A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa (Brasil, 2014)

setembro 1, 2016 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

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Aprendendo a jogar
por Luiz Soares Júnior

“A maturidade do homem consiste em saber reencontrar a seriedade que dedicava ao jogo quando criança”

Nietzsche, A gaia ciência

“Até que ponto um Espírito pode ao mesmo tempo se fazer corpo? seus assaltos, suas tentativas possuem realidade?”

Jules Michelet, O heroísmo do espírito

A Vizinhança do Tigre aposta nas coxias, nos intervalos e ensaios de um espetáculo cuja estreia não veremos, mas cujo cenário é a Cidade; e no entanto, as urdiduras do gesto, os impasses hermenêuticos, a letra “encarnada” da encenação de um texto ancestral – o destino dos garotos de subúrbios, condenados por Fatums sociais, políticos – em um corpo e um beat contemporâneos (o plano-sequência moderne, trop moderne; o funk) já estão lá. Aqui, o meio, em que Marx via a necessidade de uma “verdade da própria busca”, certifica o contrato de uma démarche materialista, pois centrada nos próprios meios: um documentário carrega para a ficção a gravidade e a graça do ser, mas jamais seria completamente legítimo em seu atestado ontológico se não fosse diferido pela ficção; assim a sua magmática força é “dirigida” pela significação, vinculada a Princípios e fins.

Qual o valor de um gesto no cinema – e A Vizinhança do Tigre, como outros grandes filmes, inventa sempre novos gestos: o peso de uma duração, a inflexão de uma sílaba – se não servirem a um percurso romanesco, iniciático como aqui ou demonstrativo como em tantos? Mas o romanesco, antes de ser uma questão de narrativa (estrutura, atos), é uma moral dos corpos, já que agora é a performance que atualiza a mise en scène clássica em um “palco encarnado”: o filme fala de papéis não necessariamente opostos, mas que se erigem em confrontos, que se encarniçam na arena do plano; sim, o plano é uma arena ou um meio de cultura laboratorial, onde se ensaiam corpos, se adestram posições e ângulos de ataque, se sedimentam as condições de conservação – o trabalho, a prece, a espera – como “de desenvolvimento da vontade de potência” (Nietzsche) destes homens que, ao fim da avant-première, fatalmente terão de dizer a sua réplica: todas estas brincadeiras carnívoras onde os jovens experimentam reciprocamente a força e a mira, “se medem” um ao outro, antecipando as estratégias mais apuradas de sobrevivência que a Cidade solicita. Também se sincopam os mantras que acompanham todo cerimonial iniciático, toda Primeira vez: o funk é um ritmo primevo, através do qual a adolescência retoma seus direitos de Dictum originário; como o jazz, é um ritmo sincopado por excelência, e é através desta alternância de “síncope” entre o silêncio e o gesto, o trabalho e a brincadeira, a Cidade e Contagem que os personagens aprendem a jogar. E jogar o que é? Antes de tudo, uma gestão libidinal das forças: o momento de sua suspensão, o instante de sua precipitação, quando recuar ou avançar; em algum momento perto do final do filme, assistimos a uma decisiva maturação desta gestão econômica da força, quando esta se encarna em funções definidas e anexa à estratégia uma tática: um amigo persegue ao outro com um revólver na mão; perdem-se atrás de uma porta de zinco, e voltam a encontrar-se ao longo de um plano-sequência acidentado, onde as potências fabulísticas do thriller assombram a empreinte de verité baziniana. Podemos pensar que os ensaios preparatórios – a luta de facas, a cabeça deliberadamente “tatuada” para demarcá-la como objeto simbólico do Bildungsroman adolescente – deságuam aqui, nesta sequência que revisita uma certa história do duelo no cinema, mas sempre de forma transversal, “desviada”: se nos avatares anteriores a figura do campo versus contracampo era a regra, aqui é o plano-sequência que dita o percurso; a rigor, permanecemos no registro de caso e na enquête sociológica, “com os meninos”; no entanto, tendo chegado nesta sequência, sabemos que o filme não poderá mais recuar, pois abandonou há muito o estágio primeiro da mimesis e aportou de direito na plena ficção.

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Mas o documental, como a fábula – assim como o trabalho e a brincadeira, a ação “simulada” e a espera real –, habitam ”por princípio” o horizonte de A Vizinhança do Tigre: aqui, tudo é jogo, mas igualmente registro. “Méliés também é documentário: ele filma uma representação teatral” (Godard). É preciso resgatar a literalidade do verbo “jogar” (iocare) e apreender a lancinante situação de um objeto solicitado por démarches opostas mas complementares, para aqui e para lá, bólibo onde as distintas grandezas (social, existencial) e as forças que estas mobilizam se cristalizam: infra-estrutural (cinéma verité: Jaguar) como superestrutural (cinéma verité: Gare du Nord, Out 1) , “coisa como Ideia”.

Jia Zhang-ke, em entrevista concedida a Cinética por ocasião do lançamento de O Mundo (2004), disse que não lhe interessava mais a alternativa à mão de “manifestar Mundo” do cinema pós-rosselliniano: “plano sequência, locação e luz natural”, acrescento eu; ele achava (atualizando o insight languiano de que todo cineasta tem de ser um crítico, não só do que representa mas da forma como o representa: novamente os “meios” em questão) que hoje era necessário dar o passo além, e assim legitimava/justificava a inserção de cartoons animados na estrutura de O Mundo: o caminho da mediação. A Vizinhança do Tigre não se limita mais, como bem asseverou Jia, ao itinerário clássico (um plano=um homem=um mundo). Lumière só existe aqui diferido por Méliés, a posteriori: o documentário “se diz” da performance, das rubricas de micro-encenações (auto-encenações), da narrativa progressivamente sedimentada pelo crescendo dos tempi e o encadeamento dos gestos; o bilhete de despedida encerra um círculo sufocante de tempos mortos e gestos evasivos, enfim liberando a rota para uma vida outra, cuja alacridade “passageira” é comemorada na sequência que encerra o filme. Assim, no filme de Affonso Uchoa, o documento é indissociável do ritornello musical (o funk), da estrutura circular, das notações “Diário íntimo”, em suma: dos arautos como dos apanágios do romanesco; e o romanesco, a seu modo, é tributário da rugosidade rough cut de Verdade do documento “de base”.

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Mas de que maneira A Vizinhança do Tigre legitima este “passo além” do classicismo, que o leva a não apenas “mostrar Mundo” como também a exercer sobre ele uma hermenêutica existencial (relê-lo) e uma práxis de guerra (dirigi-lo segundo os propósitos de nossa força)? É na arte de alternância e de infiltração da montagem – entre jogos de brincadeira e jogos de trabalho, entre pausas que não introduzem nada de novo e ações que não acabam nada de começado – que uma certa releitura perversa da realidade se manifesta. “Perversão é um desvio dos fins”, Deleuze leu em Freud, para além do dualismo e da tirania do simbólico.

Na medida em que o trabalho em A Vizinhança do Tigre é entrecortado e modulado pela brincadeira, ele é desvinculado de seus “fins estritos de produção”, e aparece como um jogo entre outros, puro dispêndio de força e figuração do invisível pela ação: o trabalho, como os exercícios combativos que preparam os meninos para a guerra da Cidade, é agora uma produção que, à imagem da poiésis grega (raiz da nossa compreensão de poesia), esgota-se em seu próprio fim imanente; vale em si e para si mesma, como as obras de arte e os novelos de lã para os gatos, indefinidamente ensimesmados em seu próprio jogo, raccordando os circuitos do imaginário e da memória no presente infinitamente renovado da auto-criação. Poderíamos dizer, como Jean-André Fieschi sobre Rivette, “que nada de definitivo pode ser dito sobre esta ação: o conto deve ser continuado em breve em outro estágio, e com outros fantasmas”.

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É no exercício mimético que as crianças aprendem a ser, é brincando que se ocupam exemplarmente do ofício nobre da auto-invenção ontológica, pois o homo ludens é o homem da ação absoluta, na medida em que esta não é desviada ou desvitalizada por nenhum fim exterior, que não deságua em nenhuma criação objetiva que não seja o próprio gerúndio do jogo: o sendo (das sein).Trabalhar, em A Vizinhança do Tigre, é uma ação que foi contaminada pela gratuidade reveladora da brincadeira, e portanto perdeu as coordenadas “sensório-motoras” da realização teleologicamente orientada, planejada e estratificada pela cadeia dos fins. Há imagem mais evidente deste desperdício ontológico a que o trabalho agora serve do que o plano deste menino que se empenha em “cavar a própria cova”? Por seu turno, as brincadeiras também sofrem um curto-circuito no seu telos de tempo ocioso e ação aleatória, na medida em que consistem em preparações para o combate iminente, em um simulacro de papéis e estratégias a serem desencadeadas no devido espaço-tempo da luta. O filme abre este espaço trágico de indiferença entre dimensões, e de perversão recíproca de umas pelas outras, na qual o jovem Nietzsche viu o exercício poderosamente dialético da tragédia, onde a criação e a destruição, a brincadeira como a “ação séria”, o simulacro como a Ideia se encarregam de revelar a Verdade do que é.

Para a atriz Camila da Carruagem de Ouro (1952), de Renoir, a questão agonística era saber “onde termina a vida e começa o teatro”, e a princípio A Vizinhança do Tigre coloca-se no mesmo sítio ontologicamente fronteiriço – agora em relação à noção de Jogo. Mas Camila ainda era uma diva instalada num universo metafísico, onde tudo se opõe e justapõe segundo valores dualistas. A Vizinhança do Tigre olha-nos do outro lado do espelho, e aceita como um dado positivo a indeterminação, a porosidade entre dimensões, o fim das hierarquias (Verdade, simulacro, vida, teatro), a ciranda dos valores: sim, Camila aprendeu a jogar. E os meninos que, ao final do filme, dançam sobre os patins, também aprenderam o peso desta leggera lição.

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