Filme de Aborto, de Lincoln Péricles (Brasil, 2016)

fevereiro 2, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

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O diabo provavelmente
por Juliano Gomes

“A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularização ostranenie – (estranhamento) dos objectos e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O acto de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se ‘tornou’ não interessa à arte.”

Viktor Chklovsky

Filme de Aborto: primeiro, um filme que se diz filme, onde “ser filme” se coloca como questão. Em seguida, “de aborto”. “De” denota uma espécie de modo, um tipo, um gênero ao qual o filme pertenceria. Um filme é, de maneira geral, uma composição de porções de imagem e sons captados descontinuamente, dispostas em um fluxo cujo contato entre as partes sugere sentidos e sensações. Um aborto: uma interrupção da gravidez, um processo em andamento que é suspenso, que não segue a direção pretendida, onde há a interferência de algo externo que impede que se cumpra um ciclo completo. É bastante justo que estas palavras dêem nome a este trabalho, na medida em que os dois eixos são conceitualmente ativos por todo o filme, ora paralelos, ora em cruzamento: um, dimensão de discussão de composição; outro, de interrupção e rearranjo de fluxos.

Uma primeira face da discussão composicional, de uma certa exploração de o que pode um filme ou de o que torna um filme um filme, é a investigação sonora. Um som de um filme de propaganda antiaborto no início e a canção “Marcha do Pinguço”, de Carolina Maria de Jesus, ao final, ambos sob tela preta durante alguns minutos. O som é a camada onde o filme cria seu mapa, de uma maneira geral. Áudios de conversas, que soam como entrevistas documentais (nunca saberemos), tratando exclusivamente sobre um homem e uma mulher que vivem sob condições de trabalho desumanas e opressivas. Essa porção do filme parece fornecer o dado mais decisivo em relação a sobre o quê se está se falando: o assunto é a vida de quem é explorado, de jovens cuja previsão de futuro é interrompida e cuja única opção parece ser a resignação (talvez a parte mais violenta do filme seja quando a moça fala sobre a desilusão perante a ideia de estudar).

Outra ferramenta frequente é o uso e desuso da sincronia. Com um registro estranhamente fabular e cru, vemos a história de um casal de jovens onde o homem fica grávido. Os momentos em que o filme se utiliza da sincronia entre som e imagem, diegéticos, são dois, e em ambos essa estranha fábula do grávido se coloca como centro narrativo, com o tal rapaz conversando com um senhor e depois com um bizarro colega, na clínica de aborto, que narra suas desventuras e seus motivos para interromper a gravidez. O filme estabelece uma série de níveis flutuantes que se combinam e se chocam: a história do rapaz pode ser uma alegoria pra gravidez real da garota, mas também pode não ser. O que parece importar como resultado é que o registro do filme não repouse na constituição de uma individualidade dos personagens. É importante que eles sejam mais que eles mesmos – já que a ideia de classe, de fenômeno coletivo, é essencial aqui como recorte de personagem.

A dinâmica da armação dessincrônica, com os depoimentos em voz over e as imagens de casal e de conversas, parece dialogar com uma tradição de docudrama que evoca programas de TV como Fala que Eu te Escuto, nos quais o drama narrado é acompanhado de um reconstituição estilizada e lacunar. Há um curioso investimento dramatúrgico que modula diversas camadas da narrativa: sob os depoimentos, vemos outras pessoas conversando, ou o casal na cama brincando com um revolver antigo. Os blocos, porém, parecem quase nunca coincidirem totalmente. Um exemplo: depois de alguns minutos de fala, a cena continua na imagem muda, ou o áudio continua sem imagem, e vice-versa. O uso do plano fixo cria sentidos parecidos, durando alguns minutos até que, depois de aparentemente estabilizado, se mexe de maneira instável, evocando o que pareceria um erro, que se torna recurso na sua repetição.

É criado um regime de permanentes traições, onde as coisas começam de um jeito e terminam de outro. Em determinado momento, o drama central é interrompido por uma canção de Kurt Weil e Bertolt Brecht que fala de relações de classes (é cantada em alemão, portanto as legendas podem não coincidir com o original), e uma cartela, mais adiante diz: a propriedade é um roubo (diante de um intertítulo de um filme mudo, em inglês, que diz outra coisa). O que se cria é uma espécie de sistema de impropriedade como motor conceitual. Em lugar da exploração aniquiladora do capitalismo avançado, o filme opta por uma espécie de regime de roubos estéticos como política, impossibilitando a ideia de qualquer pureza no registro.

Porém, bem quando achamos que se trata de um filme de planos de longa duração, ele nos apresenta uma ágil e decupada sequência da personagem voltando para casa. Quando pensamos que o drama é desses dois personagens, o filme insere, em sincronia com a entrada da moça em casa, uma sequência análoga do filme 1am, de Chaplin, isso sob o som de Patti Smith (“Kimberly”), que inicia na ágil sequência anterior, da clínica de aborto, e toca inteira no filme. A estratégia da câmera desajeitada, criando uma certa sugestão de amadorismo, de erro, é repetida num longo plano da sequência final, onde a câmara se posta parada por longos minutos observando uma mulher na cozinha fritando um ovo e bebendo cerveja, interrompida por um súbito zoom após longos minutos, apontando para si também como gesto – ao mesmo tempo em que o filme conduz também uma investigação das opressões de gênero do mote da gravidez interrompida.

Nem o cotidiano “real time”, nem fábula “artesanal”, nem ensaio musical sobre a opressão contemporânea do capital, Filme de Aborto escolhe todos estes e nenhum, em sua fiel infidelidade. Há uma singular construção onde se percebe claramente qual é a matéria de trabalho, porém é quase impossível adivinhar a próxima cena ou plano, se ela durará dez segundos ou quinze minutos, se vem uma tela preta com uma canção, um trecho de outro filme, ou alguém manipulando um objeto imaginário, ou um câmera que não filma nada.

A única camada em que o filme não parece disposto a violentar e trair é a dos depoimentos da exploração do trabalho em off (uma legenda falsa traria para estes depoimentos uma dobra possível), sugerindo neles um certo centro. A interrupção mais real, que toca o mundo fora do filme mais frontalmente, é a dessas narrativas, insistentemente monotemáticas. De certa forma, é nelas que o filme trai sua própria traição, mantendo-as intactas como chão para onde as demais camadas se reportam, A exploração continua e ela é permanente. É nela que está o ápice dramático do filme onde os dois eixos se juntam (a narração do suicídio de uma operadora de telemarketing grávida, no local de trabalho). O trabalho do filme, o trabalho no mundo, dessas duas nascentes, parecem ser o cruzamento gerador de Filme de Aborto, essa composição conflitante entre extratos, de uma obscura clareza estético-política.

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