao espaço, elas acabam por ir sentindo isso “na pele”: como uma cebola, o filme vai-se descascando, ou melhor, vai “descascando” progressivamente os dois protagonistas principais – paradigmática relação de poder entre patrão (Inácio) e empregada (Sara, num enorme desempenho de Luciana Paes) –, que, da indumentária convencional normatizada (ele de camisa, ela de farda), passam a estar nus, nada mais os distinguindo socialmente dali em diante. Os corpos vão se desnudando à medida que as “roupagens” simbólicas vão caindo, até à nudez total, como os homens das cavernas – o grau zero do relacionamento humano, livre de normas e convenções (de, apetece dizer, “boas maneiras”). O medo – elemento nuclear do gênero de terror – vem também daí (mais do que dos tiros, das facas e do sangue): do que são os homens capazes quando as convenções que os regem caem por terra e eles se passam a relacionar como bichos, como animais? O que pode acontecer quando transitamos do império das convenções para o império dos… instintos?

Numa luta que diríamos ser, bem mais do que de classes, de “faces”, as personagens são construídas como seres complexos, dúbios, por vezes mesmo de motivações insondáveis (sobretudo a personagem principal interpretada por Benício). Se essa indefinição começa, desde logo, com um questionamento identitário, queer, em torno da chef – a touca que, nas primeiras cenas, a “normaliza” como homem, cairá depois –, ela assumirá contornos eminentemente psicológicos e morais, sobretudo nas personagens do dono do restaurante e da “sua” empregada-propriedade, casal “impossível” cuja diferença original de posicionamento social o manterá separado mesmo depois da partilha do desejo, do sexo, da morte. É essa complexidade que, por exemplo, não deixa cair a esposa do advogado (Camila Morgado) no arquétipo da figura fútil, afetada, inconsequente, enfim, da “mulher desocupada” ou “gold digger”: não só ela se revolta veementemente contra o marido pela sua inação aquando do assalto (durante o qual é “comida” pelos bandidos, num filme em que tanta fome, metafórica e não metaforicamente, existe), como se comportará de forma enérgica e, mesmo, violenta no confronto com Inácio. Uma (aparente) mulher-ninguém que se revela, afinal, uma “mulher de armas”, inteligente e determinadíssima. Nada disto é por acaso, antes obedecendo a uma ideia de transformação a que aludiremos mais adiante.

A reflexão política que, pelo meio de uma narrativa de terror gótico, O Animal Cordial leva a cabo é aquilo que, simultaneamente, o aproxima e afasta de um filme como The Hateful Eight (2015), o último trabalho de Quentin Tarantino. Ambos partilham da mesma estrutura huis clos, de beco sem saída, de um “concentrado” da sociedade que tem forçosamente de se resolver consigo mesma naquele espaço e naquela noite (que poderia ter sido evitada se Inácio não tivesse obrigado os empregados a trabalhar para lá do seu horário laboral…). Em ambos os filmes, é essa claustrofobia espacial que fabrica a permanente atmosfera de tensão de “todos contra todos” (todos se querem comer uns aos outros), de quem é quem e fez o quê (whodunit) – no caso de O Animal Cordial, surgem, a certa altura, dúvidas sobre se a chef está concertada com os bandidos ou se a empregada de mesa é mulher de um deles. Também nos dois filmes, a horizontalidade emerge como marca espacial essencial, na medida em que os estabelecimentos nos quais toda a ação decorre (o restaurante no filme de Gabriela, a estalagem no de Tarantino) aplanam o que, convencionalmente, está verticalizado; o piso único em vez das escadas; a planura no lugar dos “degraus” (habitacionais, sociais). Aí se localizando outro estimulante paradoxo do filme: o fato de essa planura (visual, espacial, simbólica) conviver com a complexidade das personagens e das questões que o filme levanta, autênticas montanhas (em vez de planícies, então) repletas de altos e baixos, picos e escarpas, desvios e desníveis.

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A essa planura correspondem, aliás, a ideia e o décor próprio do western americano, e ambos os filmes, em certo sentido, o são: tanto O Animal Cordial como The Hateful Eight se desenrolam nessa planície horizontalizante com códigos próprios, suspensos (ou destruídos) que estão os códigos convencionais pertencentes ao mundo “lá de fora” – não por acaso, o Policial e o Advogado, símbolos da Ordem e da Justiça, são duas das vítimas do sanguinolento festim. É que, neste restaurante, a “justiça” é definitivamente de outra ordem: poética, revolucionária, até jacobina, ela mede-se necessariamente por outros critérios, pois que estamos também num outro mundo, queremos dizer, ainda-no-mundo-que-conhecemos mas já com o pé num outro, desconhecido mas certamente diferente. Mais violento? Só para quem não vir a violência extrema que percorre subterraneamente o mundo em que vivemos – é dela que resulta, justamente, o banho de sangue naquele maldito restaurante. O fato de tal “justiça” ser feita, num primeiro momento, pelo “justiceiro” Inácio – ou seja, a circunstância de uma certa ideia de “revolução” começar por ele (embora, no final, o feitiço se vire contra o feiticeiro), homem de classe média profundamente frustrado –, e não, como um filme previsível levaria a cabo, pelos mais pobres (os bandidos, por exemplo, cujas pistolas falsas sugerem uma ontológica impotência), só adensa a narrativa e oferece novas leituras ao filme. Desde logo, e ao contrário do que parece estar implícito no conceito de “homem cordial” forjado por Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1930, e com o qual o título do filme joga, Inácio não tratará com favor aqueles que lhe estão mais próximos na teia social, antes a cortando, literalmente, a direito.

Curiosamente, também no filme de Gabriela Amaral Almeida são oito as personagens enclausuradas, todas elas se odiando por razões distintas. Todavia, a sensação que nos fica é a de que O Animal Cordial é o filme que, num certo sentido, Tarantino hoje já não sabe fazer. De fato, e como tivemos já oportunidade de escrever a propósito de The Hateful Eight, “Se é certo que o cinema de Tarantino sempre foi ‘político’ num sentido genérico (o racismo, o sexismo, as armas, a violência da América, etc.), parece-nos, porém, que foi a partir do momento em que decidiu tratar assumidamente de questões políticas (e ‘fracturantes’) que o seu cinema – na origem, um gramofone das estórias e dos mitos da América –, pretendendo assumir uma certa gravidade, uma certa ‘consciência histórica’ (mesmo que através do humor e da meta-referencialidade), resvalou para a irrisão e para a superficialidade. A bem dizer, os melhores filmes de Tarantino (Reservoir Dogs, Pulp Fiction, Jackie Brown, Kill Bill) continuam a ser aqueles que, não deixando de ser ‘políticos’ no genérico sentido aludido, não possuem pretensões políticas ou históricas declaradas, com a grande excepção que é Inglorious Basterds (2009), o qual, de fato, consegue juntar o melhor dos dois mundos”.

Pelo contrário, onde Tarantino é didático, explicativo (explicativo, entenda-se, a respeito da história política da América, pois de diálogo os filmes do americano sempre estiveram obviamente pejados), Gabriela Amaral Almeida, não descurando igualmente um sofisticado tratamento da linguagem cinematográfica (a câmara seguríssima, a composição sólida dos planos, a plasticidade das formas e das cores), deposita tudo nas entrelinhas: se a memória não nos trai, e com exceção do momento em que a chef diz que os negros são sempre culpabilizados pelos males do mundo, nem por uma vez se ouvem as palavras “raça”, “rico”, “escravo” ou “História”. Nada, ou quase nada, é dito, pois é também nas entrelinhas humanas que se situam os impulsos e desejos mais primitivos das personagens. É para esse frágil equilíbrio psíquico entre “animalidade” e “cordialidade” – que tanto é inflexão irônica para o termo “racionalidade” como trocadilho com o já referido conceito de homem cordial, mediante o qual Buarque de Holanda via na polidez do homem brasileiro uma capa que ocultava o fato de este encarar todas as situações da vida com o coração (cordis) e não com a razão – que o título do filme remete, no sentido em que a interiorização e a subordinação a concepções e códigos socialmente construídos (por isso que artificiais) podem descarrilar a qualquer momento, ascendendo-se rapidamente ao pico da loucura. “Vampiros e canibais, mano, só andam à noite / Gente equilibrada desequilibra-se à noite / À noite, à noite, à noite…”, já profetizava o rapper português Valete

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É essa mesma loucura que fica sugerida pelo espelho quebrado – clássica representação da fragmentação ou alienação mental – onde os dois protagonistas se miram pelo meio do seu ritual simultaneamente sexual, satânico, canibalístico. “Vocês são dois doentes”, diz Djair (a chef interpretada por Irandhir Santos), horrorizada. Mas o ponto é precisamente este: não há “doença” aqui, ou, a haver, a patologia é da ordem do social e do psicológico, uma psicose localizada no subconsciente coletivo que finalmente vem ao de cima naquela noite de “facas longas” – a mesma psicose, tão silenciosa quanto histriónica, que induz as personagens de O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho) a alimentar pesadelos, fantasias quase fetichistas, com a rebelião dos desfavorecidos.

À prolixidade textual recente de Tarantino, O Animal Cordial contrapõe outros recursos: a mise-en-scène opera em vez das palavras; o rosto de Luciana Paes (rosto “almodóvariano”, ou seja, “picassiano”) expressa cubisticamente a perturbação e imprevisibilidade de todo aquele circo humano (desse cubismo sendo plasticamente representativo o plano do espelho quebrado atrás referido); a carne dos animais servidos à mesa evoca a carnificina humana que virá depois (uns tão indefesos como os outros, em nova aproximação dos homens aos animais); o sangue, como vômito ou ejaculação, traduz o único resultado possível para aquela explosiva mistura de recalcamentos e frustrações. Todo um operático, luxuriante e argentiano banquete que, no seu inevitável caminho para a morte, não deixa de trazer à memória um filme como La Grand Bouffe (1973), de Marco Ferreri.

No mesmo texto que citamos acima, anotávamos, ainda, que The Hateful Eight talvez fosse o indício de uma “aproximação ao filme de terror que bem poderia constituir para Tarantino o indutor de um desejado galgar para terrenos menos familiares”. No fundo, é essa aproximação que Gabriela Amaral Almeida aqui concretiza, abraçando sem reservas o slasher sem nunca perder, contudo, o sentido de humor e, insista-se, de mise-en-scéne, como é disso exemplo o zoom out final com que a câmara se vai afastando lentamente do terno e relaxante esquartejamento iniciado pela empregada (será que tudo não passará de um sonho?), ao som de uma delicodoce canção (“Dark Is Rising”, dos Mercury Rev) cuja letra ganha aqui uma perversa significação (“I dreamed of you in my arms / But dreams are always wrong / I never dreamed I’d hurt you / I never dreamed I’d lose you”). Traçando, ainda, um paralelo com o filme Vazante (2017), de Daniela Thomas, que tanta celeuma gerou no Festival de Brasília, em O Animal Cordial, não há lugar para qualquer hesitação ou marcha ré na rebelião em curso: apesar de vagamente apaixonada pelo patrão – uma “paixão” que se assemelha sempre mais a um endeusamento idealista, fetichista, de base econômico-social (o tal “sonho” de que fala a canção) –, a empregada, depois de repetidas humilhações, acabará por violentá-lo sem piedade. Como um bife tártaro, a vingança serve-se fria e crua.

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Simbolicamente, os únicos que conseguem sair vivos daquele reduto proto-apocalíptico são três mulheres e um negro: os empregados negros (uma mulher e um homem) que, no início do filme, ainda antes da derrocada do mundo das convenções, se haviam recusado a trabalhar para lá do seu horário; e, já no fim, além de Sara (outra mulher), a chef, negra e transexual, a qual, antes de sair, recupera do chão o cabelo – a identidade, a dignidade – que, num ato de puro autoritarismo normalizador machista, o patrão lhe havia cortado. Matar para viver, então: depois da maratona sangrenta que praticamente acaba com o mundo como o conhecemos, são indivíduos historicamente reprimidos e inferiorizados que poderão recomeçar um novo.

Jogando, ainda, com a noção de homem cordial teorizada por Buarque de Holanda, para quem o agir do homem brasileiro segundo o coração (cordis) impede que este distinga a esfera privada da esfera pública (com todas as consequências políticas e ético-morais daí decorrentes) – e não obstante o determinismo nefasto inerente a tal conceptualização –, podemos ver o restaurante de Inácio justamente como o espaço confluente das duas, mas agora num sentido positivo (oposto ao sentido tradicionalmente negativo, ligado, por exemplo, à corrupção), porque transformador e progressista. Queremos dizer: é por não fazerem – por não conseguirem fazer – a distinção entre uma esfera e outra que as personagens tornam esse espaço, a princípio uma arena motivada por motivos “pessoais” (mas só aparentemente, pois eles ecoam toda uma tensão social, classista), numa arena verdadeiramente política, e cujo desfecho possui consequências igualmente políticas, mesmo civilizacionais.

Com efeito, nesta ideia transformadora, nesta utópica esperança de um re-configurar das relações de poder, O Animal Cordial revela-se, afinal, revolucionário, não se contentando, porém, em destruir um tipo de sociedade, antes lhe dando uma nova oportunidade. Desta feita confiando esse papel renovador, porém, àqueles que sempre viveram à sombra – à guarda – dos agentes históricos (o homem branco ocidental, genericamente) que fizeram o mundo avançar, nos seus progressos como nos seus obscenos erros. No fundo, o filme estende diante de nós a hipótese de um recomeço do mundo com novos protagonistas e sensibilidades, ou, pelo menos, um mundo em que tod@s sejam protagonistas num único e horizontal plano de convivência humana. Em que tod@s possam participar – e voltando à intenção discursiva sobre o Brasil contemporâneo com que iniciámos estas linhas – na decisão daquilo que deve ser a “Ordem” e o “Progresso” de uma comunidade.

* Versão original e mais extensa do texto publicado no âmbito do Talent Press Rio, no Festival de Cinema do Rio de Janeiro (http://www.festivaldorio.com.br/br/noticias/explodir-com-o-mundo-para-comecar-um-novo)


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