ensaios
Cine-rizoma canibal
Reichenbach, Deleuze, Godard e a cinefilia
por Daniel Caetano

Quando contei que pretendia escrever um estudo que incluiria seus filmes e expliquei qual era meu foco de interesse - cineastas envolvidos inicialmente com movimentos de vanguarda e posteriormente com a produção de filmes “vulgares” -, Carlos Reichenbach insistiu que eu deveria incluir mais cinco diretores, no mínimo, para analisar seus filmes. Um deles era brasileiro (Antônio Calmon), outro era americano (Joseph Sarno), outro italiano (Joe D’Amato), e os outros dois chegaram a estar nos meus planos de estudo – eram o italiano Tinto Brass e o polonês Walerian Borowczyk. Conversamos algum tempo sobre os filmes de Sarno, cuja trajetória eu até então não conhecia. Além disso, ele notou que valeria a pena incluir no estudo uma discussão sobre a “cinemateca saturnal”, os filmes eróticos ou pornográficos “extremos”, que ele já estava (e ainda está) pesquisando para um livro dedicado ao assunto.

A presença da cinefilia no olhar dos seus filmes foi algo percebido pelos críticos desde o primeiro momento. Na verdade, isso é afirmado nos próprios filmes de forma mais explícita (em Audácia!, Lilian M, O Império do Desejo) ou menos (nos demais), assim como sempre foi apontado pelo cineasta nos seus textos e entrevistas. Por exemplo, num longo depoimento sobre sua carreira escrito para a edição nº 28 da Filme Cultura, o cineasta falou sobre os filmes que o fizeram decidir trabalhar com cinema (no texto, ele mencionou A Estrada, de Oswaldo Sampaio, O Tigre da Índia (foto), de Fritz Lang, Outubro, de Sergei Eisenstein, Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni, e Barravento, de Glauber Rocha), para em seguida contar que seu primeiro filme, As Libertinas (dirigido em parceria com João Callegaro), na verdade foi feito basicamente sob a inspiração de um filme chamado Sexy Gang, “um clássico do cinema cochon” em que se sucediam cenas de strip-tease. Neste mesmo depoimento, ele apontou a influência decisiva de O Bandido da Luz Vermelha sobre seu filme seguinte, Audácia; contou que Corrida em Busca do Amor foi inspirado nas comédias de Frank Tashlin e nos filmes para jovens protagonizados por estrelas como Sandra Dee e Annette Funicello; e enumerou nada menos que cinco filmes como fontes de inspiração para Lilian M, Relatório Confidencial. São eles: Segredos de uma Esposa, de Shohei Imamura, Alucinação Sensual, de Kon Ichikawa, Insinuante e Pecadora, de Yasuzo Masumura, Naked Kiss, de Samuel Fuller, e Viver a Vida, de Jean-Luc Godard. Neste depoimento de 1978, a diversidade dos filmes mencionados deixa evidente tanto a voracidade cinéfila de Reichenbach quanto o seu desejo de aprofundar as relações com obras as mais distintas entre si.

Como muito já se falou, essa relação de absorver todas as influências - de todos os pólos culturais: da dita alta cultura, da tradição popular e da grande indústria – remetia à herança teórica da antropofagia modernista e foi fundamental para toda a geração do dito Cinema Marginal. A voracidade de Reichenbach, no entanto, leva essa perspectiva a um limite paradoxal, que vai um pouco além da lógica antropofágica. O canibalismo pressupõe uma relação contínua, progressiva: há uma sequência contínua na linha de alimentação. Na cadeia alimentar (cultural e estética), criam-se estruturas em que uns jantam, outros são jantados – e sempre há risco de que o cardápio disponível não varie, apenas avarie. Os filmes de Reichenbach, com suas narrativas que assumem explicitamente o tom de cinema, anti-naturalista, dinamitam qualquer traço linear e supostamente progressista em torno da linguagem cinematográfica: sejam paródicas (ou seja, miméticas) ou canibais (ou seja, digeridas), as influências se dão em relações múltiplas, como numa relação constituída pela liberdade em escolher sua tradição (e romper). O cineasta nunca procurou ocultar as heranças que escolheu digerir – conforme ele afirmou uma vez: “Eu não tenho receio de explicitar essas influências, ao contrário, acho que não dá para escapar delas”. Veja-se, por exemplo, o texto de apresentação de O Império do Desejo (foto) escrito por Reichenbach, intitulado “Por que fiz este filme”. (página 1; página 2; página 3)

Mais do que influências a serem todas devoradas, os nomes elencados não o constrangem ao risco de indigestão; não são precursores a que se deva tributo, são pontos de diálogo e estímulo para a invenção. São seus intercessores, na definição de Gilles Deleuze (no texto “Os intercessores”, entrevista de 1985 publicada em "Conversações"):

"O importante nunca foi acompanhar o movimento do vizinho, mas fazer o seu próprio movimento. Se ninguém começa, ninguém se mexe. As interferências também não são trocas: tudo acontece por dom ou captura. O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas – mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, é preciso fabricar seus próprios intercessores".

O princípio do conceito de rizoma proposto por Deleuze e Guattari está relacionado ao cinema, mais especificamente a um cineasta: Jean-Luc Godard. Quando propuseram o conceito, no livro "Mil Platôs", de 1980, os dois escreveram o seguinte:

“A árvore impõe o verbo 'ser', mas o rizoma tem como tecido a conjunção 'e... e... e...'. Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser”.

Numa entrevista concedida em 1976, quatro anos antes de Mil Platôs, Deleuze apontou as seguintes características nos filmes de Godard:

"Godard não é um dialético. O que conta para ele não é o 2 ou o 3, ou sei lá quanto, é o E, a conjunção E. O uso do E em Godard é essencial. É importante, porque todo nosso pensamento é mais modelado pelo verbo ser, pelo É. (...) Ocorre que quando se faz do juízo de relação um tipo autônomo, percebe-se que ele se mete por toda parte, que penetra e corrompe tudo: o E já não é nem mesmo uma conjunção ou uma relação particular, ele arrasta todas as relações: existem tantas relações quanto E, o E não só desequilibra as relações, ele desequilibra o ser, o verbo..., etc. O E, 'e... e... e...', é exatamente a gagueira criadora, o uso estrangeiro da língua, em oposição ao seu uso conforme e dominante fundado sobre o verbo ser. Certamente, o E é a diversidade, a multiplicidade, a destruição das identidades. A porta da fábrica não é a mesma quando eu entro, e depois quando saio dela, ou quando passo em frente, desempregado".

E a linguagem narrativa do cinema não é a mesma depois de reconhecer as suas relações históricas. Isso vale para os filmes de Godard tanto quanto para os de Reichenbach. É curioso que, ao ter seu trabalho revalorizado em meados da década de 1980, um dos rótulos que Reichenbach ganhou foi o de “Godard da Boca do Lixo” (Pelo menos três jornais publicaram reportagens sobre Reichenbach com este título, “O Godard da Boca do Lixo”. O primeiro foi o Jornal do Brasil, em reportagem de 14/05/1987, o segundo foi o Estado de Minas, numa reportagem publicada em 09/06/1987, e finalmente a Tribuna da Imprensa, num perfil de Reichenbach escrito por Ivan Cardoso, publicado em 4/12/1993). Embora o humor da comparação tenda a torná-la superficial, já que as trajetórias e os filmes dos dois são diferentes demais para se prestarem a uma analogia (e, na verdade, às vezes pareça ser um tanto pueril o gesto de comparar a Godard qualquer cineasta com algum traço de experimentalismo), há este aspecto em comum que nos permite aproximar seus filmes: a consciência do cinema se torna uma mola propulsora para a criação. A consciência histórica da linguagem não gera angústia e dívida, mas estímulo. Não a busca de uma imagem definitiva que pretende sintetizar todas, mas apenas uma imagem que, inventiva, se soma a outra e a outra e a outra.

Este aspecto o distingue de parte dos seus colegas. Conforme a análise de Ismail Xavier sobre alguns dos principais filmes cinemanovistas e udigrudis, em "Alegorias do Subdesenvolvimento":

"Os filmes de Glauber, Sganzerla e outros cineastas aqui analisados estão empenhados numa intervenção que tem dois planos decisivos. De um lado, há a questão do diagnóstico referido à sociedade: nele, o subdesenvolvimento ganha relevância enquanto noção diferencial que pressupõe uma condição de incompletude, de falta, que separa a experiência observada de uma experiência-matriz mais plena situada 'em outro lugar', chegando a seu termo um processo que, na realidade mais próxima, foi truncado, tornando mais aguda a vivência da situação presente como momento de crise e sem promessas. De outro, há a questão do diálogo obra-público, palco de uma dialética específica: naquele momento, é acirrado o debate sobre a linguagem (adaptá-la ou não aos parâmetros do mercado?), e os cineastas sabem ser imperativa uma resposta face à ausência de comunicação com o grande público".

Nos filmes de Reichenbach, o acréscimo de influências tem objetivo e estratégia diferentes. Em trabalhos tão diversos como A Badaladíssima dos Trópico Contra os Picaretas do Sexo, Lilian M (foto), A Ilha dos Prazeres Proibidos, O Império do Desejo e Alma Corsária, a relação com seus intercessores aponta para uma construção em forma de empilhamento de ideias, influências, corpos e atmosferas, e não para uma ausência estruturante do corpo social. Não pretendo sugerir aqui que nos filmes de Reichenbach a pobreza e a precariedade são positivadas de forma pueril a partir da visibilidade dada a influências e citações. A consciência da pobreza e suas consequências existe nestes filmes. Mas não se parte de uma dívida com os modelos herdados (nem de linguagem cinematográfica, muito menos de sociedade idealizada: a sociedade utópica nos filmes de Reichenbach não tem como ser importada, pois ainda precisa ser posta em prática). Os mais interessantes deles não se constroem a partir da falta, e sim de uma multiplicidade inventiva - que é fundamental para a definição do seu estilo.

Junho de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta