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O jogo instável entre realizador e espectador na Filmes de Plástico

Talvez quem visse Fantasmas (2010), de André Novais Oliveira, no ano de seu lançamento, não pudesse vislumbrar o movimento tectônico que se operava no campo do cinema brasileiro. No decorrer do filme, o espectador percebe que está a ver não uma suposta janela para a realidade, mas a superfície de uma imagem captada por uma câmera amadora que duas pessoas observam e manipulam. Esses dois homens que conversam no antecampo são, antes de mais nada, espectadores. O único espaço a que temos acesso é o próprio tecido dessa imagem a que eles assistem, com sua elasticidade e temporalidade particulares de aproximação e afastamento, avanço e retorno.

Filme de Sábado (2009), de Gabriel Martins

Contagem (2010), de Gabriel Martins e Maurílio Martins

O espectador é uma figura recorrente em toda a filmografia da produtora mineira Filmes de Plástico. O primeiro trabalho do grupo, Filme de Sábado (2009), de Gabriel Martins, inicia-se com imagens anônimas, aparentemente do início do século passado, nas quais uma família é fotografada no quintal de casa. Diante da TV, o protagonista assiste a essas imagens e sente-se mobilizado, não sem o auxílio das tecnologias de produção audiovisual, a reinventar o seu sábado. Em Contagem (2010), de Gabriel Martins e Maurílio Martins, é enquanto assiste à TV que um senhor é assassinado.

Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides (2011), de Gabriel Martins

Ela Volta na Quinta (2014), de André Novais Oliveira

Em Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides (2011), de Gabriel Martins, a protagonista assiste às imagens falhas de um VHS com registros amadores de uma família. Em Ela Volta na Quinta (2015), de André Novais Oliveira, os irmãos assistem demoradamente a montagens com o choque de diferenças característico dos vídeos de internet. Enquanto conversam sobre o cotidiano da família e de suas jornadas de trabalho, deixam os olhos e ouvidos transitarem por universos aparentemente antagônicos como o berro de um bode em zona rural e fragmentos de clipes de uma figura pop como Justin Bieber.

O que interessa na Filmes de Plástico — que não por acaso se nomeia a partir de um material tão precário — é a coragem de não se confrontar com essas imagens a uma distância segura. As imagens pobres, de autores anônimos, frequentemente aparecem em tela cheia, ou, ao menos, duram o tempo necessário para destinarmos o olhar a elas, contaminando, em definitivo, os planos fílmicos. A perfuração constante dessas imagens no território de Contagem desestabiliza qualquer possibilidade de construção essencialista dessa paisagem e, ainda, a compreensão desse espaço como puramente periférico. Ao mesmo tempo, a emergência dessas imagens desestabiliza o cinema enquanto campo específico.

Mundo Incrível Remix (2014), de Gabriel Martins

Alzheimer (2009-2021), de André Novais de Oliveira

Alzheimer (2009-2021), de André Novais Oliveira e Mundo Incrível Remix (2014), de Gabriel Martins, são eloquentes na exposição de como o cinema, ao se misturar com outros regimes de imagem, desfaz as fronteiras rígidas entre os estatutos de realizador, personagem ou espectador. Esses curtas se compõem a partir de um trânsito instável entre essas posições. Em Alzheimer, Maria José Novais, atriz e mãe do diretor, filma sua casa com uma câmera amadora de baixa resolução ao mesmo tempo em que comenta aquilo que vê. Sua fala reflexiva tece elaborações sobre sua relação com as imagens e a memória: “Enquanto eu lembro, preciso viver e registrar algo. Tenho memória que já foi boa e uma doença estranha que me lembra a morte”. Maria José filma os próprios olhos, nos apresentando seu olhar enquanto mira a câmera. Em outros momentos, essa personagem-espectadora-realizadora também se deixa ser vista pelo filho, enquanto olha e comenta as imagens dos álbuns de família.

Em Mundo Incrível Remix, imagens produzidas em viagens internacionais pelos atores aparecem em tela cheia e são seguidas da apresentação dos seus rostos e vozes, enquanto eles as vêem e comentam na sala de casa. Em outro momento, entremeando a narração de sonhos, o filme amplia seu escopo imagético ao se abrir a uma exposição remixada de um vertiginoso fluxo de imagens que corta a paisagem da casa e de seus arredores. Aquele espaço aparentemente bem delimitado é rasgado pela visão de galáxias e planetas distantes em registros de baixa qualidade com suntuosos efeitos digitais. A última afirmação dos atores, endereçando-se diretamente para a câmera, é de que “tudo se transforma”. Nesses circuitos de apropriação e manipulação das imagens, os produtores viram espectadores e vice-versa. Nos dois filmes, os realizadores, André e Gabriel, tornam-se espectadores da própria condição de espectador de seus familiares diante das imagens que eles mesmos produzem ou se apropriam. Nesse jogo de variações incessantes, a posição dos realizadores e personagens se cruza e se confunde com a nossa.

Em diversos títulos da produtora, como Filme de Sábado, parece que há a investigação de uma temporalidade que não é exatamente um marco em uma linha cronológica, mas aproxima-se de um estado singular de percepção. Essa tendência se acentua nos títulos de André Novais Oliveira: Domingo (2011), Ela Volta na Quinta, Temporada (2018). As imagens pobres e heterogêneas, de distintos circuitos e datas de realização, ao perfurarem as imagens e narrativas supostamente próprias desses filmes, abrem-os a uma trama de tempos que se esbarram ou chocam sem se fechar em simples continuidades. Domingo leva esse embaralhamento ao extremo, de forma que já não é possível situar suas imagens próprias ou delimitar seu centro gravitacional. O filme é composto por diversos arquivos de imagens que retratam pessoas em situações de lazer. Se as imagens iniciais podem dar a entender de que se tratam de registros de viagem de uma única pessoa, logo de início a variação de perspectivas, paisagens e, sobretudo, de texturas e resoluções, permite a rápida compreensão de que se trata de um acervo complexo e difuso. Os sons tampouco informam sobre as origens ou propriedades das imagens, mas somam-se a elas com suas paisagens também um tanto inapreensíveis. Mais ou menos na metade do curta, aparece, mais uma vez, a figura do espectador. Em grandes salas de cinema, centenas de pessoas encaram as telas. Como um contra-plano, é inserido o arquivo de um filme, único trecho de imagem em movimento com som síncrono. Em um fragmento de O Homem do Sputnik (Carlos Manga, 1959), suas personagens celebram a irrupção inesperada de um satélite de ouro em suas casas. Essa tecnologia de produção de imagem, se vendida, os permitiria realizar diversas viagens. Após esse trecho, diversas fotografias mostram espectadores de diferentes épocas saindo de salas de cinema. Se há um centro catalisador dessas imagens tão diferentes entre si, talvez seja um tanto como o efeito desse satélite desgovernado que chega de súbito provocando o desejo de viagem.

Como lugar de confluências e alterações permanentes, Domingo é, a um só tempo, recuperação e reinvenção de vestígios de domingos passados ou por vir. Em Domingo, orbitando fora dos escaninhos convencionais das construções modernas e ocidentais de memória (museu, arquivo, biblioteca, etc.) o trânsito inusitado dessas imagens quase incatalogáveis parece criar um “espaço de memória”, como afirma Leda Maria Martins. A junção desses materiais opera como uma prática provisória e inaugural. Há algo de ex-ótico no encontro intervalar e conflituoso dessas fotografias, trechos de filmes e sons que não se fundem em um espaço ou tempo coesos. O espectador é lançado para além do visível. Resta a tarefa de inaugurar, de modo singular e sempre variável, a sensação tão única quanto difusa de um domingo.

Em Quintal (2015), de André Novais de Oliveira, o cotidiano de um casal da região metropolitana de Belo Horizonte é atravessado por registros de pornografia contidas em um DVD pirata encontrados pelo protagonista. Ao habitarem o cinema, inseridas na narrativa, as imagens pornográficas destinadas a uma fruição particular tornam-se públicas. Um deslocamento final mais contundente, contudo, é operado pela narrativa. Os vídeos pornográficos acessados na sala de casa são transportados pelo seu espectador, Noberto Novais, para a universidade. Noberto apresenta, em uma defesa de mestrado, uma “abordagem estética” dessas imagens. Nesse trânsito — da tela da TV ao auditório universitário — parece que o golpe de André está em propor que os espectadores de imagens quaisquer são também os seus mestres. Cabe ao cinema saber aprender com suas aventuras intelectuais, voltando-se, assim, sempre para fora de si mesmo. Esse jogo instável entre espectadores e realizadores leva o cinema a um estado de reconfiguração permanente de suas matérias de composição, modos de fazer e pensar. Essa posição ética, que leva os realizadores da Filmes de Plástico a se relacionarem com os mais diversos regimes de imagem e seus produtores a partir de uma pressuposição de igualdade de inteligências, parece ser o motor da maleabilidade radical de suas poéticas.


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