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Masculinidades montadas em couro: fantasia e desejo no cinema de Daniel Nolasco

Uma das propostas mais instigantes do festival Olhar de Cinema de Curitiba é o eixo curatorial de sua Mostra Foco. Guiada pelo anseio de difundir no Brasil a filmografia de jovens diretores ainda pouco conhecidos por aqui, esta “retrospectiva precoce” já celebrou cineastas como Nathan Silver, Camila José Donoso e Matías Piñeiro. Em 2020, pela primeira vez, o festival optou por colocar seus holofotes em um cineasta brasileiro. O escolhido foi Daniel Nolasco que, em uma década de carreira, já construiu uma prolífica filmografia que conta com dez curtas e três longas, sendo o mais recente deles parte da seleção Panorama da Berlinale deste ano.

Nascido em Catalão, interior de Goiás, e formado em cinema pela Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, Nolasco dirigiu toda sua obra em uma conexão entre os dois estados. A grande maioria de seus filmes são coproduções, contando não apenas com filmagens em ambas as regiões, mas com equipes formadas com profissionais de cada estado também. Tal característica é digna de nota por carregar o posicionamento político de ir contra a lógica da migração para os grandes centros sudestinos para fazer cinema. Embora sua formação acadêmica seja em um destes polos, Nolasco não desistiu de filmar em seu estado natal, local ainda pouco representado e explorado pelo audiovisual brasileiro. Quando levamos em consideração a perspectiva predominantemente queer que perpassa quase toda sua obra, essa decisão se torna ainda mais contundente, por se opor ao mito de que apenas os grandes centros urbanos oferecem possibilidades para esse tipo de expressão.

A Mostra Foco do Olhar de Cinema contemplou toda sua produção em longa-metragem que, até o momento, conta com dois documentários e uma ficção. Paulistas (2017), seu longa de estreia, é um documentário observacional que aborda justamente o cotidiano na Paulistas do título, região rural de Catalão. Logo no início do filme, uma cartela nos contextualiza sobre a peculiaridade daquele espaço: como consequência do êxodo rural, desde 2014 não existem mais jovens morando na região de Paulistas. Filmado durante o mês das férias de julho, o filme acompanha o período do ano em que os filhos visitam os pais. Muito frequentemente, documentários de estrutura observacional seguem uma noção antropológica de alteridade, na qual o realizador se posiciona como um pesquisador a investigar uma cultura onde ele não é nativo. Dos filmes em que europeus visitam povos primitivos aos filmes em que a elite explora as comunidades precárias, esse modelo de registro documental segue padrões hierárquicos de poder. A câmera é um elemento alienígena naquela realidade, enquanto o realizador é um visitante que estuda e representa o Outro através de sua própria subjetividade. Ao se apropriar de uma linguagem que é guiada pela premissa do cineasta enquanto uma presença não-participativa para falar de sua cidade natal, Nolasco derruba essas dinâmicas, construindo um documentário observacional por meio da sensibilidade dos documentários em primeira pessoa e, assim, injetando um forte senso de pertencimento em seu registro. A câmera é incorporada de maneira simbiótica ao cotidiano daqueles espaços, sem causar estranhamento ou conflito. As imagens em planos estáticos e frequentemente abertos de Nolasco transmitem uma certa familiaridade, mais próxima da sensação de visitar um parente que nos recebe de maneira acolhedora do que do distanciamento de assistir a uma realidade que nos é alheia.

Paulistas Daniel Nolasco

A informação ofertada na cartela que abre o filme instiga no espectador urbano uma certa expectativa distópica. Pela lógica reprodutiva, a futuridade só é possível através da juventude, já que são os espécimes mais jovens os responsáveis por gerar as crianças que herdarão aquele ambiente e, por sua vez, manterão a cultura ativa e viva. A imaginação de uma região, de uma comunidade que existe sem a presença de jovens automaticamente nos remete ao imaginário de uma cidade-fantasma, um espaço fadado ao esquecimento, um lugar prestes a deixar de ser. Sendo assim, é bastante simbólico que o primeiro plano seja um bezerro sendo amamentado. A cena, na altura do chão e com uma proximidade amistosa, já estabelecendo que a vida e a cultura se renovam com ou sem a presença de jovens humanos. Após minutos da exposição do cotidiano da população idosa que ainda vive na região, a cartela de título aparece no momento em que um desses senhores toca seu violão. Essa cena marca também a transição para a chegada dos filhos. Em outro jogo de expectativas quebradas, o filme rompe certa noção da juventude como detentora de um vigor particular que altera a vida no ambiente com sua chegada. Ao invés dos jovens provocarem na região qualquer modificação ou perturbação da rotina, são eles os cooptados pelas práticas locais e pelo prosaico das horas.

Ao longo de toda sua duração, o filme segue a mesma temporalidade de seus minutos iniciais, em um movimento contínuo que não se altera pela presença ou ausência da prole local. É verdade que os jovens rapazes praticam motocross, saem em encontros amorosos e frequentam festas, mas tais atividades são registradas com a mesma lentidão e contemplação dedicadas ao ato de pendurar roupas no varal ou tirar leite de uma vaca. O único momento de quebra da temporalidade narrativa é quando uma música de rock bruscamente invade a cena em que eles brincam com fogos de artificio. Documentários observacionais que se dedicam a representar um objeto pelo viés da alteridade, frequentemente reproduzem percepções exotizantes. Seja no olhar para a vida no campo como o ideal bucólico que enxerga na simplicidade uma vida mais pura e plena, seja na denúncia das precariedades dos espaços rurais, tais representações reforçam a localização do cidadão do campo enquanto um Outro a ser estudado. E nós, o público, devemos aprender algo com o modo como eles vivem. Sendo o próprio Nolasco um dos filhos que estão em Paulistas para visitar sua família, a hierarquia da alteridade é descartada, dando lugar a um olhar que não apenas naturaliza e aprecia a vida no campo, mas também a confere certa banalidade. Não se trata de fantasias campesinas ou de miséria fora dos centros urbanos. A vida no campo, como a vida em qualquer outro lugar, é apenas o amontoado de coisas – de trabalho, lazer e repetição que fazem a rotina ser rotina.

Embora seja um filme que tematicamente se filia ao curta Febre da Madeira (2015), Paulistas é uma obra difícil de enquadrar dentro do corpo de trabalho de Nolasco, por parecer distanciado de seus filmes mais voltados aos registros excessivos e estilizados de uma subjetividade queer. No entanto, pode-se localizar no documentário um traço frequente em sua obra: a atenção dedicada a refletir sobre masculinidades. Não me parece mero acaso que, não obstante a presença de mulheres, o filme proclame apenas homens como seus protagonistas, apresentando-os nominalmente e um por vez. No contexto atual do cinema e da condução de debates progressistas, masculinidade é um tema espinhoso de se abordar. Quase toda representação que se dedica a tal objetivo parece se posicionar como alinhada aos polos extremos de crítica à masculinidade como essencialmente tóxica ou de uma celebração retrógrada da mesma. São poucos os filmes que dão o passo além, abrindo caminho para a viabilidade de outras construções e possibilidades de masculinidade. Em alguma medida, Paulistas provoca certo imaginário criado em cima do homem rural, especialmente do Centro-Oeste brasileiro. Desde que Bolsonaro começou a ascender em pesquisas de popularidade, o Centro-Oeste foi eleito como um tipo de epicentro do bolsonarismo popular. A região enquanto epítome das políticas da bíblia, do boi e da bala. No entanto, o bolsonarismo do local é frequentemente abordado com uma alteridade que não é dedicada ao mesmo fenômeno em sua vertente no Sul e no Sudeste. O bolsonarismo do Centro-Oeste é associado a um imaginário de masculinidade violenta, que é armamentista por um apreço pela barbárie. Uma masculinidade rural que é lida como sinônimo de rudimentar, selvagem e inculta. Ao registrar os homens da região rural de Catalão através do olhar de um nativo, Nolasco nos oferece um retrato que confronta tal construção. São muitas as cenas em que os homens, jovens e velhos, portam armas de fogo. Mas aqui elas aparecem quase sempre como um mero passatempo, ferramentas da prática esportiva, ou ao menos recreativa, de atirar em latas e televisões quebradas. Sendo assim, a pauta armamentista é inserida enquanto um hábito cultural do homem sertanejo que, a priori, é inofensiva. Não é que estes homens não sejam detentores de uma masculinidade ostensivamente heterossexual e tradicional. Eles estão longe de representar qualquer ruptura com tal hegemonia. Porém, ainda assim, as expressões de masculinidade que se apresentam em Paulistas também estão longe de se encaixar nos códigos bárbaros do imaginário que se faz dela. Comparando com outras representações do agroboy no cinema brasileiro, como, por exemplo, o personagem Cícero, interpretado por Caio Blat em Baixio das Bestas (Cláudio Assis, 2006) – que também sai da região rural para viver na capital, mas durante as férias visita a família -, a jovem masculinidade sertaneja de Paulistas se apresenta de maneira muito mais complexa.

Mr. Leather Daniel NOlasco

Trocando o rural pelo urbano, Mr. Leather (2019), seu segundo longa, também vai se dedicar a investigar construções de outras masculinidades. Acompanhando os preparativos e o desenvolvimento da segunda edição do concurso para eleger o Mr. Leather Brasil, o documentário funciona ainda como registro do processo de formação de uma comunidade leather na cidade de São Paulo. Utilizando uma série de digressões estilizadas que contextualizam um breve histórico do leather, o filme reproduz, estruturalmente, o mesmo gosto por performatividade e ornamentação que guiam as práticas sexuais da subcultura representada em cena. Em um documentário que acompanha um evento concomitantemente ao seu desdobramento, é curiosa a escolha por uma narrativa esteticamente empenhada na frivolidade, que denota um artifício que esse tipo de registro documental costuma evitar. Nas encenações, transbordam referências ao trabalho do desenhista erótico Tom of Finland, ao fotógrafo Robert Mapplethorpe e aos filmes pornográficos da COLT Studio. Não se contentando em apenas passar informações ao público, as passagens que nos contam a história do surgimento do concurso, convertem-se elas próprias em espetáculos de fantasias sexuais, onde motoqueiros e marinheiros transam em florestas e banheiros públicos e escravos submissos decoram a cena. Mr. Leather é um documentário que se deixa contaminar pela cultura que filma e, assim, torna-se também um filme que é fetichista, que produz imagens de desejos da cultura leather. De antemão, o documentário entende que o fundamento central do leather é a materialização da fantasia no mundo real e assume essa característica como condutora de sua linguagem. Mais do que uma filiação estética, essa decisão posiciona Mr. Leather como uma celebração da cultura BDSM.

Justamente por ser um segmento que tão abertamente assume suas práticas e fantasias sexuais no próprio modo de se vestir, a comunidade leather e BDSM carrega em si mesma a premissa de uma sexualidade radical. Embora seja uma das subculturas mais antigas da comunidade LGBT, o leather sempre foi alvo de críticas e preconceitos dentro do próprio movimento. Uma que persiste até hoje, é o equívoco em acreditar que os praticantes do leather cultuam o desejo de mimetizar a masculinidade heterossexual. O ativista Michael Bronski relata que, ainda na década de 70, em uma reunião na qual o tema era discutido, uma sapatão caminhoneira respondeu a acusação dizendo “me dá um tempo! Você acha que um cara usando calça de couro, jaqueta de couro, quepe de motociclista, algemas presas no cinto, bandanas de duas cores diferentes e botas de couro que atingem a coxa parece hétero?”. No texto em questão, que aborda justamente a materialização do desejo sexual, Bronski argumenta que a cultura leather é sobre homens gays se transformando em suas próprias fantasias e, no processo, inventando novas formas de masculinidade. O grande mérito do documentário é o reconhecimento da hipermasculinidade do leather como um tipo de drag, como uma montação. Assim como as drag queens exageram códigos de feminilidade ao ponto da sátira de gênero, a cultura leather amplia características masculinas ao ponto da desassociação com a heterossexualidade. Não é por acaso que produtos culturais diversos, como YMCA e o personagem Pitibicha (Tom Cavalcante), utilizam a estética do homem leather como referencial do parecer muito gay. O cuecão de couro é muitas coisas, mas certamente não é um reforço da heteronormatividade masculina. Em um dos momentos mais divertidos do filme, cada personagem nos apresenta o acervo leather de seus armários. Vestidos como homens comuns, completamente desmontados, os quatro candidatos catalogam dúzias de botas e dezenas de jaquetas, peças exclusivas e artigos em couro de avestruz, roupas adquiridas em grifes alemãs e em brechós na Espanha, enquanto jogam nomenclaturas e compartilham cuidados de preservação de seus objetos de adoração. Qualquer um que já assistiu a uma drag queen apresentar sua coleção de perucas e looks, percebe que as semelhanças não são meras coincidências. No momento antes de iniciar o concurso, uma outra longa cena mostra os concorrentes tirando suas calças jeans e camisetas brancas para se transformarem nos homens de couro, compostos por muitas camadas, botões, laços e acessórios. Uma masculinidade performática literalmente construída através da montação.

Malgrado o forte tom de celebração e o olhar positivo dedicado às práticas fetichistas de seus personagens, o documentário também coloca em foco as dinâmicas e divergências políticas que permeiam a fundação de um movimento organizado, trazendo à tona os embates entre vertentes mais assimilacionistas e libertárias do leather. Nas entrevistas de cada um dos quatro candidatos ao título de representante internacional da comunidade leather brasileira, assim como de outros membros influentes na cena, o filme parte dos relatos individuais para debater questões que conturbam a comunidade. Os embates entre quem defende que leather e BDSM são práticas separadas e os que acreditam que são segmentos da mesma cultura; a oposição entre os adeptos do BLUF (subcultura leather que possui regras rígidas sobre a vestimenta em uniformes de couro) e da parcela vegana que propõe o uso de couro sintético; os que almejam a criação de espaços mais inclusivos e os que acham importante limitar o acesso à comunidade. Por diversos momentos, a própria montagem estabelece diálogos entre opiniões antagônicas. Partindo destas oposições de forças internas, o filme aborda também temas mais gerais da comunidade LGBT, como a exclusão de mulheres em espaços de sociabilidade gay, elitismo e a aversão a comportamentos promíscuos. Boa parte da narrativa desenvolvida pelo filme se concentra na oposição entre dois personagens: Dom PC, que é médico de formação e que apresenta uma expressão mais asseada do leather, e Kake, que assume diretamente sua inspiração em pornografia vintage, vive em um relacionamento poliamoroso e defende ideais libertários. Ainda no começo do filme, já fica bastante claro que a disputa do título está entre eles. Ao falar sobre sua preferência na eleição de Dom PC como representante do leather, um dos jurados entrevistados chega a dizer que ele é médico, viajado, de família e fala várias línguas. O mesmo entrevistado, em outro momento, questiona Kake sobre que mensagem ele passaria como representante da cultura leather, já que ele se parece com um ator pornô. Mesmo em um concurso criado para celebrar sexualidades dissidentes e que tem em uma de suas etapas um desfile de jockstrap, predominam os ideais de respeitabilidade do assimilacionismo, em detrimento de posturas transgressoras e radicais. A masculinidade colocada como problemática pelo discurso fílmico não é a do fetiche leather representada nos desenhos pornográficos de Tom of Finland, mas justamente a masculinidade homonormativa que, com seus valores burgueses e anseios por normalidade, é a verdadeira masculinidade gay que busca a qualquer custo mimetizar a hegemonia heterossexual.

Vento Seco Daniel Nolasco

Vento Seco (2020), primeira ficção em longa-metragem de Nolasco, em alguma medida concilia os universos abordados não apenas em seus dois documentários anteriores, mas também em sua carreira de curtas. Em toda a sua filmografia, é notável o seu fascínio e respeito pela cultura gay e queer, não apenas do exterior, mas também do Brasil. Em seus curtas, são muitas as referências ao trabalho de João Silvério Trevisan, especialmente em Urano (2013), que cita diretamente passagens do livro Devassos no Paraíso. Seguindo o mesmo caminho, Vento Seco traz referências explícitas aos filmes de pornógrafos como Wakefield Poole e Al Parker, ao mesmo tempo em que se alinha a teorias de acadêmicos defensores da sexualidade radical, como Gayle Rubin e Pat Califia. É difícil falar da obra de Nolasco sem citar muitos nomes, pois é um trabalho orgulhosamente mergulhado no legado de uma tradição queer. Por esta razão, Vento Seco é informado por um movimento que antecede em décadas sua feitura. Nolasco é o raro caso de cineasta queer que, além de conhecer bem a própria história LGBT, faz seus filmes através de um olhar assumidamente gay. Décadas depois do antológico artigo em que Laura Mulvey conceitua o male gaze, o cinema segue predominantemente moldado por esse olhar masculino que objetifica a figura da mulher e pressupõe um espectador homem e heterossexual. Até hoje, são raros os filmes que sexualizam personagens masculinos e que filmam seus corpos com o desejo tradicionalmente dedicado exclusivamente às mulheres em cena. Sendo assim, é revigorante que Nolasco posicione sua câmera na criação de um descarado gay gaze, que sempre se concentra na nudez masculina, que recorta peitorais, bundas e malas marcadas na sunga, que se deleita em suas peles suadas e na exposição de seus pelos pubianos.

Em Vento Seco, Nolasco se apropria do gênero mais caro ao cinema brasileiro recente, o realismo social, e queeriza sua estrutura através não apenas da subversão, mas da perversão de suas premissas. Se o realismo social, por via de regra, vai se voltar para a classe trabalhadora para discutir justamente as dinâmicas de relações de trabalho em um contexto capitalista, em Vento Seco temos um retrato de um operário por um viés quase hedonista de busca pelo prazer. Sandro não apenas deseja, mas deseja aquilo que é abjeto. Deseja cuspe, suor, mijo, esperma. Deseja cheirar jaquetas de couro, chupar objetos tocados pelo objeto de sua paixão, lamber o assento da moto na qual ele se senta. O direito ao desejo, e notadamente ao desejo homossexual fetichista, deixa então de ser um privilégio burguês. E essa perversão se estende à proposta estética, que abraça o artificialismo de iluminações em neon e cores saturadas, acentuando o tom de fantasia que permeia o filme e negando as ambições naturalistas do realismo social. No trabalho de fotografia de Larry Machado, as paisagens naturais do Centro-Oeste se mesclam ao pop e ao camp de uma sensibilidade gay setentista. Sem negar o regionalismo, o filme reverencia a estética de artistas queer do passado, como Kenneth Anger e Rainer Werner Fassbinder.

Para além da representação pornográfica do sexo gay e da fetichização dos corpos masculinos, Vento Seco também propõe alternativas de expressões afetivas das masculinidades. Rompendo a noção binária que separa a sexualidade dissidente da manifestação de afeto e de romantismo, da ideia de que o fetiche só pode existir em relações casuais e impessoais, o filme é atravessado por diversos pequenos momentos de trocas afetivas entre os homens. A mão que afaga o rosto do amado após uma confissão melancólica, o abraço que acolhe no momento de luto, a dança lenta entre dois homens em um espaço público. Em uma das cenas mais bonitas do filme, um brinquedo de parque de diversões serve como agente mobilizador de uma inesperada troca de carinhos entre dois personagens masculinos, Sandro e Maicon. Sozinhos no compartimento privativo da máquina, um deles, assustado, grita e segura firmemente na mão do homem ao seu lado que, por sua vez, olha ternamente para a vulnerabilidade que enxerga no outro. Embora na altura em que a cena ocorre Sandro já tenha demonstrado muitas vezes seu desejo por Maicon, é nesse momento que a paixão que ele sente se completa. Não através de demonstrações de virilidade, mas de fragilidade. Essas trocas carinhosas inscrevem no filme a possibilidade de masculinidades que se constroem através do desejo, mas sem negar a afeição, característica tradicionalmente negada ao masculino.

Chama a atenção que, além do gênero pornográfico, o filme estabelece também um hibridismo com elementos do melodrama, dois gêneros que a teórica Linda Williams associa ao excesso. Se o pornográfico é excessivo em sua representação de atos sexuais obscenos, o melodrama é excessivo na maneira em que expõe as emoções de maneira indecente. Durante boa parte de sua história, o melodrama era um gênero majoritariamente protagonizado por mulheres, chegando a ser chamado, literalmente, de “filme de mulher”. Isso acontecia porque a característica principal do melodrama é a presença de pathos, capacidade do discurso em causar sentimentos de pena ou tristeza. Quando essa emoção domina o discurso, ela causa um excesso de emoções que se torna indecoroso e até mesmo constrangedor. É de pathos que deriva o termo patético. Sendo assim, a personagem que desperta no espectador emoções de pena, tristeza e vergonha, costuma ser colocada no papel de vítima, não de herói e, portanto, não poderia ser representada por um homem. É verdade que já faz muito tempo que o melodrama se abriu para outras representações além da mulher, mas, ainda assim, acredito que existe alguma carga de subversão da masculinidade no modo como Vento Seco coloca seu protagonista em um lugar de pathos. Embora ele raramente demonstre de maneira visível suas emoções, o discurso fílmico sempre salienta seus sentimentos de dor, raiva, ciúmes, angústia. Movimentos de zoom-in acompanhados de instrumental dramático, closes em seu rosto em momentos de intensidade, sobreposição de imagens e a trilha sonora extradiegética de canções de amor como Me Destrói e Orfeu, de Thiago Pethit, e Negue, de Maria Bethânia, funcionam como códigos melodramáticos que desnudam as emoções que Sandro se recusa a deixar transparecer. Diferente de um anti-herói, a contraposição entre a personalidade calada e introvertida de Sandro e o discurso exacerbadamente sentimental que o filme constrói em cima dele, faz com que ele seja um personagem difícil de gostar ou até mesmo de inspirar empatia no público. O principal símbolo narrativo de seu pathos é sua boca que, em função do tempo seco, vai se ferindo mais a cada cena, enquanto Sandro se recusa a seguir os conselhos de seus colegas e cuidar do machucado. Enquanto a vítima melodramática ocupa a posição passiva de não poder evitar sua desgraça, Sandro pode, mas opta pela letargia. Para ele, a única solução possível para ter lábios saudáveis é se mudar para um lugar úmido. É uma teimosia em não querer se adaptar que cria o contexto patético que consome Sandro.

Em termos narrativos, o filme é uma história contada pela perspectiva de Sandro, um homem pacato e solitário. Ele fala pouco mesmo com seus amigos mais íntimos, não demonstra muito engajamento em pautas sindicais e está tranquilamente confortável em sua rotina de trabalho, pausas para fumar um cigarro, idas ao mercado e noites montando quebra-cabeças. E, de tempos em tempos, encontros sexuais secretos com Ricardo, um jovem colega de trabalho. Para um público menos entendido, o aspecto furtivo dos encontros sexuais de Sandro pode remeter a uma sexualidade que não se assume, que acontece no sigilo e fora do meio por apego dele a uma masculinidade heterossexual. Mas o que um olhar mais higienizado da sexualidade parece deixar escapar é que a própria discrição dos atos sexuais praticados por Sandro, que acontecem sempre em lugares públicos, é parte de um refinado sistema de fantasias, onde o sexo escondido é impulsor do desejo, e não uma negação dele. A leitura de Sandro enquanto um homem que não aceita sua sexualidade parece bastante equivocada por ignorar o próprio conteúdo de suas fantasias. Nas cenas de delírio onírico, Sandro sempre parece confortável com suas fantasias habitadas por arquétipos da cultura gay, figuras que mesclam maquiagem com barbas, drag queens e sadomasoquistas. Em seus sonhos, seus desejos se materializam com fascinação pelo universo queer, e Sandro nunca rejeita esses códigos.

Sua jornada por autoaceitação possui raízes mais profundas do que um mero apego à masculinidade hegemônica. Em uma cena em que Sandro se mostra vulnerável, ele confidencia a Ricardo a história de seu amigo Lázaro. “Eu acho que ele era a pessoa com a vida sexual mais pública da cidade.” Conhecido por todos por frequentar a estação atrás de rapazes para levar para casa, Lázaro acabou assassinado de maneira violenta. Sandro admite que teve medo de ir em seu velório, pois a cidade dizia que só apareceriam bichas. Narrativas de saída do armário tendem a colocar o ato de se assumir como a premissa básica da aceitação da própria sexualidade. Mas o se assumir é mais sobre tornar sua sexualidade pública, e Sandro aprendeu que, em certos contextos, essa escolha é um risco muito grande. Sua repressão não vem de problemas internos, por relações conflituosas com sua sexualidade ou por reprodução de uma masculinidade frágil. Ela surge da repressão externa de uma cultura que vigia e pune sexualidades dissidentes. Não por acaso, o ponto de virada do filme é a chegada de Maicon, o terceiro elemento que exibe ostensivamente sua sexualidade. Sua presença, além de materializar os desejos ocultos de Sandro, abala as dinâmicas de sua relação com Ricardo. O ápice de seu ciúme por ambos explode quando Maicon passa a oferecer a Ricardo o tipo de relacionamento público que Sandro teme assumir. E, como resposta, Sandro deseja punir ambos com a mesma violência que matou Lázaro.

Semanas atrás, repercutiu o caso de um jovem gay que foi agredido por um motorista de Uber e alegou crime de homofobia. Em pouco tempo, viralizaram nas redes sociais prints de conversas nas quais o rapaz flertava com motoristas de aplicativos. Com o surgimento dessa informação, a comoção pela violência sofrida deu lugar a um senso de punição e de legitimação de seu espancamento. Assim como Lázaro, “ele tinha procurado por isto”. Sua promiscuidade legitima a violência cometida pelo motorista. Esse caso recente comprova que o temor de Sandro segue sendo um pânico muito racional. Na repercussão do próprio filme, permeia um certo policiamento de suas propostas, inclusive de homens gays, como no caso do jovem agredido. Existe o argumento de que a representação despudorada e pornográfica de um sexo gay no atual contexto político-social seria um desserviço para a causa, que a trama não passa de “uma lista de fetiches” ou até mesmo a acusação de que o filme falharia em dialogar com audiências heterossexuais e que por isso não traz nenhum valor político. Tais críticas parecem ignorar que as comédias românticas protagonizadas por Rachel McAdams também são listas de fetiches da ideologia burguesa do amor romântico. Que as declarações de amor em aeroportos, as reconciliações passionais, os pedidos de casamento extravagantes também são fantasias sexuais. Ignoram a problemática de sempre considerar que as narrativas heterossexuais são universais, mas que narrativas queer precisam se adequar aos valores heterossexuais para que sejam validadas como universais. Um diretor homem cis-heterossexual, que fez um filme sobre um personagem homem cis-heterossexual, jamais seria questionado sobre sua preocupação em como audiências LGBT ou espectadoras mulheres vão reagir ao seu filme. Que em pleno 2020 ainda exista cinéfilo que acredita na existência de uma experiência universal do cinema já é chocante, mas que se cobre de realizadores queer uma preocupação com a frágil sensibilidade heterossexual chega a ser ofensivo. Ignoram que desde o primeiro trabalho sobre a representação de personagens LGBT no cinema, Vito Russo critica o fato de que histórias sobre homossexualidade sejam feitas para ensinar aos heterossexuais como eles devem lidar conosco. Que pessoas queer merecem histórias sobre o desejo queer feitas para o nosso prazer visual. Que não cabe a nós nenhuma obrigação sobre didatismos e concessões para agradar o espectador heterossexual. A ele já foi garantido todo o cânone do cinema; que nós possamos ter nossos filmes também. Ignoram que o próprio desconforto que o filme causa em homens heterossexuais, conservadores, gays assimilacionistas e sodomitas neoliberais já comprova o seu potencial político.

Em tempos nos quais a noção de cinema LGBT engajado, político ou ativista, ganhou contornos tão pedagógicos, impondo nos filmes a necessidade de expor claramente e em palavras suas pautas, é revigorante que o cinema de Nolasco seja tão imperiosamente sobre o desejo dissidente. O filme se encerra com Sandro descobrindo que ele merece mais; uma vida que seja mais. Descobrindo que novas masculinidades, novos modos de se relacionar, novas construções de desejo são possíveis e que se adaptar é necessário. Que um sonho que parece um presságio pode na verdade ser um bom sonho. E que sonho bom seria o dia em que audiências LGBT descubram que elas merecem mais do que filmes didáticos e esquematizados para agradar a heterossexualidade. Que percebam que representações de masculinidade não necessariamente precisam ser nocivas. Que o nosso desejo é uma força incrivelmente política. Enquanto esse sonho não se realiza, que ao menos o cinema de Daniel Nolasco continue criando despudoradas fantasias.


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