Mundo Incrível Remix, de Gabriel Martins (Brasil, 2014)

fevereiro 14, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

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Além é o que se vê
por Juliano Gomes

Mundo Incrível Remix, de Gabriel Martins, tem como primeira imagem um homem com roupas coloridas que dança ao som de “Hallelujah”, de Leonard Cohen, tocada por músicos de rua. Aos poucos notamos que a cena não se passa no Brasil (“you are amazing, man!”, ouvimos), e dela o filme corta para um close de uma tartaruga. O trajeto que o filme faz é, de certa maneira, o caminho que justifica esse corte. Usando de uma série de elementos de repertório comum – família, animais, viagens, imagens, reencarnação, música pop – o filme se concentra justamente nessas “encarnações” das coisas, isto é, nas suas formas. O desafio aqui é conseguir criar uma linha que leve de um elemento ao outro e que seja de continuidade e descontinuidade ao mesmo tempo. O notável trabalho de montagem tem como premissa uma analogia justamente com uma ideia de natureza: existe algo que perpassa tudo, mas nem tudo se transforma em tudo, aleatoriamente. A realidade das coisas, no mundo e na tela, tem forma. É a crença na forma das coisas, e no poder da imagem como agente dessas formas, que funciona como pulmão para a sucessão de transformações que não cessamos de ver em Mundo Incrível Remix.

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Ao mesmo tempo em que há essas formas (por exemplo, o que une o olho ao globo terrestre, num corte no eixo cuja mudança de escala é radical), existem também os processos de mutação, as metamorfoses. O filme oscila entre esses dois regimes: da mudança imediata – pela associação plástica das formas – e da ação das transições – numa espécie de ritualística que libera a energia de entrada em outro estado ou elemento. Nesse segundo formato, é notável o uso de canções pop. Um exemplo é a sequência do casal mais velho, em que uma situação prosaica de ver vídeos de viagem no notebook se torna a irrupção de um amor insuspeito na cena, marcado pelos zooms em cada um dos rostos. Daí, dessa espécie singular de ritualística, abre-se a passagem para outro espaço dessa linha geral, que nesse caso será a das imagens do casal em viagens e dançando. A música pop tem um aspecto religioso como matéria dessas transformações que são o mundo, desse contexto de partilha que só existe como repetição, como o mesmo, no sentido de massificação mas também de missificação. A dimensão religiosa é um dado essencial aqui, como imagem e motor ficcional. A tartaruga Binha é a última reencarnação de Jesus na terra, nos diz o filme em voz over, e a montagem que enumera os santos no altar a insere numa série da qual não podemos duvidar. Vistas da mesma altura, sob o áudio de uma reza, numa mesma escala, nada faz duvidar que a anciã Binha é um santo em seu movimento e exuberância de traços.

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Boa parte dos planos do filme tem como função aquela que é a tarefa primeira do cinema: registrar, ver a forma e, se possível, o movimento das coisas. Já que falamos aqui de um filme de família, é natural que o desejo que forma essas imagens seja justamente o de fazer durar, de fazer lembrar no futuro, e para isso é preciso gravar essa existência das coisas no tempo, capturar o divino manifestado nas coisas. Porém, esta via lumièriana, essencial para o filme, não o torna um inventário, uma coleção de coisas. Pelo contrário, é quase como se ele, pelo mecanismo das transformações e operações de continuidade (raccord, manutenção do mesmo som no plano seguinte), mostrasse somente o “um”, o mesmo, encarnado em cada coisa diferente que o filme mostra. Daí sua face mitológica. É da criação que se trata aqui: ritual, nascimento, matéria, e assim tudo segue. O cosmos está na máquina de lavar.

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Não só da variação de elementos o filme é feito, mas da alternância de climas. Convivem a comédia romântica, o filme de família, o de suspense, o blockbuster de ação, o de fluxo contemplativo, em diferentes estratégias de encenação que vão se encadeando com estranha naturalidade. A fala espontânea do primeiro jantar convive com a empostação da voz e dos corpos na imagem do casal dos pais com o cachorro nos braços, como a fala nonsense convive com o papo intimista do casal através da tela do computador. Pois a imagem é o elo aqui: ela junta, ela deve ser vista junto, ela gera em si uniões e nascimentos. Nada é falso nesse mundo, portanto, se o que está próximo (família, imagem seguinte, imagem anterior, vizinhança…) pode se trasformar no sobrenatural (religião, efeitos especiais), é porque o filme consegue encontrar essas linhas que atravessam esses mundos com naturalidade. É da criação que se trata aqui, da criação de imagens e da combinação delas.

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A crença não está no título à toa. Ela é a condição religiosa com a qual toda relação com uma imagem está implicada. Só crendo que aquilo existe eu posso acessar essa verdade da combinação dos signos que gera o milagre, isto é, o nascimento. A qualidade cíclica do filme é essa que compõe um trajeto de fases e passagens, essa impossibilidade da elipse: tudo precisa acontecer na tela, sob esse dedicado materialismo da visibilidade do mundo. A questão é justamente a habilidade com que o filme faz os links sem lhes conferir hierarquias. Nessa imodesta cosmogonia, de pais e filhos, o que importa é justamente fazer crer, manter a intensidade das ligações pela imagem e pelos artifícios de cena: zoom, subida de som, plano e contraplano, raccords, computação gráfica e trucagens em geral. Fazer existir é a tarefa da criação, dar forma.

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Entretanto, o papel dos humanos e suas narrativas na indiferente linha do mundo, que não cessa de tranformar cada coisa em outra, é essencial como produtor de imagens, e, assim, como criador dessas possibilidades de passagem. A celebração do pop é da ordem da sagrada elevação barata, mundana, do milagre banalizado porque contínuo – pois é o contrário da exceção, é a regra. Remixar é recombinar os elementos da origem e gerar esse novo relativo, aquilo que se torna novo, porque gera nova experiência através da composição de suas formas. Assim, a ideia de natureza, tão recorrente na retórica contemporânea (ecologia, religião, psicologia, cinema), ganha aqui uma inflexão bastante incomum e sólida. Como analogia para o próprio montar-se do filme, ela é esse conjunto de operações de elementos heterogêneos, cuja continuidade se dá ou pela aparência ou pelo ritmo – qualidades formais, então. A essência desse mundo plano é as superfícies e não os núcleos (a superfície da tela é trazida à tona algumas vezes no filme, como no banho da tartaruga e na porção onírica que divide o filme ao meio). Sua originalidade está justamente na força da invenção de um sistema de ligações em que falta justamente a origem, e assim, afinal, se constitui essa crença no que se vê – a prece muda do cinema.   

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