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A astúcia da impropriedade nos filmes de Lincoln Péricles

Nesta última década, Filme dos Outros (2014), de Lincoln Péricles, realizado no Capão Redondo, periferia de São Paulo, operou a partir de uma compreensão cristalina de como a luta de classes se imprime na materialidade das imagens. Seus procedimentos tomam como ponto de partida inequívoco a percepção de que a sociedade de classe das aparências é organizada e valorizada conforme sua resolução. Realizado com arquivos de dispositivos de filmagem roubados, Filme dos Outros expõe esse “outro” a partir das câmeras que cada filmador possuía. O filme se estrutura de forma simples e rígida: cada plano é precedido por uma cartela que nos indica a câmera utilizada em cada ocasião e o local onde foi expropriada. Essas informações, escritas sobre a tela preta, precedem a visão das roupas, paisagens, ambientes e atividades de lazer registradas nos planos utilizados. É nesses intervalos que se revela com mais acuidade a circunstância de distribuição desigual das condições materiais na base daqueles momentos aparentemente singelos e alegres. Diga-me por onde andas e qual é a tua resolução e te direi quem és. “Liga a tela no Datena, só pra ver se ele fala que esse crime é de cinema”, é o que diz a letra do clipe Num impurra ké pió, do Trilha Sonora do Gueto. Sem explicação e em corte seco, Lincoln põe em conflito as imagens “dos outros” com as cenas do clipe produzido no Capão Redondo e baixado do youtube.

No ensaio “Em defesa da imagem pobre”*, a cineasta e artista Hito Steyerl define as imagens de baixa resolução que circulam por telas de ninguém como o “lumpemproletariado da sociedade de classe das aparências”. São imagens anônimas, liberadas dos arquivos e cinematecas. São clipes, pornografia, fragmentos televisivos, registros caseiros os mais variados, em suma, um material tão heterogêneo quanto inclassificável. Apresentam-se em montagens inimagináveis percorrendo os canais de youtube, transferências de torrents e afins. São imagens que, por seu próprio regime de circulação, desafiam, de saída, as noções de patrimônio, cultura nacional e culto ao autor. É enquanto imagem pobre, inclusive, que a história dos cinemas experimentais, militantes ou ensaísticos ressurge nas redes, evidenciando seu caráter marginal no cenário das políticas neoliberais. Se esses filmes não são rentáveis aos grandes cinemas multiplex, nem sequer recebem o devido incentivo estatal para sua preservação, em vez de estarem condenados ao desaparecimento, ressurgem sem dono circulando velozes em arquivos levíssimos. Longe de um suposto glamour elitista, um certo cânone sobrevive, principalmente, pobre, marginalizado e em má qualidade.

Parece que os cinemas que mais experimentaram na última década no Brasil são — por filiação ou aliança deliberada — pobres. Lincoln Péricles parece ser quem encarou com mais frontalidade essa política de campo que, ao constituir os filmes a partir de imagens pobres, reconfigura a própria noção do que é um filme. Em Aluguel — O Filme (2015), uma câmera na mão que perscruta a vizinhança no Capão Redondo — aproximando-se e distanciando-se com zoom dos muitos muros que a constituem — convive com a banda sonora de filmes baixados do youtube. Sons de Bom dia, Vietnã (1987), de Barry Levinson, e uma voz over extraída de Longe do Vietnã (1967), de Joris Ivens, William Klein, Claude Lelouch, Agnès Varda, Jean-Luc Godard, Chris Marker e Alain Resnais, cortam a paisagem envolta na repetição dos pequenos prédios construídos em série. As legendas traem a fala em língua francesa deslocando-a, com ritmo e poesia, para a língua repleta de gírias da periferia paulistana. Esse conglomerado complexo e vertiginoso de militância, indústria e poesia se choca, no plano seguinte, com fragmentos televisivos do seriado Chaves.

Se o riso, por vezes, é provocado, não se trata exatamente de uma resposta a qualquer conteúdo engraçado, mas de uma reação de corpo diante da perplexidade com a suspensão dos sentidos costumeiros. Esse espectador que manipula e se apropria de imagens incatalogáveis não tem contas a prestar aos autores. Vozes e textos podem servir a novos conteúdos e expressões, com alto grau de recusa a uma conciliação com o original. Divulgados diretamente no youtube, seus filmes, sendo cinema, não só nascem da apropriação das imagens pobres, mas também se lançam enquanto tal. Em circulação aberta e gratuita, essa produção se contrapõe ao cinema que se quer específico e soberano, exclusivo no altar dos festivais ou das salas de exibição.

Um pouco como os DJs, cujo trabalho depende da formação de um bom acervo, Lincoln tem o costume de alimentar bancos de imagens e sons para composição de músicas e filmes. Em Ruim é Ter que Trabalhar (2014), evidencia-se um modo de produção que ganha sua força na mistura, nos intervalos e choques entre as imagens e sons. A trilha do compositor e saxofonista Livio Tragtenberg convive com o rap A lei do opressor (500 anos), de DMN. As imagens produzidas pelo diretor convivem com arquivos de diferentes texturas e resoluções, além de fotografias produzidas pelo seu parceiro de trabalho entrevistado no filme, Adriano Araújo. Esse diretor já tem o centro de sua poética, de saída, constituído a partir de imagens e sons de outros. Quanto à utilização das imagens de Adriano, não se trata mais do gesto de um suposto centro que se abre ou dá lugar a um “outro”, mas da própria implosão de um centro delimitável.

Ruim é Ter que Trabalhar põe os vestígios do trabalho, segredo invisível do espetáculo, para trabalhar. Numa fala fragmentada, porém longa o suficiente para nos aproximarmos da tonalidade e modulações da sua voz, Adriano relata as condições de moradia, transporte e jornada de serviço na base da construção dos estádios para a realização da Copa do Mundo no Brasil, em 2014. Seus registros pessoais dos fios, ferramentas, objetos de proteção com que mexia, são entremeados por planos e fotografias do seu corpo nos trajetos de ônibus e metrô. Acompanhando suas pernas, vibramos com seus ritmos; aproximando-se do seu rosto, sentimos a presença da textura de sua pele. Da face de Adriano em close, passamos para a multidão à espera do metrô. O movimento do trem que perpassa o plano se aproximando dos corpos em preto e branco nos remete, com espanto, a um dos planos originários da história do cinema. Com um zoom out, percebemos que se trata de uma filmagem da tela que expõe, ao vivo, a transmissão das câmeras de segurança do metrô de São Paulo. Podemos pensar que a invenção dos patrões Lumière desembocou nas onipresentes tecnologias de vigilância. Podemos pensar que essas tecnologias dos outros estão sempre suscetíveis à expropriação por parte dos trabalhadores com suas câmeras em mãos.

Filme de Aborto (2016) também se constrói sem centro estável. Mesmo as imagens filmadas por Lincoln apresentam diferentes texturas e registros: a câmera fixa, que capta planos longos em alta resolução, convive com uma câmera na mão, que transita mais solta pelas ruas e pela feira e se aproxima dos corpos com menos contraste e definição. Cenas aparentemente cotidianas, como uma conversa entre vizinhos na beira de suas casas, convivem com coreografias incomuns, como a de um funcionário de supermercado que continua a passar as compras em gesto automatizado no ambiente de trabalho já esvaziado de clientes e objetos. O som frequentemente não coincide com a imagem, criando diálogos, embates ou tensões entre o que se escuta e o que se vê. O aborto, como ato que interrompe a reprodução, como quebra de organicidade, parece ser o princípio de organização dessas matérias que não tendem a se fundir naturalmente.

É nesse espaço permeável e intervalar que imagens de One A. M. (1916), de Charles Chaplin, são intercaladas aos planos que decupam, em uma sequência aparentemente natural, a chegada de uma trabalhadora à sua casa. No filme, realizado um século antes, o personagem, bêbado, tem dificuldade de encontrar a chave para entrar em sua casa, e depois, atrapalha-se ao trancá-la. Não por acaso, a imagem expropriada da indústria americana é apresentada nesse limiar entre fora e dentro de casa, entre espaço público e privado. Lançada enquanto imagem pobre nas redes, a partir de circuitos piratas, amadores e informais, a imagem de Charles Chaplin torna-se apropriável e manipulável por qualquer um. Sua vocação propriamente pública, contudo, é dada nas operações de montagem. Ao se inserir na sequência entre o fora e o dentro da casa da trabalhadora, a figura de Chaplin cria uma fratura na construção do que poderia ser o espaço próprio daquela mulher. Em falso raccord, o plano em que Chaplin fecha a porta ao entrar em casa é seguido pelo plano em que, no interior de sua cozinha, a mulher retira a chave da fechadura. Essa irrupção extemporânea, que não nos permite ver o ato de fechamento da porta pelas mãos da trabalhadora, inscreve um intervalo de cem anos de história do cinema entre o lado de fora e o lado de dentro de sua moradia. Já no interior de sua cozinha, o espaço é cortado novamente pela irrupção de uma cartela do filme de Chaplin. Seguindo a ética de “fiel infidelidade” do filme, como apontou Juliano Gomes, a legenda trai o original e sentencia, em português: “toda a propriedade é um roubo”. Enquanto a voz feminina, em off, narra os processos de exploração a que é submetida, Lincoln, na montagem, subverte as violentas relações de propriedade que moldam sua condição de explorada.

No cinema de Lincoln, o choque entre os diferentes arquivos e registros nos leva a atentar à materialidade das imagens, notando, em suas texturas, diferentes histórias de relações de produção e circulação. Ao longo de quase toda sua filmografia, parece que há, pela duração dos planos, um desejo de atentar, em paralelo, aos corpos em suas materialidades irredutíveis à mera representação de um papel. Em Filme de Aborto, as dores de trabalho se materializam na mão que afrouxa e deixa a louça cair no chão, na musculatura do pescoço que já não sustenta mais o rosto ereto diante do prato de comida. Enquanto o trabalho subordinado à exploração aparece apenas aludido, nos longos depoimentos, o que vemos no interior dos planos é o trabalho de corpo vivo, do próprio ritmo do cansaço, da alimentação, da conversa a esmo. O movimento otimizado e eficaz do trabalhador dá lugar ao gesto. A arma que se manipula incessantemente sem atirar, o repouso de um rosto sobre o ombro, o descanso das pernas que se reviram sobre a cama. A duração dos planos obedece a esse tempo impreciso e inapreensível que é, tão somente, o tempo da vida.

Ruim é Ter que Trabalhar (2014)

Entre o movimento centrípeto das afirmações diretas e assertivas e as derivas centrífugas da poesia, seus filmes se fazem no encontro não contraditório do papo reto com o papo indireto. As cartelas que indicam o Capão Redondo como local de realização dos filmes, a presença constante de pessoas com a blusa estampada com o verso de Sabotage “Rap é compromisso”, entre outras marcas muito explícitas são autodefinições que operam como estratégia de não apagamento do vínculo com a história e um posicionamento político contra-hegemônicos localizado na quebrada. No entanto, não há informação já embalada e pronta para circular. Rastros de força expressiva — a longa aproximação de zoom diante de uma simples torneira, o close de uma privada, o longo plano das luzes do escuro túnel do metrô em movimento — injetam nos corpos o combustível para a produção de um pensamento a um só tempo crítico e sensível. Contudo, mais do que em forma ou conteúdo, a política de Lincoln se manifesta principalmente em seu modo de produção. É a partir das escolhas dos materiais e objetos técnicos que os filmes se localizam na luta de classes das aparências e as conversas, embates e alianças se fazem. Talvez a formulação que melhor exprima o método de Lincoln seja o título de um dos seus filmes mais enigmáticos: Entrevista com as Coisas.

Entrevista com as Coisas (2015)

*No original, publicado na revista E-Flux, o ensaio foi intitulado como “In Defense of the Poor Image”. Quando publicado no Brasil pela revista Serrote #19 em março de 2016, foi traduzido como “Em defesa da imagem ruim”. Em consonância com a dissertação de Darks Miranda, prefiro a tradução por “imagem pobre”, preservando a semântica que vincula a nomeação dessas imagens com um vocabulário que remete ao modo como se inscrevem potencialmente na luta de classes. A dissertação de Luisa Marques, na qual encontra-se uma ampla apresentação e reflexão profunda em torno do pensamento de Hito Steyerl, está disponível aqui.


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