Não sou Ana Cristina César, mas vejo nos filmes de outra A(n)na, a Muylaert, uma ótima oportunidade de “puxarmos significantes”. Durante muito tempo, ainda teremos a discussão sobre Que Horas Ela Volta? (2015) ser um libelo do período de certa utopia distópica vivida pelo Brasil nos últimos 14 anos, ou o registro de uma intrincada composição de seres humanos perplexos e assombrados, em busca de um sentido para a vida. Entre a ideologia e a psicologia, o espectador, ao ser assistido pelo filme, também revela-se.
Mãe Só Há Uma oferece novamente essa dialética entre o que parece excessivamente politizado – vamos evitar o vaticínio “engajado” – e o que o tempo transformará em estudo da solidão humana. Curioso que encaixando personagens em lutas de classes – a doméstica, o pobre, o rico, o transgênero – a maioria dos críticos não perceba que são, antes de tudo, figuras solitárias em busca da alteridade. Nos anos 1960 e 1970, Xavier de Oliveira resolveu melhor esse problema: o garoto copacabanense de classe média (Marcelo Zona Sul, 1967), o homem trintão, atormentado (O Vampiro de Copacabana, 1976) e as miríades de coadjuvantes que carregavam, se encaixariam perfeitamente bem no cinema de Muylaert. A diferença é que Xavier nunca acoplou aos seus preciosos tipos um discurso de atualidade mobilizadora, engagée (pronto, não evitamos). Pagou com isso o preço de ser ignorado, esquecido e desenturmado. Quem nunca serviu a nenhum Deus não tem uma religião para defendê-lo. Muylaert é mais hábil, mais consciente (?) e aceita de bom grado, até promove, associações entre filmes e questões políticas. Resta um consolo: seu trabalho sobrevive a essa contingência, e justamente a sobrevivência interessa a nós.
Pierre (Naomi Nero) é também Felipe, roubado na maternidade, e precisa fugir desse duplo de alguma forma. Então cria um terceiro, a persona que usa vestido e maquiagem. A cena final, no boliche, chega às raias do didatismo: um adolescente se protegendo da dor última, que poderia levá-lo ao abismo. “Estranho dom: Deus deu-me todos os sexos”, revelava Lúcio Cardoso, cinquenta anos atrás. Sorte de Pierre/Felipe viver no século XXI, quando homens vestidos de mulher já não assustam como antigamente. Então é permitido a Pierre/Felipe habitar aquele limbo, sendo menos tolerado o desprezo que afeta pelos pais verdadeiros do que seu ensaio de transgênero. Igual a ele, temos muitos. É, por exemplo, o José Maria de Viagem Aos Seios de Duília (1964), que fugia das lembranças de juventude vestindo a carapaça cinza do funcionalismo público. Claro que Pierre/Felipe não tem as defesas sólidas de um sessentão e deixa evidente seu conflito: a mulher que o sequestrou, que estragou o seu destino, é também a única mulher que conhece. É a única mãe que verdadeiramente ama. Em Duília – tanto no conto de Aníbal Machado quanto no filme de Carlos Hugo Christensen – acompanhamos a desintegração mental de José Maria. Ele parte de volta para a cidade natal, quer rever o colo da amada que deixou para trás (não percebia que Duília era a morte). No filme de Muylaert, abandonamos Pierre/Felipe ainda em alvoroço. Ele quer, sim, ir atrás da mãe adotiva, que está na cadeia pelos malfeitos. Sabe-se lá por quê, a diretora congelou a história nesse momento, antes da defrontação. Talvez para deixar que o espectador a imagine. Talvez porque todo sofrimento último seja indizível e, portanto, é inútil demonstrá-lo.
Protegido de sua dor e apesar dela, Pierre/Felipe existe. É um homem bonito, bissexual ativo, quase uma força da natureza, como sói acontecer com os jovens de 17 anos. Não sentimos pena dele em momento algum – e isso graças à inteligência de Muylaert –, pois não aceita o papel de vítima. É proativo, dinâmico, provocador. Caso tivesse optado por centralizar a história na questão do roubo das crianças, teríamos facilmente uma sociochanchada ou um Linha Direta Justiça. Não é o caso. Pierre sai íntegro da casa pobre da mãe adotiva e vai para a casa rica da mãe verdadeira. Os fatos apenas riscam uma superfície evidente, que é a alteridade do rapaz. Não importa se existem culpados ou não, importa como Pierre/Felipe lida com aquela culpa de um crime que não cometeu.
Em volta dele, os coadjuvantes. A mãe verdadeira e a falsa são vividas pela mesma atriz (Dani Nefussi). Na versão vilã, impostora, não há maldade, apenas indiferença. A hora inevitável da verdade (seus filhos não são seus) chegará. Ou não, diria Caetano Veloso no Posto 9. A tensão entre o crime perfeito e o desmascaramento incorporou-se de tal forma à personalidade que, ao ser presa, ela promete voltar para fazer o jantar. É quase sebastianista, a criminosa. Não percebe que a promessa de um dia voltar é o maior dano que pode cometer aos filhos falsos que ama.
Entram em cena as famílias verdadeiras, feridas abertas, gritando de sofrimento e alívio. A mãe real de Pierre e a assistente social dizem que ele é Felipe. O que aquela nova mãe tem a oferecer, assim, de repente? Apenas conforto material. Nem ela acredita que a maternidade seja viável. O desconforto é evidente. O que está feito, está feito, palavras do Conselheiro Acácio, caberiam na psique dos envolvidos. Pierre estava feito, nunca seria Felipe novamente. Idem para a irmã, que é filha verdadeira de outra família. Transfere-se, notem, a dor dos pais para os filhos. São eles que passam a pagar o preço do imbróglio, cuja solução formal é desestruturante – uma pequena vinheta a ser estudada não só pelo cinema, ou pela psicologia. Também pelo Direito. No caso, a grande referência de Mãe Só Há Uma é o Caso Pedrinho, em que uma criança foi roubada da maternidade e, dezessete anos depois, sua mãe adotiva condenada por subtração de incapaz em Goiânia. Hoje radicado em Brasília, o jovem nunca se furtou a visitar a mãe espúria. E sua irmã, também levada do berço, preferiu continuar a viver com a mulher que a sequestrou. O simbólico é mais verdadeiro que o literal.
No caso da transgeneridade de Pierre/Felipe, o cinema brasileiro guarda uma referência curiosa: o hoje esquecido Vera (1986), direção de Sergio Toledo, baseado na história de Sandra Mara Herzer, a autora do livro em que parcialmente baseia-se o filme. Em seu tempo, Vera fez barulho, deu à atriz Ana Beatriz Nogueira, escolhida para viver o papel entre outras 300 candidatas, um Urso de Prata em Berlim e chocou os espectadores por tratar de um assunto que todos fingiam desconhecer. Vera – que gostaria de ser um homem, Bauer – havia passado a vida em um orfanato, onde desenvolveu todo o seu drama de inadequação. Entre Vera e Pierre há semelhanças, mas também diferenças brutais: Vera não tem dúvidas de que é Bauer, enquanto Pierre ainda não sabe por qual caminho prosseguir. Na cama, Vera tem vergonha de si mesma, quase pavor. Pierre é seguríssimo. De semelhante, ambos usam o transgênero como escudo, sem qualquer traço de impulso maligno ou perverso, para horror dos moralistas.
Lembro de uma cena belíssima de Club Sandwich (2014), filme mexicano, que assim como o venezuelano Pelo Malo (2013), servem de complemento ao brasileiro. Na cena, o adolescente Héctor experimenta o sutiã da mãe superprotetora, pouco antes de começar todo um movimento saudável, de buscar desvencilhar-se emocionalmente dela. Liberta-se do fusionamento psicótico deixando às claras que assume a ânsia.
Voltando a Mãe Só Há Uma, aparentemente Pierre tinha na falsa mãe um referencial poderoso, mas pouco sabemos do falso pai que um dia o criou e que é apenas lembrança em um porta-retratos. Estendida alguns minutos, a história ganharia se trabalhasse melhor aquelas figuras masculinas eclipsadas. Mesmo o novo pai, que se apresenta alegre e voluntarioso em um primeiro momento, não repercute o suficiente no mundo do rapaz. Parece querer apenas dominá-lo, moldá-lo. Sentir-se protegido por um Pai, como desenhou Freud, é necessidade primordial na infância. E para que serve um Pai que só nos aparece quando não precisamos mais dele? Mãe Só Há Uma perde ótima oportunidade de ilustrar essa questão, deixando o personagem de Matheus Nachtergaele à deriva.
Até que prove o contrário, o grande filme de Anna Muylaert continuará a ser Que Horas Ela Volta?. Lambuzou-se ali das melhores qualidades e defeitos que consegue produzir como artista. Quero crer em Muylaert, como acredito em Xavier de Oliveira – alguém que observa o ser humano acima de tudo. Pela própria defesa que estabelece diante do formalismo jurídico que lhe é imposto, Pierre/Felipe é um iconoclasta, não um estandarte de devoção. Os ricos também choram, sofrem bullying e sequestros de bebês. Quem quiser suportar isso com um discurso de militância ou um meme de Internet, ok, mas lembre que as telas do Facebook correm rápidas. No dia seguinte, ninguém precisa o que foi postado no anterior. Já as boas histórias sobrevivem, são um mundo ao qual podemos voltar. E onde, em consequência, as demandas importantes sempre resistem.
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