Ela Volta na Quinta, de André Novais (Brasil, 2014)

setembro 29, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

elavoltanaquinta

Com autoria, com afeto
por Raul Arthuso

No texto sobre Ventos de Agosto (2014), indiquei uma trajetória no trabalho de Gabriel Mascaro, perpassando toda sua obra. Mas se falo de uma “busca do olhar”, isso não é mero apego à noção de autoria como inquietação crítica no corpo a corpo com os filmes. De Um Lugar Ao Sol (2009) a Ventos de Agosto, a matéria mesma dos filmes, o objeto filmado, o tema, os lugares, as personagens, pertencem a universos diversos. Já Ela Volta na Quinta, de André Novais, é um filme de autor exemplar. Este primeiro longa-metragem em direção solo parece um resultado natural do caminho percorrido por Novais desde seu primeiro curta-metragem, Fantasmas (2010) – algo que, evidentemente, escapa ao espectador de primeira viagem. Porém, Ela Volta na Quinta pode ser tanto o fim quanto o início de uma jornada no universo do jovem cineasta.

Dentro da filmografia de André Novais, este primeiro longa é o projeto mais ambicioso de um universo ficcional em expansão. Começando pela observação cotidiana em Fantasmas, passando pela retrospectiva de fotos de memória de Domingo (2011) e pela relação que se encontra com o mundo em Pouco Mais de Um Mês (2013), o universo ficcional de André Novais ruma aqui a estruturas maiores que não cabem mais apenas na casa, num movimento de expansão do quarto com os amigos para o bairro, a cidade, a família e suas histórias particulares. Porém, como todo universo autoral digno do nome, é possível partir de Ela Volta na Quinta em direção a Fantasmas sem se perder nada (é possível, pelo contrário, que os curtas ganhem muito com esse outro descobrimento), do retrato da família e do cotidiano ao longo dos dias para o fechamento em um momento, um lugar. O cinema de André Novais é essa cosmologia.

Esse caráter já indica a dedicação de Ela Volta na Quinta em olhar para o outro. Seo filme ficcionaliza a família do próprio diretor, não poderia estar mais distante da egotrip e do olhar para o umbigo. Para os festivais de cinema, a publicidade de lançamento e os dados midiáticos do jornal cultural, o dado de todas as personagens serem encarnadas pela família, a namorada e o próprio cineasta levam a se assistir Ela Volta na Quinta com essa expectativa em mente, o que pode turvar a experiência da obra. O filme é constituído de personagens, relações, e uma progressão dramática que mantém com a realidade apenas a relação com o índice. Em essência, André Novais vai à ficção para filmar pessoas, corpos, gestos, modos de fala. A mão da via não está voltada para o diretor, mas para as particularidades de o que seu olhar pode captar.

Assim, se Novais tem um universo ficcional muito claro e particular, que recria sua família a partir de personagens e se entrega ao risco de colocá-la como atores de si mesmos, a força emanada daí vem também de um claro projeto formal. Primeiro, pelo uso expressivo da voz, recurso presente em toda a obra de curta-metragem do diretor. O modo de falar, a dicção, o ritmo, as particularidades do vocabulário têm papel central na composição das personagens de Ela Volta na Quinta. Por mais que as habitem mais ou menos o mesmo lugar, tenham a mesma formação e visível proximidade afetiva, existe uma crença quase revogatória no poder de registrar a fala. Das pequenas diferenças de uma pessoa expressando sua voz, emanam as grandes particularidades de sua existência.

Deriva disso o segundo procedimento: o plano longo. Novais deixa suas personagens dominarem e a duração estendida do plano marca um olhar para a integridade da fala e seu emissor, tenta encontrar um ritmo próprio para cada uma das personagens, captando sorrisos, olhares, sons e pausas. Se em alguns momentos é possível pensar numa extensão demasiada do plano, isso se dá dentro de uma aposta estética de captar o outro em seu ritmo próprio, que não é nem natural, nem o ritmo do cotidiano, como as primeiras impressões do filme causam, mas uma construção estética – é preciso diferenciar a inocência do gesto artístico. Cada um dos personagens da família tem seu momento monólogo, cada um deles é registro em seu trabalho, em seu lazer, em sua crise.

Cabe, então, uma ressalva: um projeto estético dessa natureza depende, por sua vez, de uma execução técnica desses aspectos, e diversos momentos de Ela Volta na Quinta sofrem de problema de inteligibilidade da fala, que não têm relação com o sotaque ou vocabulário próprio das personagens, mas são questão puramente técnica. A técnica não pode limitar nem tornar o cineasta refém; por sua vez, o gesto artístico não pode ser sabotado pela despreocupação com ela. O jovem cinema brasileiro redescobriu a limitação como propulsor estético, algo que a geração anterior parece ter esquecido ou fez questão de superar, como se esse caráter fosse improviso marginal ou retrato de fome. Se hoje existe um ambiente mais saudável de criação artística do que, digamos, quinze anos atrás, isso se deve ao entedimento dos cineastas mais jovens de que a limitação técnica não deve ser impedimento para a realização. A limitação, entretanto, não pode virar limite para o resultado estético. A obra de Godard dos últimos trinta anos é também um manifesto do artista como aquele que sequestra a técnica e não o contrário.

Trabalhando com repetições muito evidentes – três casais em crise por razões diferentes; três monólogos sobre eventos do passado; três relações que se estabelecem pelo modo como se posicionam na cama; três deslocamentos marcantes no filme – Ela Volta na Quinta faz também um estudo de caso: o casal nuclear da família está se dissolvendo e isso se espalha pelo filme, para o casal dos quais fazem parte seus dois filhos. Formalmente, também, há essa contaminação, e são as variações e modulações de cada elemento – a história e o plano – a diferenciação das personagens.

Ela Volta na Quinta é um filme de retratos. Sua construção é um alargamento do “instante decisivo” no decurso do tempo. O conjunto desses retratos compõe o naturalismo intimista do filme. Num festival de Brasília marcado por filmes de tom mais agressivo em sua política ou que não poupavam a força na mão de suas sensações e idéias, Ela Volta na Quinta é o filme sereno da vez. Existe uma doçura no tratamento das personagens que preserva sua integridade frente à possibilidade de exotismo de uma família de subúrbio, com pais idosos se separando, um filho cineasta com dificuldades financeiras, outro com sonho de construir sua própria família. Não é a doçura do respeito, mas a da lealdade: os atores-parentes se entregam ao filme, que retribui tentando respeitar essa entrega.

Talvez por isso seja instigante o retrato do popular em Ela Volta na Quinta. No atual momento do cinema brasileiro, ocorre uma confusão de conceitos com relação ao popular decorrente da noção neoliberal da supremacia do mercado, à qual o cinema foi entregue há alguns anos. Nessa confusão, popular passou a ser aquilo que vende ingressos – e é por isso que falamos em comédia populares ou filmes populares para rotularmos os grandes sucessos de bilheteria atual. Mas popular e comercial não são sinônimos. Se o cinema brasileiro atual tem claramente um cinema comercial, o cinema popular brasileiro parece ter acabado com Carlos Reichenbach; não se trata apenas de vender, mas de lidar com o imaginário da população que compõe a base da pirâmide social brasileira. Ela Volta na Quinta tenta resgatar essa idéia, mesmo voltando seu olhar para o caso particular da família de um cineasta. A cena em que dona Maria tenta lembrar de uma canção de Roberto Carlos para tocá-la no laptop enquanto seu marido Norberto vê um programa de humor da rede Globo na televisão – a cabo, é bom lembrar – para logo em seguida tirar a esposa para dançar é de uma delicadeza ímpar no cinema brasileiro recente, nesse retrato da família de subúrbio negra, num contexto em que essa mistura de fatores recebe um tratamento que geralmente vai da histeria à condescendência.

A presença da família e do próprio André resguarda o tom ameno do filme, muito pelo trabalho de atuação. Falar em atuação não é impreciso, mas em Ela Volta na Quinta o termo não é suficiente. Para além de “encarnar uma personagem”, existe uma presença física que parece insuperável como índice de realidade. Por sua vez, é a relação afetiva – entre as personagens, e da câmera com elas – o fio condutor do filme. O afeto tornou-se uma pedra de toque do cinema brasileiro até se tornar um conceito vazio, usado criticamente para valorar filmes cujo olhar está voltado inteiramente para a subjetividade e o grupo ao redor, formado por ligações de amizade, familiares ou convivência. Se o critério de valoração é esse, como lidar com Ela Volta na Quinta? O filme de André Novais é o mais afetivo dos seis longas-metragens exibidos em Brasília – chego a arriscar ser ele o mais afetivo dos filmes exibidos no Brasil esse ano. O afeto, no caso, diz respeito a “ser afetado pelo sentimento de júbilo e melancolia ao redor do autor”. Ela Volta na Quinta, então, cumpre esse papel: as personagens afetam e são afetadas pelas outras, as cenas dedicadas a determinada personagem só existem em ligação direta com as de outra personagem, e a câmera trabalha afetada pela presença física daquelas pessoas. Afetar e ser afetado é a mise en scène de Ela Volta na Quinta.

Ter um projeto assim tão claro e preciso faz do filme um evento a não ser ignorado, marcando o nascimento de um possível autor com um universo ficcional vigoroso. André Novais é uma versão cordial – do coração – de João César Monteiro: um retratista doce, bem humorado e que encontra no trabalho presencial do tempo e do plano longo a ferramenta para atingir uma revelação sobre o objeto filmado. Trata-se de um universo em expansão, inspirado pelos rostos, gestos e a fala das pessoas. Vejamos até onde ele pode ir.

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