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Variações a partir de um autorretrato da crítica brasileira

Uma lista do tipo “melhores filmes” é sempre um equilíbrio instável entre o diletantismo cinéfilo e algo mais ambicioso, que diz respeito à constituição de um cânone artístico. Mais ou menos espontânea, independente do método com o qual seja construída, uma lista é sempre uma intervenção no presente, em direção simultânea ao passado e ao futuro. Traça um recorte do passado artístico permeado por visibilidades e ausências, inevitavelmente atravessado por relações de poder e pela construção histórica do gosto, ao mesmo tempo em que vislumbra um futuro. Um cânone não apenas reflete valores, mas os institui: celebra certos traços artísticos em detrimento de outros, define um campo de possibilidades – o que pode ou não ser arte –, carrega sempre em seu interior, queira ou não queira, uma definição tácita sobre o que é um romance, um quadro, um filme.

Embora não seja nunca absoluto, um cânone – que, reduzido ao essencial, nada mais é do que uma lista de obras consideradas valiosas por uma comunidade – é uma baliza a influenciar gerações de espectadores. Todos nós começamos por elas. Se não por uma lista pura e simples, por uma filmografia reunida em algum lugar: um livro, um texto, uma aula. Ninguém viu Ganga Bruta (Humberto Mauro, 1933) por acaso. Quando se trata de uma lista coletiva e institucional, como as que a Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) realizou na última década, o esforço adquire uma dimensão suplementar. Ganha um caráter mais pronunciado de legitimidade e permanência – intensificado pela decisão de publicar coletâneas de ensaios a partir das listas –, ao mesmo tempo em que constitui um sintoma valioso: o cânone não é apenas um retrato das obras, mas contém, no gesto, um autorretrato da crítica em determinada época. O trabalho que a Associação fez na última década, a despeito de suas escolhas naturalmente discutíveis, é extremamente valioso por dois motivos: por não reduzir a escolha ao aspecto mais pueril da mera listagem – e insistir no esforço das coletâneas de textos – e por oferecer a possibilidade de pensar sobre quais são os valores da crítica brasileira num determinado momento histórico.

A publicação da lista de 100 melhores curtas-metragens brasileiros de todos os tempos, lançada em maio de 2019 pela Abbracine, é uma oportunidade valiosa de conversar sobre esses valores. Mais do que discutir a inclusão ou exclusão desta ou daquela obra, interessa identificar algumas tendências gerais e comentá-las, na tentativa de traçar um retrato da crítica brasileira a partir do cânone. Sem nenhuma pretensão de objetividade – meu ponto de vista só pode ser pessoal e limitado por minhas próprias preferências e conhecimentos –, mas na tentativa de continuar a conversa e participar dela. Obviamente, qualquer autorretrato é sempre, em primeiro lugar, um retrato. E qualquer retrato de um outro (coletivo ou individual) é também, em alguma medida, um autorretrato.

A lista dos curtas elaborada pela Associação é instigante, algo surpreendente, razoavelmente plural. Não se atém aos medalhões e busca dar visibilidade a filmes que ainda não figuram no panteão mais óbvio da cinematografia nacional. Pode ser pensada, certamente, em sua dimensão instituinte: há valores novos sendo propostos aqui, que não haviam ainda sido catalogados de forma tão contundente. Uma imagem bem diferente daquela que subjaz à primeira lista da série, dedicada aos “100 melhores filmes brasileiros”, publicada em 2015. O retrato coletivo que emergia daquela lista não continha a dimensão de ousadia que se manifesta nessa. À exceção de dois clássicos incontestáveis – Ganga Bruta e Limite (Mário Peixoto, 1931) –, e em que pese o gigantesco desaparecimento do cinema silencioso, para a lista de 2015 parecia que o cinema chegou ao Brasil em meados dos anos 1950. Acrescente-se a isso o quase absoluto desprezo por toda uma imensa produção de feição popular, das chanchadas à produção da Boca do Lixo paulista, a ausência completa de diretores negros, o baixo número de diretoras, e o que se tem é uma reprodução acrítica dos cânones mais consolidados do Cinema Novo – inclusive de sua leitura da história pregressa do cinema brasileiro –, alguns nomes incontornáveis entre os marginais e os eternos medalhões da Retomada. Boa parte desses problemas foi salientada em um valioso texto seguido de uma provocativa contra-lista, feita pelo pesquisador Adilson Marcelino e publicada em seu site Mulheres do Cinema Brasileiro.

O compilado de 2015 é uma lista com um total de zero apostas, se descontarmos as escolhas do cinema recente (onde a intervenção prospectiva no cânone se faz mais evidente). Essas, estranhamente ou não, valorizam um cinema de qualidade técnica e eficiência narrativa em todo contrário ao espírito transgressor de um Glauber, um Bressane, um Candeias ou uma Ana Carolina (diretores e diretora com lugar destacado na lista). Estão lá nomes como José Padilha, Fernando Coimbra, Marcos Jorge, a sinalizar um curioso disparate de critérios entre a avaliação do cinema de antes dos anos 1990 e o olhar para o passado recente. O que fica, no fundo, é uma reverência estrita aos cânones históricos mais óbvios como critério automático de julgamento do passado. Ou seja: na lógica que subjaz à lista de 2015, os Padilhas do passado não teriam lugar, uma vez que o trabalho anterior de constituição do cânone já fora feito pelas gerações pregressas e seria impensável, do ponto de vista de uma crítica pouco afeita ao combate, revertê-lo. Ao mesmo tempo, as possíveis Anas Carolinas do presente ficam igualmente de fora, pois o trabalho de incluí-las no cânone exigiria a formulação de critérios novos para obras novas, e isso é arriscado demais. Com justiça, Adilson Marcelino concluía: “não são esses inúmeros filmes, diretores, atores e equipe que não cabem na Abraccine, é a Abraccine que não cabe na complexidade e na riqueza da história do cinema brasileiro. Pelo menos, por enquanto”.

Se a frase de Adilson é perfeita para a lista de 2015, é importante reconhecer que a lista de 2019 é certamente mais diversa, complexa e rica. A mudança no método da lista dedicada aos curtas parece ter surtido efeito: ao invés de apostar apenas nas escolhas espontâneas de seus integrantes, a Associação decidiu confiar a alguns deles a tarefa de pesquisar e constituir uma pré-lista. O resultado é um cânone menos óbvio, com a inclusão de nomes decisivos que ainda não haviam tido a chance de figurar em um panteão coletivo tão representativo: as colocações destacadas de Helena Solberg e Zózimo Bulbul, a presença ostensiva de Aloysio Raulino, a inclusão de cineastas como Miguel Rio Branco, Débora Waldman e Carlos Adriano são exemplos desse arejamento. Embora nesse caso tenha surtido efeitos que me parecem valiosos a longo prazo, não se pode perder de vista que a constituição de uma pré-lista também pode funcionar como um limite à imaginação: os filmes “obrigatórios” podem se tornar ainda mais atraentes, e a relativa abertura pode se transformar em engessamento por procuração.

Alguns sintomas presentes na primeira lista da série, no entanto, permanecem na quarta, e me parecem valiosos para uma discussão sobre o estado da crítica de cinema no Brasil na última década. Em primeiro lugar, a insistência em elencar uma maioria de curtas-metragens de cineastas cujas carreiras foram, de longe, muito mais identificadas com a prática do longa-metragem ficcional (casos de Nelson Pereira dos Santos, Carlos Reichenbach, Laís Bodanzky, Beto Brant ou Cláudio Assis) é o índice de uma crítica cujo parâmetro tácito ainda é o longa-metragem de ficção, ou para quem o curta-metragem é uma espécie de antessala do longa. Salvo um punhado de belíssimas exceções, há uma ignorância patente em relação ao cinema e ao vídeo não-narrativos, aos filmes explicitamente militantes e às iniciativas de realização coletiva, três campos em que o cinema brasileiro de curta-metragem, historicamente, nos ofereceu algumas de suas mais valiosas contribuições.

Nenhum filme de Anna Bella Geiger, Letícia Parente, Jomard Muniz de Brito, Rafael França, Cao Guimarães ou Regina Silveira, para citar apenas alguns expoentes históricos do cinema e do vídeo experimentais no Brasil, que trabalharam majoritariamente em curta duração. Nenhum filme do extraordinário ciclo das greves, que nos legou joias como Os Queixadas (Rogério Corrêa, 1978), Mariana, Paraná e Greve (Aron Feldman, 1984) ou Que ninguém, nunca mais, ouse duvidar da capacidade de luta dos trabalhadores (Renato Tapajós, Olga Futemma, Zetas Malzoni, Maria Inês Villares, Francisco Cocca, Alípio Viana Freire e Claudio Kahns, 1979), para citar apenas um dos focos de realização militante ou engajada. Nenhum filme originado das múltiplas iniciativas de realização coletiva popular e contra-hegemônica que se espalharam pelo país desde os anos 1980, e que já foram muito bem documentados. Nenhum filme de realizadores indígenas, esse imenso repertório de centenas de filmes que já nos legou obras-primas em curta ou média-metragem como Bicicletas de Nhanderu (Ariel Ortega e Patrícia Ferreira, 2011) ou Karioka (Takumã Kuikuro, 2014).

Caso o esforço de arejamento do cânone desejasse assumir um risco ainda maior, precisaríamos pensar também na imensa produção diária feita por cineastas amadores e disponibilizada em canais como o YouTube. Não há dúvida de que, em algum momento, precisaremos começar a levar mais a sério fenômenos fílmicos como Leona Assassina Vingativa, as colagens nonsense de Roge, as esquetes humorísticas da série Q q pega Zé? ou marcos do cinema amador como O Redemoinho. É triste – e deveria nos envergonhar a todos – que o primeiro crítico brasileiro a tomar a sério esse filme extraordinário tenha sido Caetano Veloso em sua coluna no jornal O Globo, reconhecendo com justiça que se tratava de “um dos mais belos filmes brasileiros recentes”.

Essas ausências são significativas porque a força do buraco pode ser sentida na própria lista. Como pensar um filme como Seams (Karim Aïnouz, 1993), incluído na lista, sem a herança da videoarte? Como dissociar a empreitada de Dias de Greve (Adirley Queirós, 2009) das investidas ficcionais de Rogério Corrêa e Aron Feldman nos anos setenta e oitenta? Como pensar a obra em curta-metragem de Gabriel Martins, também elencado, sem os influxos da produção amadora contemporânea? Não seria exagero imaginar que, caso Karim Aïnouz, Gabriel Martins ou Adirley Queirós não tivessem “chegado ao longa” (essa expressão terrível que lemos quase diariamente na crítica brasileira, e que transforma automaticamente uma demanda de mercado em teleologia valorativa), seus nomes dificilmente figurariam na lista.

Esses são alguns indícios valiosos de um sintoma importante: a crítica brasileira ainda é refém da instituição-cinema em sua acepção mais redutora, que inclui apenas o circuito mais tradicional dos festivais e salas de cinema. Há um divórcio duplo: em relação ao campo das artes visuais e em relação aos circuitos de produção e exibição marginalizados, como os sindicatos, as periferias urbanas, os territórios ocupados, as aldeias indígenas ou os recônditos da produção amadora. Embora alguns festivais brasileiros tenham feito nos últimos anos o movimento contrário – as curadorias de cinema e vídeo experimental de Patrícia Mourão na Semana, o trabalho continuado do Forumdoc.BH com o cinema indígena ou do CachoeiraDoc em relação à produção militante, para citar apenas alguns esforços –, a crítica permanece míope diante dessas iniciativas.

Certamente alguns desses sintomas dizem respeito à indisponibilidade dos filmes. Seria injusto cobrar a inclusão de um filme decisivo como Indústria (Ana Carolina, 1968), que só começou a circular novamente em 2017, com a nova cópia exibida pelo Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte. É interessante, nesse sentido, perceber como alguns filmes da lista, justamente aqueles responsáveis por arejar o cânone, são resultado direto de iniciativas de restauração e curadoria realizadas na última década. Para se ter uma ideia, numa enquete anterior, realizada pela Revista Janela num nada longínquo ano de 2015, dentre todos os críticos convidados – bem menos numerosos do que os integrantes da Abraccine, é bom ressaltar –, só houve uma menção a Débora Waldman, uma a Miguel Rio Branco e uma a Aloysio Raulino; nenhuma a Helena Solberg e nenhuma a Zózimo Bulbul. Além do processo de relativa democratização da crítica nos últimos anos, esforços de preservação, como a disponibilização de todos os filmes de Raulino abertamente online, ou de programação, como a mostra Paraísos Artificiais, curada por Francis Vogner dos Reis em 2015 – que recolocou no debate filmes como Juvenília (Paulo Sacramento, 1995) ou Kyrie ou o Início do Caos (Débora Waldman, 1998) –, a realização anual do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul,– que tornou o nome de Zózimo incontornável –, ou o resgate da vasta obra de Helena Solberg, cuja revalorização envolveu esforços como a retrospectiva de 2014 no festival É Tudo Verdade, o livro de Mariana Tavares lançado no mesmo ano, os textos de Karla Holanda e a retrospectiva integral do Centro Cultural Banco do Brasil em 2018, curada por Carla Italiano e Leonardo Amaral. Seria possível multiplicar os exemplos, mas todos esses esforços são diretamente responsáveis por criar condições para que o cânone possa se tornar mais diverso e menos óbvio. Por outro lado, uma imensa parte dos filmes militantes ou de realizadores indígenas já foram extensamente catalogados e já são facilmente acessíveis há muito tempo – o que configura um caso mais grave de miopia ou de endurecimento do olhar.

Sabemos bem que muitos dos curtas-metragens hoje considerados canônicos tiveram circuitos de exibição extremamente restritos em sua época – em alguns casos francamente clandestinos – e outros correram o sério risco de desaparecer, para não mencionar aqueles que foram enterrados pela censura ou pelo preconceito da crítica. E, no entanto, alguns foram salvos em seu momento ou pelas gerações seguintes, até que se tornaram referências incontornáveis. O movimento do cânone é, ao menos em tese, sempre reversível. São muito férteis, por exemplo, os esforços revisionistas de Jean-Claude Bernardet nos catálogos do Forumdoc.BH, em que ele reconhece sua negligência em relação à importância decisiva de filmes como Viagem ao Fim do Mundo (Fernando Coni Campos, 1969) e Lacrimosa (Aloysio Raulino, 1970).

Mas esse movimento não tem nada de natural: depende de esforços individuais e coletivos, de preservação e restauração, mas também de curadoria e de crítica. Se o Forumdoc.BH – num momento em que ainda era frequente esse tipo de iniciativa no Brasil – não tivesse dedicado retrospectivas extensas a Coni Campos e a Raulino, Jean-Claude talvez não tivesse a oportunidade de revisitá-los e mensurar novamente sua importância. Quantos outros filmes e cineastas não permanecem soterrados pela historiografia canônica, esperando por uma chance de reabilitação? Num momento histórico de guerra declarada à cultura e à inteligência e de precarização extrema, em que esforços como o de produzir novas cópias de filmes antes indisponíveis, patrocinadas por dinheiro público para uma retrospectiva em um festival (que chegaram a ser anuais a certa altura), parecem contos da carochinha de tão impensáveis, a crítica adquire uma importância renovada. Em inúmeros casos, não é preciso esperar por uma curadoria e por uma restauração que, na atual conjuntura, dificilmente virá. A internet ainda é um vasto manancial de obras potencialmente valiosas esperando por um esforço crítico de fôlego.

O cânone já consolidado é sempre muito atraente. Enquanto escrevia a primeira versão deste texto, em agosto de 2019, elaborava uma lista de filmes brasileiros encomendada por uma revista argentina e enfrentava algumas das mesmas dificuldades que aponto aqui. É importante dizer, também, que o esforço por arejar o cânone não pode ser confundido com a mera provocação polemista a despeito dos filmes. Esse tipo de atitude só depõe contra a arte e os artistas. Mas se não quisermos cometer os mesmos equívocos do passado e esperar confortavelmente por uma redenção pela posteridade que, pelo andar da carruagem, talvez não aconteça, a crítica brasileira precisa começar a se movimentar mais com as próprias pernas. Precisamos ir mais ao museu e à galeria, no mesmo movimento em que precisamos estar mais perto da rua e com as antenas mais ligadas ao que acontece em espaços não oficiais. As artes fílmicas brasileiras são muito mais plurais do que parece, e as invenções decisivas podem estar acontecendo onde menos se espera.


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