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Processos de amadurecimento

Ao propor a um grupo de crianças de uma escola na periferia de Paris a oportunidade de realização coletiva de um filme, Eric Baudelaire coloca para elas um obstáculo tanto conceitual quanto prático: o que realmente é um filme? Ou ainda: o que significa fazer um filme? As crianças passam por conversas de todo tipo no percurso de sua busca por possíveis conclusões, desde discussões sobre política, geografia, racismo até debates acalorados sobre o significado da palavra “origem”. O que aparece como resposta espontânea ao problema, no entanto, é a relação do cinema com as suas convenções: a ideia de que para se formar a estrutura narrativa é preciso ter um herói, de que um documentário demanda entrevistas e explicações, de que a fotografia é o real e o cinema a mentira, de que um filme precisa ser dramático.

No decorrer da produção, as crianças se perguntam muitas vezes que filme é esse que estão fazendo. Qual é o tema? Qual é o objetivo? Qual é o gênero? Enquanto não encontram respostas suficientemente conclusivas, continuam gravando, continuam produzindo suas imagens. Em certo momento, uma criança comenta que o pedido do diretor era de que gravassem o seu cotidiano, o seu dia a dia. E se perguntam: mas o que meu cotidiano tem a ver com um filme? Nos processos de investigação, vemos registros dos mais variados: filme de terror, crônica, diário, entrevista documental. No fim das contas, a criação se dispersa por tantos formatos, por tantas convenções que já não se tem mais ideia do que poderia ser um filme capaz de etiquetar o conjunto, a bagunça. Seria ainda um filme?

Sem uma resposta, as crianças intuem que ali há no mínimo uma ótima oportunidade de experimentação, qualquer que seja o futuro disso. Elas continuam a explorar os mecanismos de criação do cinema, e realizam até mesmo produções sonoras para o filme, desde, por exemplo, o chacoalhar de casacos para simular o som do vento até a gravação sonora do mar para som ambiente. Em um dos momentos mais emocionais do filme, uma personagem, em uma estrutura de diário, confessa para a câmera a sua tristeza em se ver impossibilitada de continuar na produção, pois estaria prestes a ficar muito atarefada com as provas e não teria tempo para sair e gravar, e seu cotidiano tampouco seria interessante o suficiente, principalmente sob tais condições. Ela comenta que, apesar disso, gostaria de ainda poder participar de alguma forma, mesmo que não pudesse gravar; gostaria de poder ver o resultado, de se sentir parte do processo.

O que toma forma mais nitidamente a partir da paixão da personagem pelo projeto é a noção de que, antes de qualquer outra coisa, antes de qualquer convenção, formato, objetivo, gênero ou narrativa, aquele filme é sobretudo uma expressão da coletividade das crianças; uma expressão das amizades, dos interesses em comum, das diferenças, dos desejos, dos medos, das vivências; o filme é uma expressão tanto do que os une quanto do que os aparta, tanto do que eles são como grupo quanto do que eles são como indivíduos. Participar do filme àquela altura é menos “fazer um documentário”, “um filme de terror”, ou produzir qualquer formato ou convenção, do que descobrir e se descobrir a partir da criação coletiva.

O processo de busca por material fílmico os engaja profundamente nos cenários mais prosaicos do cotidiano, que é o que eles têm à disposição para produzir. A jornada passa por se interessar por entrevistar um vizinho, por registrar a feitura de um macarrão caseiro, por escutar o som do mar, por repensar os detalhes sonoros do vento, por capturar uma ida coletiva ao mercado, por encenar um filme de terror na escola sem medo de arriscar, por narrativizar um dia como qualquer outro em frente à televisão. O filme deixa de ser o horizonte que eles esperavam ou desejavam que fosse para ser simplesmente uma articulação das várias situações com as quais eles se deparam nesse desencontro. A tarefa passa a ser mostrar para aquelas crianças que tudo à volta delas é potencialmente importante, e que basta um olhar cuidadoso – e, quem sabe, talvez também uma câmera – para fazer de um pequeno detalhe o mundo inteiro.

O que faz a experiência criativa de Un Film Dramatique interessante, portanto, é exatamente o que dá o seu título: o encontro dos dramas. Em Exercícios de Estilo, Raymond Queneau, escritor francês, reconta uma mesma história, aparentemente banal, 99 vezes, empregando uma ampla variedade de estilos. Desse modo, Queneau materializa a maneira com que um mesmo drama poderia ter os mais variados ângulos, modulações, abordagens e formatos. Naturalmente, também poderiam se produzir incontáveis interpretações, sensações, impressões. Ainda que possamos dizer que essa concepção de multiplicidade semântica no caso de um relato ou de uma criação dificilmente é uma novidade, o que tornava a experiência de Queneau intrigante era a recepção que se poderia produzir a partir de uma história pelo acúmulo sequencial dessa expressão de multiplicidade semântica. Em outras palavras, não era sobre desbravar uma ideia tanto quanto sobre colocá-la à prova de uma maneira laboratorial. Com Eric Baudelaire, a questão é similar: não é uma única história como em Queneau, mas o desejo do filme é se utilizar da experiência de acúmulo para extrair de dramas aparentemente banais os mais variados sentidos e possibilidades.

Um dado importante é que o filme acompanha as crianças ao longo de quatro anos, de tal modo que o desenvolvimento dos dramas tem um teor não apenas narrativo como também literal de amadurecimento: elas crescem a partir deles e o filme a partir delas e com elas. Un Film Dramatique, logo, é um filme-processo que opera num degrau acima das premissas básicas do seu dispositivo. O horizonte não é o registro dos processos de feitura do próprio filme como uma estratégia de comentário de si mesmo, mas sim um estudo das formas com que esse processo longevo se reflete como crescimento na vida das crianças através da evolução dos dramas. Em certo sentido, as crianças operam como comentários sobre a estrutura do filme-processo: não um filme sobre os efeitos e impactos do seu processo sobre si mesmo, mas um filme sobre os efeitos e impactos do seu processo sobre os outros. Em última análise, é uma tentativa de se perguntar: como e em que medida o processo de um filme pode ser um processo de amadurecimento do olhar?


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