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Eu quero ser a uva pra ver tudo lá de cima

“Estão às minhas costas, um velho com cabelos nas narinas

E uma menina ainda adolescente e muito linda

Não olho pra trás mas sei de tudo

Cego às avessas, como nos sonhos, vejo o que desejo”

Estrangeiro (1989), Caetano Veloso

As Sete Idades da Mulher (1544), de Hans Baldung Grien

“Aqui nessa imagem quem eu mais gostaria de ser?… uma uva! Porque se uma uva pudesse ver, ela veria tudo lá de cima.”. A fala é de uma menina de cerca de 12 anos de idade em frente à pintura As Sete Idades da Mulher (1544), de Hans Baldung Grien, pintor renascentista alemão, no filme Garotas / Museu (2021), de Shelly Silver, em exibição no 10º Olhar de Cinema.

O filme parte de um dispositivo aparentemente simples. Em um recurso comum a projetos educativos em arte, meninas, crianças e adolescentes, diante de pinturas e fotografias no Museu de Belas Artes de Leipzig, respondem a perguntas como: “O que você vê?”, “O que pensa sobre isso?”, e ainda outras perguntas mais específicas em relação à representação e ao gênero, como: “onde você se vê nesta pintura?”, “Você acha que esta pintura é feita por um homem ou por uma mulher?”, “Como está o corpo da mulher nesta obra?”. As perguntas não estão em cena, nem as entrevistadoras, mas as supomos a partir das respostas das garotas.

Os planos são fixos, com uma distância de quadro quase sempre na altura da cintura. As meninas falam sobre as obras apontando detalhes, ora com mais segurança, ora com menos. Estão nos dando uma aula. A forma como Silver as filma não deixa dúvida do lugar que ela escolhe para estas meninas no filme. Elas são curadoras: escolhem as obras sobre as quais vão falar (um dos únicos planos que se movimenta é quando a câmera acompanha o gesto curatorial de uma das garotas que muda de uma pintura a outra “que ela gosta mais”). São também professoras: estão nos conduzindo como em uma visita guiada por uma história da arte, com ênfase nas análises de representação da mulher – seguem certa cronologia da museografia, do renascimento à atualidade, com inserções muito pontuais de obras contemporâneas a dialogar com os diversos períodos.

Dando aula. Garotas / Museu (Shelly Silver, 2021)

O filme assume nas imagens e na narrativa uma ideia de curadoria compartilhada com as meninas e com o desenho museográfico da instituição. Algumas vezes, a partir das falas das entrevistadas, outras para construir o olhar mesmo do filme, Silver recorta as pinturas, pontua detalhes, opta por ângulos sugeridos pelo museu. Um exemplo é o momento em que cria o jogo de olhares entre três esculturas: a da mulher escravizada, a da mulher com o filho e a da mulher leitora. Ou quando opera a montagem do filme como uma curadoria, na forma como corta de uma obra ou de uma fala para a outra.

O discurso que permeia o filme: o mundo, e o mundo da arte, é ordenado pelo olhar e o poder dos homens. Como os novos olhares reconfiguram esta organização? De forma mais pragmática, como verbalizado nas perguntas disparadoras finais, que não ouvimos, mas supomos: uma curadoria é um espaço de poder, precisamos de mulheres curadoras. Ou ainda, na maravilhosa resposta de uma menina de cerca de 10 anos, que não por acaso termina o filme: “Se não temos tantas mulheres que produziram arte antigamente, temos que apreciar as da atualidade. Inclusive expor obras de crianças também, porque as crianças veem as coisas diferentes dos adultos.” Neste ponto, quase podemos ouvir o gritinho incontido de satisfação da diretora ao conseguir esta fala, aquele tão conhecido de professores quando têm uma epifania compartilhada com os alunos.

O jogo de olhares está posto: nós vemos um filme que vê as meninas vendo as obras de um museu. O caminho contrário é um pouco mais complexo: somos vistos por um filme que vê as pinturas e esculturas vendo meninas sendo vistas por uma câmera. O que estas pinturas veem? Na relação entre arte e espectador, um mundo. Quantos anos se passam? Quantos espaços? Quais gestos expressivos ecoam naqueles corpos contemporâneos? O que as pinturas enxergam e nos mostram daquelas crianças? E mais, o que essas meninas pensam que aquela câmera quer delas? Uma certeza: nenhuma constância (ainda bem!). Falo de meninas de uma forma generalizada, mas é importante dizer o óbvio: as diferenças estão nos corpos e nos olhares de cada uma. Uma menina síria, por exemplo, dá ênfase às questões de classe presentes nas obras e mesmo na organização do museu, e expressa desejos de poder diante de uma obra renascentista; uma afegã com roupas masculinas fala sobre gênero e sexualidade e sobre Deus com paixão semelhante. As personagens se alteram, não seguimos com as mesmas do início ao fim, o que apresenta um caleidoscópio ainda mais colorido de interações e possibilidades.

“Eu escolhi essa pintura porque ela conversou comigo. Tem uma luz nela…”. Garotas / Museu (Shelly Silver, 2021)

A diversão é ver cada uma refletida no seu olhar, às vezes escapando das perguntas mais direcionadas das entrevistadoras, às vezes concedendo a resposta tão esperada. Do período renascentista, com seus veludos e ninfas sensuais, percebemos uma aproximação mais sensorial e menos de identificação com as representações femininas: “Eu escolhi essa pintura porque ela conversou comigo. Tem uma luz nela…”. À medida que se aproxima o realismo burguês do século XVIII, as leituras sociais se intensificam e já é possível uma identificação mais imediata daqueles corpos com os seus. Diante de uma pintura impressionista, as opiniões discordantes. Uma mulher, com um seio de fora, fuma e olha para o espectador. Induzidas ou não pelas perguntas, as falas se concentram no corpo da mulher e no seu seio à mostra. “Eu vejo uma mulher livre, que escolheu posar para esta pintura assim.”; “Para mim ela está sendo usada.”; “Tenho a impressão de que ela está exposta.”; “Acho que ela escolheu mostrar o seio desta forma.”. O sótão por trás da mulher representada se desmancha, os móveis flutuam, se desintegram, mas não é nisso que as garotas prestam atenção ou ao menos são levadas a ver.

Que a linha de contorno da figura no Barroco esteja se esvaindo, ou que a peça de mármore permaneça à mostra apesar do rosto de mulher extraído dela, parece não importar muito. A representação e a identificação como arma política precisa ser afirmada. It’s a men’s world e nós precisamos tomá-lo, sem dúvida. Mas algumas poucas respostas escapam da lógica, ou tomam a lógica por outro caminho – e há aqui a sensibilidade de Silver em mantê-las –, e refletem um olhar que se inclina para a obra em seus gestos expressivos: “As pinceladas fortes são uma forma de rebelião”, diz uma das garotas sobre Amantes (1919), de Otto Mueller, enquanto outros olhares giram em torno de especulações sobre se a blusa aberta da figura feminina é um gesto de afirmação ou de submissão.

Amantes (1919), de Otto Mueller

O filme, e consequentemente os olhares, parecem traçar uma linha reta entre a representação onírica renascentista, o realismo burguês, as vanguardas impressionistas, o surrealismo pós-segunda guerra. Tudo é corpo de mulher. Corpos sobre os quais aquelas meninas, por serem a priori mulheres, provavelmente se identificam. Mas outros desejos escapam: “Nesta pintura, eu queria ser a criança montada no cachorro”. As opressões históricas e as lutas políticas pedem às mulheres um olhar reativo, de defesa. Apontar a violência, virar a arma contra o inimigo. Mas, certamente, nos interstícios do campo de batalha, sobra tempo para imaginar, se despir de um corpo, e querer ser a uva para ver tudo lá de cima.


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