cafecomcanela

Mas tinha que respirar

A presença do longa Café com Canela aqui no Festival de Brasília, especificamente disposto na mostra competitiva depois de Vazante e Pendular, provoca uma leitura de mudança de chave no cinema brasileiro. Independente dos seus méritos, os primeiros dois são filmes de fim de linha, de esgotamento de processos que chegaram ao limite. Não por acaso, o trajeto dos dois é marcado por grandes festivais europeus e coproduções internacionais. Eles carregam em si marcas de um processo de longo prazo, que tem em Terra Estrangeira (1996) o modelo literal, projetando um caminho de desenvolvimento do cinema brasileiro autoral que passa por um certo cosmopolitismo internacionalizante e uma espécie de “tradição de qualidade” que essa ideia implica, a partir da qual foi possível produzir grandes filmes e trabalhos irrelevantes, e cumpriu uma demanda de expurgar certa tradição do cinema brasileiro que, entre os anos 1970 e 1980, incomodava o status quo. O contraste com o longa baiano de estreia de Ary Rosa Duarte e Glenda Nicacio é o de um sinal muito eloquente de uma mudança radical de direção naquilo que o cinema brasileiro de invenção pode ser, projetando um futuro e um passado potencialmente novos.

Café com Canela pode ser descrito como uma crônica negra (neste sentido, o único par possível nas ultimas décadas seria Ela Volta na Quinta, de 2014), que descreve o cotidiano de um grupo de personagens entre as cidades de Cachoeira e São Felix , no Recôncavo Baiano. Em especial, o filme se dedica a Violeta (Aline Brune) e Margarida (Valdinéia Soriano). Entretanto, o que faz do filme uma obra de inesperado vigor é sua maneira desvairadamente coerente de se desdobrar diferentemente em cada sequência. Um dos mecanismo mais ativos de repressão simbólica é justamente o “direito à ficção” de toda narrativa que joga com visões do que perversamente se convencionou chamar de “minorias”. O longa baiano em questão se funda justamente em um apetite voraz pela imaginação, fabulação e mediações, que torna impossível prever seu movimento seguinte.

A narrativa começa com uma estranha e longa sequência de material de arquivo esmaecido de uma festa de família, um aniversário de criança filmado, com imperfeições de imagem. O que por um lado produz um campo de empatia, por outro é apresentado de maneira opaca e aparentemente desordenada, sem dar nenhuma pista de onde estamos pisando. Daí, segue-se uma longuíssima cena de um churrasco noturno na laje, de talvez uns dez minutos, às vezes entremeada pelo arquivo, mas sem produzir correspondências visíveis. Em seguida, um dos trechos mais pregnantes de todo o filme: o personagem de Babu Santana (numa das composições de personagens homossexuais mais pungentes do cinema brasileiro) dá um longo depoimento sobre seu parceiro, numa micronarrativa tipicamente coutiniana, na qual o fatal e prosaico se avizinham de um jeito quase indiscernível. Não sabemos se o depoimento é para nós ou pra outros personagens dentro da diegese, e isso abre um espaço de ambiguidade de registro que é espaço de intervenção. É justamente neste lugar de indefinição de modos que o filme realiza seus elos.

A dupla de diretores parece ter criado aqui um sistema muito eficiente de atualizar uma reserva de vivido que grande parte do cinema brasileiro parecia ter deixado lado. Ao seu desvairamento ontológico, a narração combina um vigoroso inventário da língua das ruas: gírias, chistes, zoeiras e ditos abundam, produzindo uma eficiência cômica numa chave rara. A personagem Cidão, em especial, ilumina a tela em todas as suas aparições, como uma máquina produtora de humor e graça, sendo agente desta intensidade da fala como produção de invenção. Se, por um lado, poderíamos associar Café com Canela a uma empreitada como Cine Holliúdy, pelo apetite por um humor que se forma na língua cotidiana, aqui isso se combina com a postura de mudanças constantes de tons e registro, produzindo na sua própria instância narrativa varias séries de desditos, incoerências semânticas, dramáticas ou mesmo espaciais, como quando Adolfo (Antônio Fabio) faz menção de abrir a porta de casa e, com um estranho falso raccord, ele já aparece deitado no plano seguinte.

O trabalho do filme parece ser esse, de ajustar sua maneira de variar e, com isso, materializar seu enredo de encontros e correspondências. Ao contrario de grande parte do cinema que circula em festivais nas duas últimas décadas no Brasil, o investimento aqui é em personagens que contracenam, interagem, se afetam, falam demais, se encostam, trocam, afinal… uma espécie de estética da troca (e da troça). São várias as sequências nas quais personagens em espaços diferentes fazem ações correspondentes, constituindo refrões. Um desses exemplos é uma sequência de montagem de vários cabelos crespos ensaboados no banho – que provavelmente não possui semelhante na historia do nosso cinema. Combinadas com trechos de notável controle narrativo, como, quando do ruído do vizinho, Violeta descobre a morte de Adolfo, estão algumas séries de planos que obedecem outro tipo de princípio, mais arbitrário, como a antológica série de coxinhas. Talvez essa seja a encruzilhada que funda o modo de fazer do filme: uma habilidade de condução narrativa das crônica das relações afetivas, cortada por séries variadas, como que janelas de fluxo, vinhetas opacas que diluem a segurança do acordo narrativo e expõem o próprio filme como forma, como material arbitrário.

Na sequência das coxinhas, é curioso como Café com Canela descontrói esse que se tornou um ícone da discussão politica brasileira, mas ignorando esse nível de leitura macropolítica. Na verdade, não só pelo título, a voz do filme parece se metaforizar em uma de suas mais consistentes linhas: a alimentação. Raramente passa uma cena sem signos relacionados a ela; de certa maneira, o alimento é justamente o agente de elo, partilha e circulação, e principalmente devoração – não estamos longe aqui de uma fome antropofágica, remetendo a linhagem fundante da epistemologia brasileira.

Assim, o cinema brasileiro parece fazer reencontrar uma ética de invenção precisamente quando volta-se para uma inspiração do personagem popular, que fala como as ruas, combinando compromisso de expressão de uma subjetividade compartilhada pela maioria de nós com uma extrema inventividade narrativa, capaz de montar um plano de morte de uma senhora com uma subjetiva do cão Felipe. Essa atualização da língua falada no cinema, esse gosto pelo digressivo, pelo prazer de falar, produz um tom muito especial que talvez poderíamos caracterizar como farsesco ou não-naturalista.

Entretanto, há um dado, que suponho de alguma maneira regional, que consiste numa certa performática inerente da fala cotidiana baiana (que podemos encontrar em outros estados, cada qual com suas inflexões). O registro de desnaturalidade do falar já constitui em si um modo de jogo, de produção deliberada, que o filme devora, torna seu e amplifica. A isso se relaciona um gosto pela arbitrariedade da própria encenação. Margarida é vista muitas vezes num plano aberto numa plateia de cinema, pelo ponto de vista da tela – além de, numa cena posterior, recitar uma espécie de tratado do que pode ser o cinema. O filme realiza investidas decisivas em fazer da consciência do ato de encenar seu próprio enredo, que, combinado a um dado antropológico, torna a ideia de real algo mais que caduco. Essa ”fala baiana” que menciono expressa a exigência inerente da produção de ficção no cotidiano, e justamente para aqueles personagens que foram relegados à maldição do testemunho, documentário, repetição e representação. É possível pensar em Glauber Rocha, Edgard Navarro ou o próprio Bando de Teatro Olodum no sentido da constituição desse sedutor antinaturalismo baiano, esse tom que se localiza no limite exato entre espontaneidade e autofabulação.

Tamanho gosto por uma ontologia da indefinição, não dualista, sem dúvida está ligada à posição colonizada de quem precisa sobreviver em e circular por mundos cujas regras são inventadas por outros. O que parece o grande salto politico é perceber que tal modelo não produz necessariamente precariedade, mas sim uma espécie de amplitude nos modos de ser, uma afinidade com a voracidade irrestrita das maneiras que, pelo contrário, produzem abundância de modos de ver, contar e sentir. Essa rasteira conceitual talvez se conecte com grande parte da invenção subjetiva brasileira hoje, especialmente na música popular, como o funk transfigurado pela Baixada Santista e Belo Horizonte, ou mesmo o chamado pagodão baiano. São manifestações, essas, que funcionam por uma certa fome de tudo, que nem entrevêem uma melancolia impotente foratemer – um afeto de classe, um álibi para quem perde a si mesmo como núcleo de uma narrativa que pressupunha um centro e uma periferia… coisa de quem sempre teve a quem recorrer. Essa arte que aqui se desenha parece gaiatamente ignorar tudo isso, e, por uma alegria impura, uma euforia amante, um apetite por animismos inveterados (o filme nos faz ser água, salgadinho; as paredes andam, sangram), atesta que as linhas de fugas possíveis se darão somente a partir de um desvario, da imaginação como ferramenta política, da invenção de si e de tudo como tática de não-captura. É uma ideia de mundo, mas a reação no caso não é chorar, porque esse mundo nunca foi seu. É um modelo que se situa na margem oposta do que o ensaísta Miguel Jost chama de “elite represa” como instrumento normativo, afetivo e econômico – agente de uma superfície afetiva do ressentimento, da frustração e interdição. O que espanta em Café com Canela é justamente esta extrema permissão para ser, para mudar seus formatos, essa ortodoxa falta de medo como forma de fazer.

Com isso, toda uma história da arte brasileira parece solicitada. No campo do cinema, a tradição gauche popular, que o “profissionalismo” dos anos 1990 quis apagar: Navarro, Prates Corrêa e Reichenbach ganham estranha presença aqui, filtrados pela multinegritude contemporânea. Forma-se um elo desses últimos com Leona Vingativa, por exemplo, na composição deste modo de conceber-se. É juntar Carolina Maria de Jesus e Fantasmão, Tincoãs, de Matheus Aleluia (que faz a trilha sonora), com MC Carol. Uma ideia de território se funda na invenção de si, no prazer e na dor de fazer-se, no ondear dessa zoada. A reviravolta brasileira que se avizinha começa a dar as caras aqui nas telas em Brasília, com sua encantadora – e negra, e indígena e bicha – ontologia infiel, fazendo a egípcia para as deprês da casa grande. E quem tiver de sapato não sobra.


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