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Eleger a distância perfeita

O dispositivo: a câmera de segurança instalada pelo pai para descobrir quem está quebrando as janelas do carro.

A narrativa: com intertítulos concisos, como os do cinema mudo, e a decupagem por zoom, vão se construindo os personagens e as suas mil e uma histórias.

O som: a câmera de segurança parece não ter áudio. O mundo está distanciado, mas o desenho de som leva seus ruídos até o pé da nossa orelha. Os passos, os pássaros, os carros. O som preenche os pixels da imagem e nos aproxima dos acontecimentos. Recurso semelhante ao de Lois Patiño em Costa da Morte (2013). Distanciando personagens e aproximando vozes, o diretor galego nos coloca no ponto de vista e de escuta de Deus, como se olhássemos da altura das nuvens, mas ouvíssemos as suas preces. Em Um Verão Incomum, somos a criança na janela, ouvindo os ruídos de um mundo em descoberta, inventando histórias, fazendo conexões entre personagens desconhecidos. Sabemos quem é quem pelos seus nomes, suas histórias, e não por sua imagem de reconhecimento individual.

Um verão Incomum (2020), Kamal Aljafari

Costa da Morte (2013), Lois Patiño

A distância: o tamanho justo do homem em relação ao mundo. A figura que se integra à paisagem, não sobre ela. A distância segura de se manter antes do homem se desmanchar em subjetividade. Ao nos aproximarmos demasiado, ele se desintegra.

A paranoia: a distância do medo. Todos são suspeitos. O suspense da imagem de segurança, que só pela sua existência já revela o perigo. O olho quer ver, mas a imagem não pode dar mais do que a opacidade da sua superfície. Como as imagens em Blow Up (1966), que se recusam a se mostrar quando o perseguidor está tomado pela desmedida.

Um Verão Incomum (2020)

Blow up (1966), Michelangelo Antonioni

O território: é reduzido, cada vez mais recortado. Mostra-se fácil como metáfora política. A vida pulsa neste gueto da Palestina que a câmera de segurança expõe e protege.

“Não reconheço mais o meu país”: o criminoso é identificado, a morte do pai, anunciada, e as imagens continuam se repetindo. A repetição, característica desses dispositivos de captação de imagens de segurança, chega ao limite. Chegando a este vórtice, Aljafari intervém nas imagens, manipula este vídeo plástico, duplica os personagens, inverte cores, sobrepõe tempos e corpos. Altera o tempo do dispositivo, que em seu funcionamento normal revela constantemente sua localização temporal, e o espaço, imutável do enquadramento de segurança. Como o monge de Tsai Ming Liang altera a ordem do mundo com seus passos.

Um Verão Incomum (2020), Kamal Aljafari

Jornada ao Oeste (2014), Tsai Ming Liang

A distância perfeita: Kamal Aljafari estabelece a distância perfeita para lembrar de seu pai, para ver o seu país. Termina o filme com um texto em tela, uma confissão, um desabafo político e uma história familiar. Ver seu bairro desfigurado pela lente de uma câmera de segurança. Segurança para quem?


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