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O convívio com uma heroína de pele preta

Juliana (Grace Passô) bateria à porta com insistência. Chamaria por mais um dos moradores das tantas casas que visita para verificar prováveis focos dos mosquitos transmissores da dengue. Nessa casa, nessa sequência, ela não precisou, como de costume, chamar ninguém; a porta já estava aberta. Juliana sentiu-se à vontade, sentou num sofá aconchegante, enquanto, em off, vem uma voz suave, que pergunta se ela quer café. Polida, Juliana nega, diz que não precisa. “Precisa sim”, rebate, carinhosamente, a anfitriã. Comenta que há muito tempo não recebe visita da vigilância sanitária, e que chegou mesmo a sentir falta deles. Enquanto ouve, Juliana repara nas fotos que estão na parede: uma menina, novinha, agora casada, e depois com filhos. Fotos coloridas, emolduradas com um primor interioriano, mas já desbotadas; os filhos espichando, alegres. Zezé (Maria José Novais Oliveira) entra em cena, embalada por um sorriso maroto, uma leveza cativante como a sala que abriga essas duas mulheres negras. “Sabe como é”, ela diz, junto ao café, cujo olfato chega-se a imaginar, “saco vazio não para em pé”.

Realmente, dona Zezé, ninguém merece trampar sem ao menos uma pausa, e um cafezinho. Embora discreta, essa é uma sequência crucial e reveladora do segundo longa-metragem de André Novais Oliveira. Mais do que o encontro da protagonista com Zezé, encarnada pela mãe do diretor, entrelaça-se ali um diálogo geracional e ético de duas formas distintas de feminilidade negra. Com Zezé, o que se nota é o estilo de um matriarcado bastante presente nas cidades brasileiras: o abrigo, o zelo, a centralidade da família, o constante transitar entre a cozinha e a sala, entre os preparos da dona de casa e uma forma de conversar, de estar presente marcada pela discrição, que tampouco se eximiria e opta por intervir pelas brechas, pelos cantos, de forma circular. Nos outros curtas e longas de Novais, Zezé também revela-se uma desenvolta e envolvente conselheira. Escuta o problema dos outros. Está disposta a ajudar. Acolhe, cuida, e, um tanto camaleônica, camufla algumas opiniões; realiza as suas estratégias, como ocorre em Quintal, sem abdicar de uma contagiante simpatia. Há, entre um café e uma conversa, muito mais ética e legados (femininos, negros, culturais) do que se supõe.

Temporada, como se sabe, não é um filme sobre Zezé, mas inteiramente dedicado ao périplo existencial de Juliana. Se Zezé exala uma tradição rapidamente reconhecível, tudo no arco emocional de Juliana clama, num contraste, por uma necessidade de reinventar-se. Juliana pulsa à procura de um devir, seu, coletivo, íntimo. À primeira vista, é um certo desamparo que a rodeia. Seu marido não atende seus telefonemas. Ela muda-se de Itaúna para Contagem. Não possui casa. Precisa de novos amigos e não sabe muito bem para onde ir nem o que fazer após seu expediente. Sua única âncora é o seu trabalho novo, como funcionária pública, mas sobre o qual todos reclamam, dizem que é efêmero e que não daria para ficar ali até a aposentadoria. Juliana ouve, percebe. Experimenta umas paqueras, um papo insinuante, uns calorosos amassos à porta do cantinho que passa a habitar. Está aos cacos, mas não dramatiza, não exacerba o pathos e o teor transitivo desses dias da sua vida; passa, pouco a pouco, a caminhar junto com os novos amigos, colegas, vizinhos, habitantes do mesmo bairro, da mesma cidade.

O que soava como desalento e abandono transforma-se numa discreta força motriz que, paulatinamente, aponta para um protagonismo. Não se trata de um protagonismo qualquer, mas da emergência da força de uma mulher negra, autônoma, independente; uma mulher da periferia a tomar o centro e as rédeas da sua narrativa (em primeira, segunda e terceira pessoa) e se inserir na sua história, na sua geografia. Curiosamente, Juliana traça uma das inaugurais (e mais notáveis) jornadas de uma heroína negra dentro do contexto do cinema brasileiro, em geral, o que inclui as produções mais atuais – e é disso, de forma elegante, sutil, e minimalista, que André Novais nos quer contar. Conceitualmente, a jornada da heroína não é uma sombra ou um contraponto à clássica, épica, grandiloquente e hiper-masculina jornada do herói. Num ensaio inaugural, Maureen Murdock aponta para diversos momentos dramáticos distintos que singularizam a jornada da heroína, tais como a separação do feminino, a (tensa) identificação com figuras masculinas, as ilusões do sucesso, a força das negativas, uma reconexão com pulsões femininas, a cura da mãe, além da superação de diversas dualidades.

Em Temporada, Juliana está vivendo a ponta de dois lutos, o que a aproxima a alguns aspectos da jornada da heroína. Numa conversa com a prima, entre uma cerveja, um silêncio noturno, e um pacote de salgadinhos, ela revela a dor da perda da sua mãe, que morreu recentemente; segreda com a parente as recentes cicatrizes de um aborto espontâneo, que levou o seu casamento ao ocaso. É um paradigma materno que se esvoaça. De um lado, a morte da mãe. De outro, uma possível maternidade em risco, adiada, em perigo.

Não por acaso, os outros três arquétipos masculinos que a cercam dizem muito das suas escolhas. O primeiro é a completa ausência do ex-marido. Ao visitar o pai, por outro lado, ele não tira os olhos de uma fogueira, a crepitar, mal cumprimenta a filha, e soa um tanto perdido, desamparado, recluso. Russão (Russo APR) será o seu colega que exalará a leveza que ela buscava e que sua jornada reivindicava. Um jeito risonho, cômico, mas também prazeroso, cheio de comentários fortuitos, de observações argutas e uma maneira meio malandra de ver o mundo, a qual tampouco agride alguém. Russão, aos poucos, passa a representar a força do cotidiano e é com ele, atento às minúcias do dia-a-dia, do andar de casa-em-casa, que se destila o desamparo. Agarra-se num andar na rua, que ela não realiza apenas uma superação, mas permite-se, inclusive, mudar o corte de cabelo – e passa, agora, de um estilo alisado para outro, que exibe, orgulhoso, os traços negros do novo corte. Diante desses espelhamentos de gênero masculino, a jornada de Juliana se autonomiza e aos poucos ela se reconecta com uma certa feição de ser feminina no seu contexto social mais imediato, aproximando-se, portanto, de alguns dos preceitos dramáticos traçados por Murdock.

Assim como ocorre no curta-metragem Nada (2017), de Gabriel Martins, que é outro integrante da produtora Filmes de Plástico, Juliana quer somente respirar o seu momento existencial. Independente da sua origem racial, de gênero e do seu local social – num personagem diante da peleja por sua individualidade, da sua singularidade. É necessário, nesse momento, realizar um breve contraponto com outros dois longas-metragens que estrearam neste Festival de Brasília. Tanto em Ilha (2018), de Ary Rosa e Glenda Nicácio, como em Bixa Travesti (2018), de Kiko Goifman e Claudia Priscila, temos o retrato ficcional e documental por uma plêiade de vozes que vivem o afã, o júbilo e os ardores de um protagonismo negro nos dias de hoje. Em Ilha, por um lado, encontra-se um manifesto de um cinema negro homoafetivo, que evidencia novos prismas do mundo – sensível, mas também audiovisual – a partir de lentes negras. São extremamente potentes as fendas ali vislumbradas. Em Bixa Travesti vibram com primor as ideias e práticas de uma performance, e mesmo um hackeamento de gêneros, de corpos negros e vindos da periferia nas atuações de Linn da Quebrada, que também é roteirista do documentário, num gesto de auto-representação, e Jupe do Bairro. É curioso notar como a jornada da heroína seria saudavelmente contestada pelos arremates dramáticos, mas também gênero e subjetividades sexuais que perpassam esses filmes. O que une essa tríade, por outro lado, é um aceno para um paradigma do cinema negro brasileiro contemporâneo – algo bem distinto da retórica pretensamente inclusiva e por demais representacional dos negros na tela (dirigidos e “acolhidos” por brancos) que tanto marcou o cinema da Retomada. É um aceno rumo a um protagonismo sensível, dramático, cultural – um aceno de um protagonismo interior à cena, singular na sua encenação e que ainda dispara feixes imprevisíveis para aqueles que estão por trás das câmeras, entre a tela e plateia. Um aceno, enfim, genuinamente epistêmico.

Sutil e distintamente do que ocorre em Ilha e Bixa Travesti, ambos impulsionados por um importante fervor de manifesto, o que singulariza Temporada é uma promissora aposta no cinema do convívio. É uma maneira de estar junto, de reinventar e explorar as proezas do cotidiano que aproxima, por exemplo, Juliana de Russão. O tom da conversa. A observação sobre os meninos do bairro, os colegas de trabalho, todo o ambiente social, nos filmes de Novais, é atravessado por um convívio, por uma forma de compartilhar o espírito comunitário. O próprio posicionamento da câmera já traduz essa ética do convívio: nem muito próxima, nem muito distante dos seus personagens, como se precisasse captar o que ocorre entre eles. A ética do convívio desdobra-se tanto num genuíno cinema de prosa – no sentido de apontar para conversas triviais, casos singulares, mas menores – como num convívio com a ética, pelo qual cada conversa possui inúmeras possibilidades, consequências. Nada está dado, já que tudo ainda precisa ultrapassar e inventar algo além daquele aparente desamparo. Ao final fica a impressão de que temos uma cinematografia que flui serena junto ao riso sacaninha dos amigos que ajudaram o carro a pegar no tranco – é para um genuíno prazer de um cinema comunitário que a obra de Novais tão bem aponta e sintetiza. Um cinema que flui, saboroso, e acolhe como o café de Dona Zezé.


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