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Diante da dor das outras

A delicadeza pode ser, mas nem sempre é um atributo do cinema realizado por mulheres, feito com mulheres. Baronesa (2017), de Juliana Antunes, não é um filme delicado (ainda que seja realizado com cuidadosa atenção à realidade retratada). Dores íntimas, violências e confrontos mobilizam este filme “entrincheirado” (como diz a realizadora), na zona de uma guerra cotidiana que atravessa as casas, as vidas e os corpos das mulheres periféricas que nele assumem protagonismo. Como sonhar, ou como continuar a sonhar, ali, onde o mundo parece repelir, justamente, a delicadeza e a quietude da vida? – talvez seja esta uma das questões centrais de um filme constituído por arestas e fissuras que não tornam simples o trabalho do espectador.

Fabian Cantieri, em um texto escrito aqui, na Cinética, tem toda razão: Baronesa é um filme sem profundidade de campo, mas também sem recuo. Se a realizadora escolhe a frontalidade para abordar o árduo universo vivido, sofrido e reinventado por suas protagonistas, é justamente porque ela não pretende abster-se do enfrentamento. Ora, ninguém se abriga em uma trincheira para recuar. O posicionamento é que é estratégico. Se é aí que a câmera se instala, sua perspectiva não poderia estar, portanto, do outro lado do fronte. Ao começar nos apresentando o movimento do quadril de uma mulher negra, o filme não busca acionar uma pulsão escópica que nos paralisa e anestesia como fazem as imagens do espetáculo diante das periferias urbanas. Sua operação é de outra ordem bélica.

Lembremos aqui de outro filme também interessado em retratar mulheres negras e periféricas no Brasil: A Falta que Me Faz (Marília Rocha, 2009) começa não pelo quadril, mas pelos bustos de suas protagonistas. Logo na primeira sequência, a montagem articula fotografias dos bustos das personagens à voz de Alessandra, uma delas, que canta à capela, com um timbre suave e gracioso: “eu amei um alguém que me amou pra valer/ um amor diferente que a gente não vê/ como a cena de um filme foi quase real/ um amor desse jeito eu nunca vi igual […]”. O amor romântico, de início, é o que mobiliza a aparição dos corpos femininos aos quais o filme irá se dedicar. Em uma das cenas, bem mais adiante, escutamos, do fora de campo, a realizadora questionar Alessandra se ela não gostaria de se casar. Alessandra prontamente responde que não, que ela gosta mais é de farra. A realizadora insiste: “mas você quer ficar morando com a sua mãe o resto da vida?”. Ela diz: “pro resto da vida não, mas agora, agora, não…”. Do fora de campo, ainda ouvimos: “casamento é bom, menina” e Alessandra, pouco depois, completa: “casamento prende a gente também, não dá certo não (…). Tem muita gente casando que tá é sofrendo”. “Sofrendo como?”. Ela logo responde: “homem que tá separando da mulher, vive com cachaça dentro de casa… Aqui em casa mesmo papai só vivia xingando mamãe, correndo atrás de mamãe de noite, quando ele tava bicudo […] Falava que ia matar ela… Casamento não é bom, pode levar o casamento pra lá, a gente quer ficar é solteira”.

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É patente, nessa cena, o modo com que o relato sobre a violência doméstica vem desmontar certo anseio romântico que, de início, parece se endereçar à personagem. No entanto, trata-se de um deslocamento que aparece no filme de forma muito sutil, quase como se rompesse, inesperadamente, a projeção traçada de antemão pela própria realizadora. A Falta que Me Faz escuta e acolhe os relatos de suas protagonistas, mas se interessa muito mais pela delicadeza de suas vidas (inventando, com isso, um belíssimo retrato dessas mulheres que, apesar de tudo, continuam também a sonhar no interior de Minas Gerais). Baronesa, ao contrário, propõe-se adentrar justamente nesse território instável, machista e patriarcal, onde a violência é fundante das relações sociais e das experiências de suas personagens. É sintomático, nesse sentido, que o filme de Antunes não comece pelos bustos (ou pelo coração) e re-oriente a aparição do quadril. Em Baronesa, nosso olhar sobre os corpos das mulheres negras em cena descobre, a cada vez, novas coordenadas (inclusive sobre o que neles se investe enquanto expectativa e performance de gênero).

O que se produz, por outro lado, na aproximação recorrente entre Baronesa e A Vizinhança do Tigre (Affonso Uchôa, 2014)? – essa filiação que o próprio filme enseja, ao homenagear nas cartelas finais o realizador (um dos montadores do filme e seu “guru espiritual”, ao lado da feminista punk Patti Smith), assim como ao fazer uma clara alusão, com algumas sequências inevitavelmente afins ao filme realizado na periferia de Contagem. De toda forma, é no mínimo intrigante pensar o quê um filme que se dedica a um universo tão massivamente masculino como A Vizinhança do Tigre, que apaga quase inteiramente a presença das mulheres, produz de interessante para pensar e inspirar um cinema feminino e pretensamente feminista.

“Xô falar procê tudo, tudo vai, tudo é fase, mano… Logo mais nós vai arrebentar no mundão (…) Tira o zóio, tira o zóio, vê se me erra, eu durmo pronto pra guerra. (…) vida loka cabulosa, o cheiro é de pólvora e eu prefiro rosas” – pouco antes dos créditos de Baronesa, ainda com a tela escura que se prolonga em silêncio por alguns segundos, ouvimos Mano Brown cantar essa canção. Ele nos confidencia um desejo, quem sabe partilhado com as protagonistas que pouco antes víamos sobre os tijolos e o telhado de suas casas a mirar o fora de campo: “sempre quis um lugar gramado e limpo, assim, verde como o mar, cercas brancas, uma seringueira com balança, desbicando pipa, cercado de criança (…)”. É curioso que essa canção, escolhida para encerrar o filme, seja interpretada por um homem (ainda que seja ele Mano Brown, um rapper que, recentemente, tem tomado parte, de certa forma, nas lutas feministas recusando-se a cantar antigas músicas sexistas de sua autoria). Nesse sentido, seria mesmo uma voz masculina capaz de reverberar o desejo e a experiência de duas mulheres? Não se trata de reivindicar com isso que, falando da experiência social feminina o filme fosse imediatamente obrigado a recorrer a uma voz feminina que produzisse maior consonância com os corpos e as experiências retratadas. A singularidade dessa escolha, ao contrário, é que nos desafia. Afinal, o gesto de aproximação entre os universos periféricos masculinos e femininos não se manifesta pontualmente nos créditos, mas mobiliza fundamentalmente Baronesa. A forte influência do filme de Uchôa não parece concernir, assim, apenas uma questão de método, mas de invenção e reflexão sobre as formas de resistência e de representação dos sujeitos periféricos (ainda que no masculino) e de suas experiências individuais e coletivas.

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Como em A Vizinhança do Tigre, a violência é, de certo modo, apropriada afirmativamente pelas personagens, de forma lúdica inclusive (especialmente na primeira parte do filme). No entanto, em Baronesa, é como se, com isso, as personagens pudessem não apenas reelaborar e reinventar suas próprias experiências, mas também libertar-se do que lhes é comumente oferecido enquanto “feminino”. Isso não significa que as personagens recusem, completamente, a performance de certa “feminilidade”, pensando a concepção usual do termo. De modo geral, o filme não opera com algum tipo de binarismo simples, mas trata de atuar, junto às protagonistas, na labilidade entre as posições masculina e feminina, complicando um pouco mais nossas identificações e projeções de gênero, comumente brancas e burguesas – ainda que, no filme, por outro lado, o “masculino” não pareça ser colocado propriamente em questão, o personagem de Negão, por exemplo, continua a performar sua masculinidade, sem grandes tensionamentos. Nesse sentido, o universo massivamente masculino de A Vizinhança do Tigre, tomado aqui como referência (ou, quem sabe, a partir de certa reverência acrítica), precisasse ele também ser colocado, ao menos um pouco, em dúvida. Inevitavelmente, ao se interessar pelas experiências de mulheres periféricas (cujas representações encontram-se fortemente em disputa), o trabalho do cinema torna-se muito mais complexo.

De início, o filme “entrincheirado” de Juliana Antunes apresenta-nos suas personagens a partir de um espaço de confinamento. Diferente do filme de Affonso Uchôa, em que vemos os jovens passear pela cidade, em Baronesa a câmera sobre o tripé repousa ao lado ou muito próxima da casa de Leidiane e Andreia e no interior dos cômodos. A câmera não passeia pelas ruas e não acompanha o deslocamento das personagens. Por vezes, vemos o trânsito de pessoas através de uma pequena porta, mas a câmera permanece no entorno da casa apresentando-se, assim, a partir de uma necessidade dupla de segurança: das mulheres filmadas que, aparentemente, se valem do espaço público muito menos que os homens, e das mulheres que filmam e tampouco se sentem seguras para ir adiante.

Em um dos momentos mais difíceis do filme (bastante questionado em relação à decisão da realizadora de mantê-lo na montagem), Leidiane reprime o filho por ter, aparentemente, abusado sexualmente de seu irmão mais novo. Na cena seguinte, Andreia contundentemente adverte o menino, dizendo: “você tá querendo virar viado, né? Em seguida, ela insiste (também na forma machista de repreender a criança): “vou contar pro seu pai, seu safado, pra ele arregaçar sua cara, pra você aprender”. Em sequência a essa cena (que parece então funcionar como um gatilho para a rememoração da personagem),Como pensar, afinal, um lugar ético para as imagens, “diante da dor dos outros” (para dizer como Susan Sontag)?

Ao abordar as imagens fotografias de guerra (em um livro homônimo a essa formulação), Sontag fazia uma provocação fundamental sobre o modo com que pensamos e nos referimos à “sociedade do espetáculo” (logo, a certa forma de exposição dos povos periféricos e de suas dores). Em 2003, ela já nos alertava: “dizer que a realidade se transforma num espetáculo é um provincianismo assombroso […].Mas é absurdo identificar o mundo a essas regiões de países abastados onde as pessoas gozam o dúbio privilégio de ser espectadores ou furtar-se a ser espectadores da dor de um outro povo”. Diante de um mundo tão violento (especialmente para as mulheres negras que vivem nas periferias brasileiras), atravessado pelo tráfico de drogas, pela solidão, pelo estupro e pela morte, do conforto de nossas poltronas, deveríamos nos isentar de ver as dores que, especialmente, as mulheres e as crianças experimentam cotidianamente ou deveríamos acolher o conselho de Sontag e deixar que “as imagens atrozes nos persigam”?

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É claro (e é importante pontuar) que Baronesa não nos oferece propriamente imagens atrozes. Diante da escuta da mãe que briga com o filho que abusou do outro, a câmera aguarda junto à soleira da porta. Da lembrança de Andrea sobre os abusos que sofria na infância e a forma com que ela acaba por esfaquear seu agressor, só podemos ouvir sua confidência. Dos tiros que atemorizam as mulheres (aquelas filmadas e também aquelas que filmam), só escutamos os ruídos. Ainda assim, são todas experiências de enfrentamento que o filme não se isenta de abordar e escolhe manter no corte final. Se, em certos momentos, Baronesa não nos apresenta as imagens, mas se abre à escuta, não seria porque o filme se interessa, justamente, por elaborar essa relação com a violência sob outras formas?

Ao dar lugar a personagens combativas que vêm se apropriar dos instrumentos de violência e opressão, Baronesa busca inventar outros possíveis, inclusive no campo da representação – seja no trabalho com as mulheres, seja no modo de abordar suas dores mais íntimas. Não é a toa que à Andreia, a ficção vem ofertar uma metralhadora com a qual ela possa dançar ou uma arma para que ela possa simular um tiro. As dores e as violências sofridas por aquelas que vivem nas bordas das cidades, que são filmadas, que fazem filmes, que cuidam de seus filhos sozinhas, que já não podem se valer da delicadeza ou não se interessam por ela, tornam-se matéria sensível do cinema de Antunes, tal como a necessidade urgente de resistir, de desejar ou, ao menos, continuar a sonhar – sem esquecer que Baronesa não é filme de romance, mas de aventura.


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