oroslan Olhar modelocinetica 2020

Reinventar o cotidiano

A sequência de abertura de Oroslan nos introduz de imediato a um elemento que se mostrará central para a compreensão da vida no pequeno vilarejo do qual a narrativa se aproxima: a rotina. Acompanhamos a produção e a distribuição matinal de marmitas, que são cuidadosamente entregues a várias casas. Vemos que todas as casas têm cestas ou ganchos preparados para o recebimento, e entendemos que se trata de um ritual cotidiano de longa data, de uma expressão do tempo daquele espaço, daquelas vidas. A sequência que nos revela a morte de Oroslan, personagem-título, é em sua maior parte formada por planos fechados de pernas em caminhada, planos que seguem os dois personagens que o descobrirão morto em sua casa. A cadência das pernas é tão sincronizada que parece uma marcha. A todo momento, somos lembrados do quanto aqueles corpos e aquelas vidas estão em sintonia por uma certa relação com o tempo, com os costumes, com os rituais, com a rotina.

A morte de Oroslan, portanto, representa algo potencialmente importante naquela realidade: uma ruptura da rotina, da repetição. Em uma entrevista para o site Close-up Culture, o diretor comenta que o filme é dividido em três fases: “A primeira é o momento da morte, a segunda é o irmão de Oroslan falando sobre sua morte, e a terceira é quando seus vizinhos e amigos falam sobre ele”. A segunda fase, essencialmente composta de longas conversas entre um repórter e o irmão do personagem-título, tem início com o repórter saindo do antigo local de trabalho de Oroslan, um açougue, enquanto guarda sua câmera. As imagens que vemos do açougue são registros detalhados sobre os processos de corte da carne, que vemos sendo realizados por vários funcionários em um ambiente amorfo de absoluto silêncio. Todos estão focados no trabalho, no papel que estão ali para desempenhar. O caráter maquinal daquele trabalho, que se faz implicitamente a partir de uma certa violência – o corte da carne – serve como reconhecimento de que o conforto do automatismo – identificado na repetida precisão dos cortes – tende a carregar consigo um jogo de perdas, de distanciamentos. Até que ponto os gestos já não se repetiram tantas vezes que já se esvaziaram de significado?

Pelos relatos que ouvimos do irmão de Oroslan e de seus vizinhos e amigos, entendemos que ele é um sujeito comum, não muito diferente dos outros moradores do vilarejo. Sua vida parecia ser mais ou menos orientada pelos mesmos costumes, espaços e círculos de relações que os dos outros moradores. Era um bom homem, trabalhador. Tinha lá seus problemas amorosos, suas dificuldades com a bebida, mas era bem visto pela comunidade. É como um dos entrevistados comenta: “Se trabalhamos, temos que beber. Ele era assim, ele gostava de beber”. Mesmo as peculiaridades de Oroslan são avaliadas por seus amigos e vizinhos como um reflexo da convivência, como um subproduto dos costumes.

O fato de que nunca tenhamos conhecido Oroslan, e de que todas as imagens que dele temos existam somente através dos relatos, cristaliza uma tragédia mais ampla: cada vez mais percebemos que ele era reconhecível para todos, que todos tinham uma ideia de quem ele era, mas que ninguém o conhecia verdadeiramente. As pessoas não se comunicam, por isso o definem pelos costumes locais, porque não saberiam defini-lo de outra maneira que não pelo denominador comum que partilham. A imagem de Oroslan torna-se uma imagem do sistema de relações do vilarejo, e somos inevitavelmente levados a nos questionarmos se alguém ali realmente se conhece, se há de fato algum rastro de intimidade nas frestas daquela rotina, nas frestas da familiaridade. O que os moradores têm para dizer de Oroslan não parece que seria tão diferente do que teriam a dizer de qualquer outro.

Matjaž Ivanišin investiga se há ainda uma possibilidade de se construir a memória de um povo através da oralidade em um mundo tão drasticamente organizado pelo automatismo do trabalho, pela reiteração da rotina e pelos graduais sacrifícios da intimidade. Afinal, não há memória oral sem proximidade, sem contato. O cenário do pequeno vilarejo, sobre o qual poderíamos imaginar uma realidade de cotidianos e relações distante daquela das grandes cidades, acaba por revelar-se um espelhamento dos mesmos problemas. A diferença é que se na grande cidade ao menos se pode diluir as distâncias na agilidade dos espaços comuns, nos falsos sensos de constante movimento e nas incalculáveis possibilidades de produção do acaso em uma rede com tantas variáveis em jogo a todo momento, naquele pequeno vilarejo não sobra nada. A pacatez gera uma melancolia entalada na garganta, uma melancolia viscosa, que não tem porta de saída.

Nas imagens que vemos dos bares locais, eles estão sempre completamente vazios ou quase vazios, e no segundo caso percebemos que as pessoas, se não estão sozinhas, estão sentadas juntas por pura conveniência enquanto assistem à televisão ou bebem em silêncio. De alguma forma, aquela paisagem campestre recebe e digere os códigos, os tempos e os distanciamentos da grande cidade sob uma violência tão mais particular: a única coisa que lhes restava, a intimidade das relações, parece lhes ter sido sequestrada. A morte de Oroslan expõe uma cicatriz que nunca realmente deu conta da ferida, e que continua a sangrar.

Os únicos diálogos que escutamos no filme inteiro são aqueles iniciados e conduzidos pelo repórter, pelo corpo estrangeiro, seja pelas conversas dele com o irmão do personagem-título ou pelas entrevistas ao final do filme. Não fosse aquela presença externa, será que haveria qualquer diálogo? A cena em que acompanhamos a conversa é composta por planos muito longos, e é uma troca em que o personagem do irmão fala sobre muito mais do que só o relato da morte de Oroslan, que só vem ao final. Naquele bar silencioso, naquele diálogo ainda ditado pelas demandas do trabalho – a produção da notícia – é como se o filme encontrasse um breve lampejo de esperança, um fugidio feixe de luz no esgarçamento da rotina; a possibilidade de que duas pessoas, mesmo no interior da temporalidade do trabalho, ainda possam se conectar, ainda possam produzir juntas gestos e memórias capazes de construir uma história, de dar lastro no tempo para os breves momentos de intimidade que se perderiam para sempre em um instante se não existisse uma memória oral para mantê-los vivos como parte da cultura, do imaginário coletivo; como parte de um relacionamento emocional, espiritual com o passado.

O mundo moderno aprendeu a registrar e armazenar quase todo tipo de informação que considera relevante, que considera direta ou indiretamente necessária para a manutenção do progresso. Mas aí teríamos de perguntar: e aquelas que não são? Quando ao final vemos as bucólicas paisagens desertas do vilarejo, inabitadas e contaminadas pelo silêncio, tornamos a imaginar se ali ainda haverá, algum dia, um mundo passível de construir histórias, criar memórias, produzir intimidades; um mundo que possa reinventar o seu cotidiano pela redescoberta da oralidade.


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