Variações a partir de um autorretrato da crítica brasileira

Uma lista do tipo “melhores filmes” é sempre um equilíbrio instável entre o diletantismo cinéfilo e algo mais ambicioso, que diz respeito à constituição de um cânone artístico. Mais ou menos espontânea, independente do método com o qual seja construída, uma lista é sempre uma intervenção no presente, em direção simultânea ao passado e ao futuro. Traça um recorte do passado artístico permeado por visibilidades e ausências, inevitavelmente atravessado por relações de poder e pela construção histórica do gosto, ao mesmo tempo em que vislumbra… CONTINUA

Refundar esta terra

Luz nos Trópicos é feito de imagens das mais variadas feições, escalas, texturas e tons. Um motivo visual, no entanto, salta aos olhos por sua recorrência. Um rio estreito e curvo, cercado de mato e encimado pelo céu espelhado na água, é adentrado por uma câmera serpenteante e calma, cuja marcha adiante encampa um movimento de descoberta. Seu oposto simétrico também retorna uma e outra vez: um rio turvo é percorrido por um barco que recua rapidamente, deixando para trás a água tumultuosa e a… CONTINUA

Masculinidades montadas em couro: fantasia e desejo no cinema de Daniel Nolasco

Uma das propostas mais instigantes do festival Olhar de Cinema de Curitiba é o eixo curatorial de sua Mostra Foco. Guiada pelo anseio de difundir no Brasil a filmografia de jovens diretores ainda pouco conhecidos por aqui, esta “retrospectiva precoce” já celebrou cineastas como Nathan Silver, Camila José Donoso e Matías Piñeiro. Em 2020, pela primeira vez, o festival optou por colocar seus holofotes em um cineasta brasileiro. O escolhido foi Daniel Nolasco que, em uma década de carreira, já construiu uma prolífica filmografia que… CONTINUA

Processos de amadurecimento

Ao propor a um grupo de crianças de uma escola na periferia de Paris a oportunidade de realização coletiva de um filme, Eric Baudelaire coloca para elas um obstáculo tanto conceitual quanto prático: o que realmente é um filme? Ou ainda: o que significa fazer um filme? As crianças passam por conversas de todo tipo no percurso de sua busca por possíveis conclusões, desde discussões sobre política, geografia, racismo até debates acalorados sobre o significado da palavra “origem”. O que aparece como resposta espontânea ao… CONTINUA

Reinventar o cotidiano

A sequência de abertura de Oroslan nos introduz de imediato a um elemento que se mostrará central para a compreensão da vida no pequeno vilarejo do qual a narrativa se aproxima: a rotina. Acompanhamos a produção e a distribuição matinal de marmitas, que são cuidadosamente entregues a várias casas. Vemos que todas as casas têm cestas ou ganchos preparados para o recebimento, e entendemos que se trata de um ritual cotidiano de longa data, de uma expressão do tempo daquele espaço, daquelas vidas. A sequência… CONTINUA

Essa maneira estranhamente esperançosa

[carta de Felipe André Silva para Pedro Maia de Brito, um dos diretores do filme] Pedro, no meu sonho de ontem o ano era 2030. Tentava te mandar um recado do futuro pra te dizer que nada mudou, nada melhorou, e nós não ficamos necessariamente mais fortes, mas voltamos a sonhar. Te lembrava, ainda que você já saiba disso, que nos últimos vinte anos tínhamos desaprendido os caminhos que levam a esse terreno onde tudo é possível, tudo é da lei, e às vezes, é… CONTINUA

Fronteiras do esquecimento

Um pouco filme de terror, um pouco suspense investigativo, um pouco drama e um pouco documentário, Pajeú é uma junção entre a tentativa de dar continuidade ao recente diálogo de um certo cinema brasileiro com as convenções de gêneros americanos e o desejo de se apoiar em operações documentais como estratégia para um diagnóstico político ilustrativo, imediato. A sequência de abertura nos revela o encontro de Maristela (Fátima Muniz), protagonista, com uma espécie de assombração, que logo entendemos ser a figura do monstro, iconografia característica dos… CONTINUA

A lata de lixo da história

1. Em meio a lapsos de alegria, crescimento econômico e arroubos de revolução, os anos 2000 e 2010 viram acontecer uma espécie de “cinema festivo” que celebrava, geralmente a partir de corpos jovens, energias relegadas a segundo plano por muitos anos. Talvez por seu caráter individual, talvez pela sua ingenuidade. Fato é que, por exemplo no Brasil, aconteceu uma movimentação interessante, cujos traços podem ser rastreados em vários lugares: na Universidade Federal Fluminense, de onde curtas como Hiperselva (Helena Lessa, Jorge Polo, Lucas Andrade e… CONTINUA

Um cinema da culpa?

Felipe André: É notável como se instaurou uma espécie de “cinema da culpa” nos círculos da produção cinematográfica mundo afora durante os últimos dez, talvez cinco anos. Criadores que não necessariamente teriam interesse em determinados assuntos ou pautas encontraram na possibilidade de falar sobre ou “oferecer voz” a corpos dissidentes um bom combo de autopromoção e mea-culpa. Para Onde Voam as Feiticeiras é um exemplo cabal: duas realizadoras brancas e um realizador branco reúnem um grupo heterogêneo de artistas e militantes para criar um happening… CONTINUA

Olho para o passado, corpo para o futuro

No nosso último editorial, publicado em abril, encerramos o texto falando da instabilidade da primeira pessoa do plural, um movimento do “nós”. Neste mesmo período, tivemos uma mudança na composição da editoria, pois Raul Arthuso deixou a revista, depois de trabalhar como editor desde 2016, primeiro com Fábio Andrade e depois sozinho. Seguimos agora com Ingá, Victor Guimarães e Juliano Gomes como núcleo de proposições, na tentativa de manter o rigor de olhar e de escrita consolidados na última década, mas buscando ampliar o leque… CONTINUA