Da arte do constrangimento ou O cosmopolitismo venceu

Uma questão de arquitetura O mais fascinante da arquitetura é que o que ela determina nos modos de vida, o faz quase sempre muito sorrateiramente. Não em princípio. Primeiro se impõe de forma abrupta: demole-se um morro, abre-se uma avenida, eleva-se um prédio. Os barulhos da obra atrapalham. Mas aos poucos tudo isso se naturaliza, até que suas determinantes funcionais são esquecidas. Elas tendem à amnésia, mas continuam estabelecendo um mundo. E mais: lembrar sua raison d’être não promove mudança nenhuma. O que leva a… CONTINUA

A natureza e outras epidemias: um olhar sobre A Peste em Florença

É provável que ninguém nos anos 1910 tenha demonstrado tanta obsessão por encontrar uma fórmula de sucesso para o cinema alemão quanto o produtor Eric Pommer. Mergulhando na tradição dos films d’art italianos e dos melodramas nórdicos que haviam elevado o status do cinema ao das altas artes, Pommer acabaria por descobrir na feérie dos contos góticos mais populares da época a ‘fagulha germânica’ que faltava para vender bem lá fora os seus filmes. O resultado acabado desta investigação – aquele que fez o cinema… CONTINUA

Visões do inferno – a força política das imagens de Mojica

Assim como existe o marxismo vulgar (aquele que, sem nenhum esforço dialético, reduz a produção sensível às condições materiais e faz de toda arte um mero produto de sua época), há também o politicismo vulgar. Isto é, aquele que automatiza a relação entre uma representação e os efeitos políticos de uma obra de arte, como se ver algo retratado no cinema – uma imagem, um discurso, uma ideologia – fosse sinônimo de transformar-se neste algo que se vê, independentemente, inclusive, da forma como se vê.… CONTINUA

Ninguém solta a mão de ninguém

O nordeste sertanejo de Bacurau faz remissão ao retrato da região feito por alguns cineastas pernambucanos no pós-retomada. Ele é espaço de confluência entre a tradição e a modernidade (um cortejo de enterro ao som da guitarra elétrica amplificada). Tem como ponto turístico o museu, mas tem wi-fi aberto e localização no Google Earth. Se um O Céu de Suely fazia do calor vencido pela geladeira um dos signos de transformação desta geografia durante a Era Lula – uma paleta de cor vívida e brilhante… CONTINUA

Marvel e o Destino Manifesto

Não é apenas que Vingadores: Ultimato ocupou uma obtusa porcentagem das salas exibidoras do país. Não é questão meramente socioeconômica, embora também o seja: o histórico semicolonial do setor de exibição dificulta o acesso da produção nacional, e o enfraquecimento do sistema legislativo das cotas, historicamente, contribui à retração do próprio empresariado cinematográfico (que produz, mas não exibe). É naíve pensar que isto seja uma reação natural do mercado, ou a predileção do público por esta ou aquela forma, estilo ou obra cinematográfica, pois é… CONTINUA

As culpas dos velhos e os erros dos novos

As inflexões mais cômicas de A Mula fazem-se evidentes nos momentos em que seu tema principal salta à vista: o descompasso entre as imagens preconcebidas que fazemos de alguém ou de algo, com os devidos papéis e lugares que estas devem ocupar no mundo, e sua materialidade ou existência objetiva que frequentemente as desloca. Um exemplo ilustrativo – o agente Colin Bates (Bradley Cooper) sabe que o traficante que procura na estrada dirige uma pick-up preta; ele passa por diversos carros como este, observando e… CONTINUA

Entre a revolta e a psicopatia

A começar pelo fim: há algo de inconclusivo no esfaqueamento levado à cabo pelo protagonista de Em Chamas. Não há uma preparação anterior que o anuncie, um barril de pólvora que desenhe uma insustentabilidade exaustiva das relações dramáticas ou sociais em jogo. Chegamos, com certa naturalidade, ao ponto limítrofe, onde a saída viável e moralmente aceitável, na cabeça do protagonista, é a eliminação solene do adversário, sem haver uma tensão irrevogável delineada na dramaturgia que não uma sutil desconfiança que ele possa ser o culpado… CONTINUA

Contraplanos

Há algo de incongruente e simplista na cobrança que os bastiões da moral e cívica possam fazer de que haja em Desvio uma representação mais politicamente branda do processo de indulto, ao mostrar o protagonista Pedro (Daniel Porpino) participando de um assalto a um banco – até parece que o detento deveria ir festejar o natal com a família, e depois voltar para a cela sem maiores complicações (como pede a polícia), plenamente redimido, seguindo as prescrições do Código Hays, de uma novela da Rede… CONTINUA

Quatro notas sobre “Limite”

1. Limite é uma resposta indireta ao espectro ideológico que pôs fim à República Velha e trouxe à cena o desenvolvimentismo e o trabalhismo. Uma mulher sai da cadeia e retorna à cadeia no mundo do trabalho – a máquina de costura toma a forma da roda de trem. Os signos do progresso se espalham, povoando o passado dos três personagens à deriva no mar de fogo. O limite é a distopia do progresso, a constatação de que estamos presos à onipotência da natureza e… CONTINUA

Deixa eu pintar o meu nariz

Qual a natureza desta sensibilidade que surge do nosso olhar demorado sobre rostos cansados, maquiagens e adereços exagerados, cobrindo-lhes como procurando dar cor ou vida ao que parece sucumbindo à exaustão; corpos brutos enfurnados entre paredes carcomidas, mas cobertas por um véu rosa-choque translúcido e brilhante, coloridos por luzes como as das árvores de natal e embalados por músicas pops e bregas? Estes rostos andróginos, cheios de rugas, vestindo-se como personagens dos mais clássicos filmes ou cosplay de super-heróis norte-americanos, como que vivendo a ressaca… CONTINUA