Cavalo Dinheiro e a arte do retrato

janeiro 25, 2016 em Colaborações especiais, Em Pauta

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por Luiz Carlos Oliveira Jr. (colaboração especial)

Cavalo Dinheiro (2014) radicaliza um programa figurativo já presente nos filmes anteriores de Pedro Costa, mas agora depurado e, de certa forma, sistematizado. Esse programa, com tudo o que comporta de posado e mortificante, aproxima seu cinema da arte do retrato, como se observa em sua tendência recorrente a estatuificar os corpos filmados e transformá-los em bustos heroicos. O cineasta português dá aqui livre vazão a uma vontade, já pregnante em Ne Change Rien (2009), de concentrar a mise en scène no ato de retratar uma pessoa, de fixar o seu ser, o que leva todo o dispositivo da filmagem a se organizar em torno daquele “screen magnetism” de que Andy Warhol falava – aquele “algo secreto”, aquela força de atração, qualidade inata de presença icônica que algumas pessoas demonstram diante da câmera (Ventura é uma delas, assim como Vitalina, nova descoberta de Pedro Costa, que ilumina Cavalo Dinheiro e provavelmente estará em seus próximos filmes).

No Quarto da Vanda (2000) já era uma espécie de filme-retrato, na medida em que procurava apreender os traços da personagem do título através da observação atenta do seu quadro de vida, da sua moldura existencial. A narrativa se construía menos pela representação de episódios significativos do que por uma sucessão de pequenas vivências cotidianas, fragmentos de vida doméstica dilatados numa duração bem particular, produto de uma gestação prolongada, já que os filmes de Pedro Costa – e isso é um dado fundamental de seu processo – implicam um enorme tempo de preparação (entre fazer o retrato “num só fôlego”, como Roger de Piles recomendava, ou aderir à busca minuciosa e obsessiva de Maurice Quentin de La Tour, é certo que Pedro Costa ficaria com a segunda opção).

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Mas, se a ação dramática já era minguada nos filmes anteriores, agora ela é definitivamente colocada em segundo plano. Porque o que está em jogo, acima de tudo, é a captação do traço, da personalidade, da singularidade dos sujeitos enquadrados pela câmera, quase como se a filmagem fosse, em alguns momentos, o equivalente cinematográfico de uma sessão de pose. A impassibilidade dos planos é tamanha que cada mínima variação da expressão facial de Ventura, cada brilho fugidio do olhar de Vitalina – sempre fitando o alto, sempre imersa em alguma nuvem de pensamento-memória que paira sobre sua vida – adquire a força de um clarão fotogênico. As cenas hieráticas de Cavalo Dinheiro, congeladas numa rigidez de morte, realçam dialeticamente a agitação íntima dos rostos, a vibração das pálpebras, a crispação dos lábios, os tremores desses corpos em repouso – “a tensão vital de toda essa imobilidade”, como dizia Béla Balázs ao tentar definir a pulsação que perpassa a tela toda vez que o cinema se permite, no lugar de mostrar uma ação, filmar cenas imóveis.

Na sequência em que se ouve a bela e triste canção “Alto Cutelo”, da banda cabo-verdiana Os Tubarões, é elencada uma série de planos com os modelos ora paralisados como tableaux vivants, ora executando pequenas ações, criando uma oscilação entre o monumental e o documental. Às vezes, a presença humana visível em quadro limita-se a um par de olhos furando o breu de uma vegetação noturna confusa. Em todo caso, corrobora-se a sensação de que Pedro Costa está atrás de uma potência de representação atrelada ao estático, à calma imperturbável do que (quase) não se move. (A ausência de ação, aliás, é uma das premissas pelas quais a história da arte define o gênero do retrato. Alois Riegl, em seu célebre estudo sobre o retrato de grupo holandês, afirma que o retrato deve “apresentar os traços da figura da forma mais exata possível, e evitando o máximo possível a ação”, porque esta, além de provocar “uma certa deformação dos traços”, afasta a atenção do espectador da personalidade e a desloca para a narrativa, o que prejudica a eficácia do retrato. O retrato “verdadeiro” seria aquele em que a personagem não é apanhada em nenhuma ação e nem exibe nenhuma expressão que a desvie de seu ser. As únicas ações admissíveis num retrato são aquelas que reforçam o “ser” do sujeito representado – por exemplo: o ato de escrever em se tratando de um escritor. No caso do cinema, todavia, não se pode buscar o retrato unicamente na estase, na sequência sem ação, o que seria uma aplicação demasiado direta e simplista da teoria pictórica do retrato. A questão dos modos de assimilação da arte do retrato no cinema, como os cineastas que se “especializaram” na forma retratística – André S. Labarthe, François Reichenbach, Alain Cavalier, Annett Wolf – já nos mostraram, é certamente mais vasta e complexa do que a mera constatação de filmes, ou de momentos de filmes, que estancam a ação dramática, interrompem a narrativa – ou sequer se propõem a desenvolvê-la – para se dedicarem tão somente a fazer o estudo – fisionômico, psicológico, sociológico, expressivo, afetivo – de um rosto.) 

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Cavalo Dinheiro já começa no registro da imobilidade: as primeiras imagens que aparecem no filme são fotografias feitas por Jacob Riis nos tenements de Nova York no final do século XIX. A sequência de fotos termina, ou melhor, culmina com o plano de um retrato pintado por Géricault (e conservado em Lisboa), que representa um homem negro com expressão grave e olhar levemente entristecido. O retrato se encontra num lugar mal iluminado, com uma sombra a se projetar sobre parte dele. Embora se trate já da primeira imagem “realmente” em movimento do filme, todo o enquadramento é ocupado pelo retrato (imagem fixa) e por elementos cenográficos inanimados (um pedaço de cortina à esquerda, uma moldura de porta à direita). Não há, a princípio, movimento – ou, se há, é aquela mobilidade geral difusa e quase imperceptível, aquela invisível ondulação do tempo, que o cinema capta sem necessariamente figurar. O movimento propriamente dito só virá depois que a câmera fizer uma panorâmica/travelling à direita e mostrar um homem descendo os degraus da estreita escada que o levará até a escuridão de um túnel subterrâneo. Esse homem, como o plano seguinte permitirá ver melhor, é Ventura, que os habitués do cinema de Pedro Costa já reconhecem de longe. Nesse e em outros planos nos quais vem andando do fundo do campo em direção à câmera, atravessando alternadamente áreas de luz e sombra fortemente contrastadas, Ventura parece encarnar uma figura do expressionismo alemão, algo entre Nosferatu e o sonâmbulo de O Gabinete do Dr. Caligari (1920), cujos cenários com perspectivas deformadas, cheios de ângulos imprevistos, encontram um eco interessante nas vielas oblíquas dos becos pobres filmados por Pedro Costa.

O plano do retrato opera uma transição em diferentes níveis: do olhar de Riis para o de Pedro Costa (sublinhando, obviamente, as ressonâncias entre ambos), do preto e branco para as cores, do passado para o presente, da imagem fixa para a imagem em movimento. Que seja um retrato pictórico a fazer essa transição é um fato em nada irrelevante, já que reforça o lugar fronteiriço, o limbo figurativo que esse objeto tradicionalmente ocupa no cinema (de Evgenii Bauer a Hitchcock, de Jean Epstein a Jacques Rivette), situando-se entre presença e ausência, vida e morte, fixidez e movimento, objeto real e fantasmagoria, labor cumulativo (a ideia trabalhada progressivamente pelo pintor) e automatismo (a realidade registrada mecanicamente pela câmera). Não percebemos de imediato o movimento da imagem, mas ele está lá, tão discreto quanto incontestável. O plano prolonga a inquietante estranheza que os retratos pictóricos provocam em seus observadores: imagens estáticas, mas investidas de uma presença, de uma vida espiritual que os olhos do retrato concentram (sabemos que a arte ocidental, desde o início da era cristã, confere aos olhos uma importância particular em seu sistema representativo, crendo haver neles um acesso privilegiado à interioridade da figura retratada).

O busto negro pintado por Géricault talvez tenha sido empregado como signo substitutivo do jovem Ventura, e o movimento de câmera que vai do retrato ao indivíduo em carne e osso funcionaria, assim, como um vaso condutor não só entre a pintura e o cinema, mas principalmente entre o passado e o presente de um corpo – passado e presente que precisam, de alguma maneira, habitar o mesmo espaço, daí a utilização de um só plano, de um só registro contínuo para ir de um ao outro. Seguindo essa lógica de condensação temporal, as memórias de Ventura, as reconstituições de momentos do seu passado (há algumas ao longo do filme) serão interpretadas por ele mesmo, e não por um ator mais jovem: o corpo de Ventura, mais que um estado atual ou passageiro, revela-se uma concentração de tempos. A cena em que ele troca olhares com uma máscara africana afixada à parede nada tem de gratuita ou banal: esse objeto típico das artes africanas, que muitos colonizadores não souberam reconhecer senão na chave do exótico e primitivo, instaura um campo-contracampo entre a facies (o rosto) e a persona (a máscara), incentivando o jogo de reinvenção de si próprio (do seu passado) a que Ventura depois se aplicará. Sem falar nas reminiscências cinéfilas dessa máscara, que num filme de Jacques Tourneur seria o signo de um passado ocultado que encobre com sua sombra o mundo presente, ou o olhar enigmático lançado das profundezas arqueológicas de um mundo escondido pelo tempo, olhos da morte a vigiar cada passo dos entes vivos.

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O filme inteiro se acha suspenso entre passado e presente e entre vida e morte, e a forma cênica em que isso se cristaliza aparece naquela longa sequência do elevador, caixa metálica parada no vazio como um tempo em suspensão, uma vida colocada em espera. Lá ocorre o diálogo de Ventura com a estátua viva de um soldado do 11 de março de 1975 (data-chave à qual o filme retorna com insistência), herói reconhecido pela História. O imigrante cabo-verdiano, com suas histórias de muito trabalho, muita dor, pouca remuneração e quase nenhum descanso (histórias pessoais que se cruzam com a história política coletiva), diferentemente do soldado, não teve tal reconhecimento, não rendeu monumentos em espaços públicos. Mas ele tem sua grandeza restituída em ritual solene pela câmera de Pedro Costa, que lhe confere uma aura de herói mitológico. Os tableaux vivants monumentalizados de Cavalo Dinheiro são os retratos majestosos dos heróis que a História não homenageou, ou que recalcou em benefício da lenda (tema fordiano dos sujeitos anônimos da História, os heróis-fantasmas não contemplados pelos afrescos comemorativos – é o tema de Sangue de Heróis e O Homem que Matou o Facínora).

E se a morte assombra esse filme, cerca-o por todos os lados, é porque é de morte que os retratos efetivamente tratam. O que o retrato – gênero que muitos associam a uma busca da interioridade, a uma “verdade da alma” supostamente legível nos traços retidos pelo pintor (daí a mística gerada em torno dessas imagens) – almeja encontrar na aparência, na fisionomia, na exterioridade empírica, é nada menos que os atributos permanentes do indivíduo, sua ossatura secreta, sua essência singular. O retrato aspira à individualidade, mas sem abdicar de um tipo idealizado: há uma equalização entre a aparência fenomênica do sujeito retratado e uma ideia formal preexistente. Mas quem melhor que a morte – que congela o movimento, interrompe o fluxo indefinido da vida – sabe atender a esse preceito de idealização? As ficções de retrato da literatura do século XIX (basta pensar em O Retrato Oval de Edgar Allan Poe, em A Obra-prima Desconhecida de Balzac, em O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde), assim como as do cinema hollywoodiano dos anos 1940-1950 (Laura; Vertigo; Idílio Perigoso; Inspiração Trágica; Um Retrato de Mulher; O Retrato de Jennie etc.), insistiram sobre a relação dos retratos com a morte. Esse gênero pictórico está ligado, na arte ocidental, à morte passada ou futura do sujeito representado. Enquanto substituição do modelo por sua imagem, o retrato significa a ausência do primeiro, seu desaparecimento – no limite, sua morte.

Em Cavalo Dinheiro, além da observação detalhista, da profunda concentração que o retrato requer, há também esse outro movimento, que é o de reconstruir o modelo com base numa ideia – no caso, a “ideia de cinema” de Pedro Costa, com tudo o que isso implica em termos de método de trabalho, credo estilístico, tempo de dedicação etc. Mas arrisco dizer que o filme é justamente uma inversão da síndrome do retrato oval: em vez de exaurir o modelo, de transferir suas forças para a obra de arte, de espremer seu sumo vital até esgotá-lo, ele faz o caminho oposto, partindo de um Ventura debilitado, adoentado em leito hospitalar, para pouco a pouco devolver-lhe o tônus. Não se trata de transformar um ser vivo em efígie mortuária, e sim da operação inversa. Cavalo Dinheiro deixa claro que Pedro Costa está desenvolvendo com Ventura aquela relação que alguns pintores desenvolveram com seus amigos próximos ou com seus modelos mais recorrentes: um misto de intimidade e distância, de aproximação e recuo, de familiarização e estranhamento – todo esse nexo de valores contraditórios e complementares que o retrato reúne, e a partir dos quais ganha forma. Tanto Ventura quanto o cinema de Pedro Costa saem bastante fortalecidos desse processo.

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