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Da arte do constrangimento ou O cosmopolitismo venceu

Uma questão de arquitetura

O mais fascinante da arquitetura é que o que ela determina nos modos de vida, o faz quase sempre muito sorrateiramente. Não em princípio. Primeiro se impõe de forma abrupta: demole-se um morro, abre-se uma avenida, eleva-se um prédio. Os barulhos da obra atrapalham. Mas aos poucos tudo isso se naturaliza, até que suas determinantes funcionais são esquecidas. Elas tendem à amnésia, mas continuam estabelecendo um mundo. E mais: lembrar sua raison d’être não promove mudança nenhuma. O que leva a seu outro elemento de encanto: sua inflexões são bem materiais. Nada é nunca apenas da ordem discursiva. As idéias que a fundamentam podem ser utópicas – sonhadas, imaginadas -, podem ter propósitos específicos, mas é o concreto (ou sua ausência) que exercerá ou não um efeito de muro no mundo. Tratam-se de escolhas simples – por onde passar o corredor e como circulará o vento no apartamento – , mas é nelas que se constroem as paisagens que o morador terá de olhar todo dia depois de acordar (é claro, ele pode sempre dormir na varanda, no sofá, ou no chão da cozinha). Não se trata de pragmatismo, mas de materialidade. Amnésia e materialidade. O problema atual do cosmopolitismo na arte brasileira tem muito a ver com essas duas coisas.

Não é necessária sequer uma leitura sintomática de Que Horas Ela Volta? (Anna Muylaert, 2015) para perceber que este é um filme sobre arquitetura. Jéssica (Camila Márdila) presta vestibular para a FAU. O patrão (Lourenço Mutarelli) a leva para visitar o edifício Copan. Algumas vezes, como que en passant, a jovem protagonista caracteriza os espaços como ”modernistas”. Arquitetura, também, em outro sentido: como divisão social dos espaços, suas liberdades e proibições. Os espaços que a doméstica Val (Regina Casé) pode e não pode frequentar na casa dos patrões. As distâncias entre a sala e a cozinha, estabelecidas pela patroa (Karine Telles), como o neo-apartheid de origens remotas entre mucamas e senhores, casa grande e senzala; mas agora sem o racismo manifesto, e sim com as ‘boas maneiras’ veladas de um país que se finge democrata. Arquitetura naturalizada. E, enfim, o elemento disjuntivo – Jéssica – que não compactua com as boas maneiras e perturba o trato secreto que mantém a tradição. O título remete ao tempo, mas o filme é sobre o espaço. Essa contradição é importante. Pois bem, tudo isso fala sobre arquitetura. Mas é ainda pouco.

O cinema produz arquiteturas mais do que as retrata ou ilustra os prédios prontos do mundo. Ele o faz através da moldura do quadro, na forma como faz os objetos habitarem seus espaços; em como separa ou reúne o fundo e o proscênio, como estabelece conexões na profundidade de campo ou forças de atenção na imagem, nas linhas de fuga e nos muitos deslocamentos dos seus elementos; na maneira através da qual a montagem aproxima ou afasta as coisas, o cinema produz suas junções e divisões. Tudo isso, é claro, é muito óbvio e um pouco enfadonho. Talvez porque demasiadamente material, também seja natural que esqueçamos que tipo de visibilidades e invisibilidades essas escolhas produzem, onde certos interesses de construção terminam por repercutir. É aqui que o assunto começa.

Naturalismo cruel, constrangimento do prosaico

Perguntamo-nos muito pouco sobre o prazer e a estrutura do prazer almejadas por um filme. Em texto para a Folha de São Paulo de 2003, Fernão Pessoa Ramos chamou atenção sobre como havia, em filmes-chaves do cinema da retomada, uma satisfação e catarse espectatorial bastante específica, desenvolvida por estratégias cinematográficas que exploravam uma representação acentuadamente negativa de aspectos da vida social brasileira. A câmera-na-mão, herança malograda do cinema novo, se demorava numa representação ”nua e crua” das mazelas do subdesenvolvimento: por exemplo, na maneira como quedamos a olhar dois moradores de rua a catar restos de comida de um restaurante, ou um outro que dorme enquanto sobre ele escorre uma cloaca de mijo, no começo de Cronicamente Inviável (Sérgio Bianchi, 2000). Essa ordem de representação que o autor denomina naturalista cruel operava na dupla-chave povo idealizado / estado incompetente. De um lado, o movimento de evidência do país como sórdido e eternamente padrasto, a exasperação dramática evidenciada por uma câmera demasiadamente próxima e observadora, tão excessivamente que a mera motivação realista não poderia justificar senão o desejo de fazer dessa miséria mesma sua mais-valia. Do outro, um movimento de redenção pela piedade humanista. No fundo, uma má consciência que expurgava a violência crônica através da iniciação individual à vida do povo (como em Central do Brasil), duas faces da mesma moeda. No mecanismo estético do naturalismo cruel, o ”narcisismo às avessas” rodriguiano encontrava sua forma máxima de expressão, pois (diferentemente do que pregava Glauber), a instância narradora era sempre um ”outro” em relação ao Brasil inveterado, que garantia a minha superioridade (do narrador, do espectador) em relação a ele. Porque reconhecemos o esgoto no qual estamos afundados, já saímos dele; ele é o Outro do qual sou estrangeiro, que não quero ser e que ironizo.

A crítica de Fernão Ramos é datada, no sentido de que se refere a um conjunto de obras de um determinado período histórico, mas também no sentido da própria crítica como acontecimento histórico. Daí é sintomático que tanto esse, quanto o canônico texto de Ivana Bentes sobre a Cosmética da Fome, surjam já quando um Brasil em vias de mudança bate à porta. Já parecia possível se vislumbrar uma nação diferente e, por isso, fazia-se mister derrubar as antigas interpretações dela. Não se trata aqui de pontuar continuidades ou heranças do período histórico anterior (vide Da cosmética da fome à gentrificação da violência, de Victor Guimarães), mas de postular certas inversões de padrão que produzem semelhantes efeitos.

Há algo em comum na ”disputa por sorvete” de Que Horas Ela Volta?, na reunião entre condôminos e o porteiro voyeur de O Som ao Redor (Kléber Mendonça Filho, 2012) ou no assunto tabu das cotas raciais no churrasco de Casa Grande (Fellipe Gamarano Barbosa, 2014), por exemplo, embora os filmes abordem tais coisas sob pontos de vista muito diferentes. Outros filmes, sobretudo da primeira metade da década passada, que obtiveram menos ecos que esses, poderiam ser enumerados na mesma equação das simples conversas à mesa de jantar que expõem frágeis roturas. O que o olhar da câmera se debruça sobre, naquilo que se demora e se deleita, e onde procura produzir um regozijo espectatorial é nas tensões sociais ocultadas por um manto de cotidiano apaziguado na convivência entre classes; ao invés do exploitation da miséria que marcava o naturalismo cruel, o dos constrangimentos microscópicos de uma elite hipócrita que se vê inexoravelmente ”aproximada” do popular neste novo Brasil. Contra a câmera-na-mão asfixiante, o tableaux distanciado, distendido, que demora-se vagarosamente nas ocasiões mais prosaicas do dia-a-dia onde esse choque atenuado produz enorme e velado constrangimento. A mise-en-scéne desse constranger é a própria ferramenta estética.

A primeira aparição de Jéssica na casa dos patrões em Que Horas Ela Volta? é ilustrativa: num longo tableaux do jantar da família, a patroa, o marido e o filho estão imersos nos seus celulares até que surge Val com a filha. Há poucos elementos sonoros ou outras formas de distração que possam tirar a atenção da dinâmica da dramaturgia, em tom bastante naturalista. Val apresenta Jéssica e a família se levanta para a recepção. Uma piada ligeira do filho sobre o sotaque produz um meio sorriso desgostoso na menina, mas passa incólume. Passaremos a uma série de contra-planos fechados, ainda em torno da mesa de jantar, quando começam a falar sobre o vestibular, a vontade da menina de cursar arquitetura, o inquérito dos patrões sobre as dificuldades de fazê-lo vindo de uma escola ruim… A câmera se demora num estudo das reações, nos silêncios incômodos gerados pelos indícios de intrusão da jovem nordestina nos espaços destinados à elite, nos elogios sem graça da patroa cujos olhos não conseguem trair o fato de que enxerga nela uma adversária. Essas tensões latentes jamais vêm a tona – no fim, tudo volta ao estatuto da normalidade –, mas são o suficiente para produzir uma certa inquietação da qual o filme se alimenta e na qual se sustenta, movendo a narrativa pela repetição sistemática de situações como esta. Uma espécie de escopofilia do constrangimento prosaico.

Essa é a mais-valia almejada por essa filmografia mencionada, às vezes mais bem sucedida, outras não. É como se o Brasil neoliberal e centrista houvesse estabelecido um enorme esfriamento de certas tensões que pautaram a nova democracia, aventado um modo de vida burguês nas mais diversas camadas sociais e espaços; mas que, pela própria natureza da conciliação de classes, precisasse conviver o tempo todo com a possível rachadura do pacto; com o possível chocar do ovo. Isso porque a democracia de fachada não teria eliminado nossas tensões originárias (raciais, sociais, geográficas, masculinas/femininas), e sim a disfarçou sob outras roupagens. Contudo, se há um deslocamento das formas de produção da catarse e prazer escopofílico, isso implica também em uma mudança da instância narradora e do lugar do narcisismo espectatorial: deleita-se agora com o constrangimento sem ruptura, o confronto na ordem simbólica, a vergonha da madame precisar reconhecer sua antipatia diante da ”petulância” da filha da empregada que tensiona limites de classe em prosaicos objetos que adquirem uma carga de significado maior do que eles têm (o sorvete, a xícara, a piscina), sem jamais promover ruptura absoluta entre a co-dependência das distâncias sociais. O mecanismo compensatório aqui segue às avessas, e o prazer irônico é no fundo baseado no tesão da tensão, sem desmoronamento da ordem. O drama é do outro. Não é à toa que o filme precisará, ao final, abandonar suas duas protagonistas ao léu. Serviu-se delas, e aquilo ali foi o suficiente.

Voyeurismo Envergonhado

Que horas ela volta? faz uso particular de algumas estratégias de composição e montagem para delimitar suas áreas e produzir esse constrangimento: com frequência, recorre às molduras internas nos tableaux que, através de portas ou janelas recortadas, expandem, pela profundidade de campo, um ambiente no outro, produzindo um espaço virtualmente contínuo, mas socialmente segregado (por exemplo., quando Jéssica almoça com o patrão na sala, e a dramaturgia introduz um jogo de mobilidade da doméstica entre cozinha e sala; ou quando Jéssica vai embora de malas, e a profundidade organiza a fofoca da patroa com sua amiga no primeiro plano, e o marido lhe oferencendo dinheiro ao fundo); outras vezes, o plano fixo emoldura um espaço e permite, através das suas múltiplas aberturas, entradas e saídas dos atores em cena, colidindo-os numa mesma situação (por exemplo, quando Jéssica é ”pega” pela patroa comendo sorvete na cozinha ou na já mencionada apresentação da moça à família).

Mas talvez mais importante seja a forma como o filme equaliza temporalidades diferentes num só espaço, produzindo constrangimento através do paralelismo dos pontos-de-vista sobre um mesmo acontecimento prazeroso. A decupagem alternada na cena em que Fabinho (Michel Joelsas) joga Jéssica na piscina é ilustrativa. Começamos com um tableaux onde Val explica o protocolo da proibição, até que um breve reenquadramento introduz, vindo do fundo do plano e pela porta da casa, o jovem e seu amigo. Uma série de planos médios e fechados acompanham os rapazes mergulhando e convidando a menina, que, contrariada, responde seguindo o script da mãe, “tenho maiô não”. Mas a proibição se torna tentação: enquanto Val sai de cena para recepcionar a patroa que acabou de sofrer um acidente, os dois rapazes jogam Jéssica na piscina. Uma montagem de imagens em câmera lenta revela o prazer sentido por ela e a diversão dos meninos jogando bola. Então, a cena armará um paralelismo entre espaços e presenças contíguas – o quarto, a varanda, a beirada da piscina, e a piscina – onde Val, Barbara (Karine Telles) e Carlos entoam suas proibições, e a câmera passa a se deter menos sobre o prazer sentido por ela, e mais no voyeurismo constrangido dos três adultos, ultrajados, ciumentos, frustrados com o prazer alheio e envergonhados.

O jogo do voyeurismo nesta cena se alastra também pelo restante do filme, e é um repeteco às avessas de certos mecanismos que a pornochanchada explorou exaustivamente. À título de comparação, uma cena semelhante se desenrola em Giselle (Victor di Mello, 1980), quando, ao som de uma flautinha soprando a melodia de “Let it be”, uma protagonista disruptiva do patriarcado e das estruturas familiares rígidas transa na cachoeira. Com tesão, uma outra personagem esfrega as mãos numa árvore enquanto observa. Lá, essa espécie de prazer contra a interdição é transgressora, e observa-se o desejo silencioso que ele promove no observador escondido, uma mulher mais ”certinha” que ocupa o lugar espectatorial e vê no sexo alheio a válvula de escape de suas repressões; estas, ditadas pela moralidade do regime militar. Aqui, ela será protestada pelos voyeurs, e promoverá, no limite, vergonha e constrangimento nos outros (sem saber o que falar, o pai grita que ela pegará um resfriado, em pleno sol) com a necessidade de interditar o prazer dos jovens. É menos a sutura do prazer interdito e mais o regozijo de desnudar a proibição velada. Isso, é claro, tem tudo a ver com arquitetura.

Sobre Que Horas Ela Volta?, José Geraldo Couto teve razão ao afirmar que “tudo, no fundo, é uma questão de arquitetura”, mas não levou as consequências dessa afirmação longe o bastante. O longa-metragem de Anna Muylaert não apenas cita os “arquitetos comunistas, que apostavam, ao menos em tese, na utopia dos espaços livres e igualitários, na abolição das barreiras e hierarquias sociais”, mas emula, na arquitetura do olhar, as mesmas prescrições que eles (a planta livre, a fim de garantir integração espacial e livre circulação). Só que, se ir da cozinha à sala não exige muito mais do que dar um único passo para dentro do quadro, existe uma lei não-dita dos preconceitos de classe (eventualmente proferida, não sem constrangimento, pela madame) que o vetam. De um lado, o espaço-livre virtualmente contínuo. Do outro, a proibição não-física, social, que, por um sistema de culpas e papéis, determina quem anda onde. Como nos burgueses de O Anjo Exterminador (Luis Buñuel, 1962), que podem mas não conseguem sair da sala de jantar. Pondo em cena esse binômio espaço-livre/segregação social, o longa-metragem produz esse constrangimento (fundamental às suas estruturas de prazer) por via da mobilidade da moça nordestina que opta por confrontar as coibições que lhe são impostas. Mas vale ainda se perguntar como e por quê Jéssica o faz, e qual a natureza deste confronto. Quem é essa menina e o que representa, afinal? Porque Jéssica não é Giselle (e a verdade é que não lhe faltaram oportunidades para ser, mas, infelizmente, quem dá atenção às pornochanchadas hoje em dia?). E também não é Maria Gladys ou Helena Ignez.

Do Nordeste a São Paulo, ainda

Em recente texto, João Pedro Faro descreve como o “desfile mórbido e celebratório das domésticas livres” em Cuidado Madame (Julio Bressane, 1970) é, no fundo, uma grande carnavalização do espaço público, uma “livre ocupação” urbana. Mas, para que a passagem do morro à praia possa acontecer, é necessário o “homicídio avacalhador”; o gesto de transgressão que rompe as fortificações simbólicas. É também uma questão de arquitetura (ou urbanismo), e embora estejamos falando do Rio de Janeiro, e não de São Paulo, vale mencionar que o rito de passagem é antes de tudo mediado por um gesto violento: a doméstica assassina a patroa. É claro que uma violência performática e de desbunde pouco condiziria com a sobriedade do estilo naturalista de Que Horas Ela Volta?, mas talvez seja o caso de inverter a questão e constatar que é Jéssica e sua tímida ação de confronto que servem às estruturas de prazer almejadas pelo filme.

A questão de classes em Que Horas Ela Volta? é subordinada a um confronto geracional, até mais importante para o filme, no plano temático, do que o confronto doméstica-patroa. Val é fruto de uma geração que foi do Nordeste a São Paulo num momento anterior (esse momento não é especificado; o filme não o localiza), repercutindo o modelo migratório da ideologia progressista da ditadura militar, que, desde o seu dito ”milagre economico” empurrou os nordestinos para longe de casa, forçando-os a certas subcondições de vida nas metrópoles urbanas, uma realidade escancarada em muitos filmes de migração na primeira metade dos anos 1980 (O Homem que virou suco, de João Batista de Andrade; Marvada Carne, de André Klotzel; Noites Paraguayas, de Aloysio Raulino; A Hora da Estrela, de Suzana Amaral; Na Estrada da Vida, de Nelson Pereira dos Santos, etc…). Já Jéssica, filha dela, tem o mesmo destino quando adulta, mas para prestar vestibular. A perspectiva delas sobre o seu lugar no mundo é muito distinta, e é entre mãe e filha que se estabelece o principal eixo conflituoso, na forma como ambas lidam com a subalternidade.

Entre esses dois momentos, o que mudou? Foi o país? Embora, a certa altura, a patroa Barbara comente que sim, não há nada no filme que nos faça supor uma diferença estrutural. O Estado é um grande ausente. Jéssica não foi beneficiada por nenhum programa ou cota. É exemplar de uma vitória meritocrata; estudou mais, se dedicou mais, contra tudo e contra todos, apesar de declaradamente vir de uma péssima escola. Sua politização (que determina sua insubordinação, tanto quanto o seu sucesso) é atribuída ao esforço casual de um único professor, também contra as condições estruturais, em um colégio da sua cidade natal. Ela chega onde chegou graças às próprias pernas. E, por fim, ela também precisa migrar para adquirir uma boa condição superior, como se isso fosse impossível em outro lugar que não São Paulo; no Brasil de Que Horas Ela Volta, também o movimento de descentralização do ensino universitário não parece ter ainda acontecido – o país progressista e centralizador permanece o mesmo. É por isso que, conquanto pareça protótipo, Jéssica é mais exceção idealizada que regra. Sua diferença em relação a Val tem a ver com autoestima e reconhecimento de classes. É uma mudança de atitude, no comportamento de insubordinação – mas não estrutural, e sim individual. O binômio Estado inoperante/povo idealizado segue, em alguma medida, atuante.

Na prática, o destino de Jéssica replica o abandono parental de Val. Há muita coisa nesse pequeno detalhe, mas não é à toa que o título faz referência a ele. A atualização da herança escravocrata teria reproduzido as formas de dominação e segregação, mas também o oco afetivo das relações aristocráticas-européias. E nesse sentido, Que Horas Ela Volta? é acima de tudo um filme sobre transferências afetivas. O mundo que a família rica habita produz distância (este mesmo mundo da arquitetura modernista também!); todos sentam à mesa de jantar e imergem nos celulares. Não encontrando formas de afeto na mãe, o filho se volta à doméstica para preencher o espaço vazio da maternidade (como o marido se voltará à filha dela atrás do desejo). Mas, para ocupar esse espaço, Val precisará produzir um outro abandono, o da própria filha; São Paulo a convoca para cobrir seus buracos. Um abandono que ela, por sua vez, replicará, com o próprio filho, quando vem a sua vez de migrar. É um jogo das cadeiras, onde a maternidade acaba sempre exercida por terceiros.

Há ainda um outro abandono menos justificado: aquele do filme com suas protagonistas. Ao cabo, Val se sensibiliza com a filha, perde o filho postiço para a Austrália, e termina por pedir demissão. Sua solução redentora é ir morar com a filha na comunidade e reconstituírem, lá, a família originária. Como sobreviverão nas margens da metrópole? Como sustentarão o filho sem empregos? O final fica em aberto, mas esta constatação não pode ser tomada como fechamento. O que devemos depreender da ausência de justificativas materiais, que não a desimportância que o longa-metragem dá a elas e às condições factuais (e não apenas afetivas) das domésticas? Nesse sentido, até mesmo as moneychanchadas baratas de Santucci foram mais sensíveis à ascensão da “classe C”. Fosse um longa-metragem do período da retomada, poderíamos nos afligir e tomar como denúncia, mas como pensar esse quimérico tom otimista, senão como um descarte, senão como a assertiva inconsciente de que Jéssica já cumpriu seu papel ao arranhar a superfície do ovo e ser ferramenta do tipo de prazer do qual Que Horas Ela Volta? se alimenta – um prazer, no fundo, muito elitista, que não quer que nada, nada de estrutural realmente se transforme; sem produzir desestruturas familiares (Giselle), violências transgressoras (Gladys, Ignez), revanches históricas (Anjo da Noite, de Walter Hugo Khouri), ou mesmo uma ameaçadora inversão de papéis (o Miklos de O Invasor, ou o Barrett, de O Criado, de Losey). O que Jéssica faz é, então, até bastante comportado, e até um tanto suicida. Mas ao menos podemos aplaudi-la, elogiar sua dignidade, e assim nos sentirmos um pouco melhor conosco mesmos.

À pergunta da filha sobre quando a mãe retornará, o filme nos dá uma resposta bem direta: nunca. Nordeste, jamais. O filho que venha para São Paulo. A cidade moderna e seus arranha-céus, mito das oportunidades que José Medina ironizava em 1929 (Fragmentos da Vida) foi tão naturalizada, mas tão naturalizada, que Anna Muylaert parece não se importar em filmar a comunidade pobre do mesmo jeito que filma o edifício Copan – da janela ou da varanda, o mundo como cenário apartado. Entre estes dois filmes talvez esteja toda a história do cosmopolitismo brasileiro, sua fundação, naturalização e disfarce, até mesmo entre as camadas da esquerda. É irônico que Jéssica estime os modernistas e suas formas. Os admire. Até mesmo queira eventualmente reproduzir a eles e a suas múltiplas formas de abandono, quando chegar sua vez de cursar a FAU. É uma questão de arquitetura. Que a ideologia do progresso no Brasil caminhou de mãos dadas com o modernismo e a utopia dos tais comunistas é mais que fato sabido. O mesmo ideário que produziu o Copan ou a FAU também produziu a Barra da Tijuca ou Brasília, dentre outros conjuntos habitacionais e elefantes brancos que adoram produzir deslocamentos forçados, espaços vazios de afeto, e se utilizar do mais antigo escravismo como eterna forma de transferência. Por que ainda querer replicá-los? Parece que São Paulo venceu. O cosmopolitismo venceu.


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