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Dar fim ao mundo, recomeçar o mundo

Em 1965, moradores do bairro de Watts, na periferia de Los Angeles, se revoltaram depois que policiais brancos tentaram prender de forma truculenta e arbitrária um jovem negro que dirigia embriagado. A atuação dos policiais, cada vez mais violenta, mobilizou uma multidão que, em pouco tempo, começou a se insurgir contra a opressão e o racismo em um conflito que durou quase uma semana e resultou em dezenas de mortes e milhares de feridos. Pouco anos depois dos Levantes de Watts (como ficaram conhecidas as manifestações), no começo da década de 1970, nessas ruas que guardam a memória de uma das mais importantes lutas de resistência da população negra nos Estados Unidos, o jovem Charles Burnett, que se tornaria um dos mais vigorosos e inventivos diretores no país, começava as filmagens de seu primeiro longa-metragem, O Matador de Ovelhas, finalizado em 1977: um filme cuja força política reside na recusa frontal em continuar a deixar-se assombrar pela morte, como poderia fazer um jovem negro, seja numa periferia da Califórnia ou do Rio de Janeiro. Ao contrário, o filme assenta-se em um enorme desejo de vida e na necessidade de restaurar a dignidade e a sensibilidade daqueles e daquelas para quem o mundo tornou-se amargo demais. Burnett interessa-se, assim, por instaurar novos campos de batalha, ligados menos às linhas de frente das manifestações e dos conflitos, do que ao terreno dos sentidos e da percepção. Junto a quem parece ter se tornado incapaz de fechar os olhos e sonhar (anestesiado pelo excesso de trabalho, pela exaustão), Burnett reinventa formas de ver, de ser e de imaginar, dando lugar a uma obra-prima que atravessa décadas e gerações.

Realizado como filme de formação de Burnett na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), com um pequeno orçamento de apenas 10 mil dólares, O Matador de Ovelhas circulou por diversos festivais de cinema europeus e ganhou, em 1981, o Prêmio da Crítica, no Festival de Berlim, além de ter sido premiado em diversas outras ocasiões. No entanto, o filme nunca chegou a entrar em circuito comercial (segundo Burnett, ele de fato nunca pretendeu que o filme fosse exibido publicamente). Assim, devido a problemas com direitos autorais das canções que compõem a trilha sonora do filme, ele se manteve fora de circulação e longe do acesso ao grande público por longos 30 anos, até que a Milestone Films se responsabilizasse e arcasse com os custos dos direitos autorais das músicas, um dos projetos mais caros assumidos pela distribuidora. Apenas em 2008 o filme foi distribuído comercialmente, após ter sido restaurado pela UCLA: a cópia original de 16 mm foi transferida para uma de 35 mm, e o filme foi também lançado em DVD. Mesmo com o atraso de décadas em sua distribuição, O Matador de Ovelhas talvez seja um dos mais conhecidos e celebrados filmes do chamado L.A. Rebellion (em português, “Rebelião de Los Angeles”), de que fizeram parte cineastas como Julie Dash e Haile Gerima, entre outros. Trata-se de um conjunto impressionante de filmes muito singulares e vigorosos, com forte desejo emancipatório, realizados por estudantes afro-americanos que se formaram na UCLA, entre as décadas de 1970 e 1980, devido a um programa de inclusão da universidade.

É importante ter em vista que O Matador de Ovelhas foi não apenas dirigido, mas fotografado, roteirizado e montado por Charles Burnett, com auxílio de moradores e moradoras de Watts. Com exceção do protagonista, interpretado pelo ator Henry Gayle Sanders (já que o homem que Burnett havia escolhido para atuar no filme estava na prisão), todos os outros personagens são interpretados por atores e atrizes não-profissionais da própria comunidade. O desejo de filmar as pessoas, mas também de filmar com elas, ocupando-se de seu tempo livre, leva Burnett a dispensar a equipe técnica profissional que chegou a participar do filme inicialmente e se amparar, então, apenas no trabalho dos/as moradores/as que não apenas atuaram no filme, mas o auxiliaram com o som e a iluminação, por exemplo. Essa escolha atravessa todo o filme, não apenas pelas questões técnicas e o aspecto menos manipulado da imagem, tomada por certa crueza intencional do registro, além da força e da potência das atuações, mas permite que ele seja irrigado, fortemente, pelo mundo. Trata-se de um filme de ficção, cujas cenas foram todas roteirizadas e cada gesto cuidadosamente preparado, mas que se interessa pela preservação e reinvenção de modos de vida, das experiências particulares e coletivas, do mundo em comum vivido, partilhado e sonhado no cotidiano dos homens, das mulheres e das crianças de Watts. Um filme que se constitui, no campo e no antecampo da cena, diante das câmeras e atrás delas, a partir de relações de vizinhança que atravessam a experiência e a memória pessoal do realizador, mas também de todos/as que tomam parte no trabalho da ficção. Um filme que se ocupa da rearticulação de tempos aparentemente díspares: o tempo do trabalho e o tempo do lazer, mas também o tempo dos trabalhadores, das mulheres, das crianças e dos bichos.

Como a polissemia do título anuncia (e se atualiza muitas vezes ao longo do filme), O Matador de Ovelhas é uma crônica fundada em formas poéticas, entre a beleza e a melancolia do cotidiano na periferia de Los Angeles, acentuadas pelas canções do blues e do jazz. Acompanhamos o dia-a-dia da família de um trabalhador exausto, funcionário de um matadouro, aparentemente anestesiado pela falta de perspectivas (o que parece faltar é sobretudo isso, a capacidade de ver e de perceber outros possíveis). Por isso, desde a primeira cena, é preciso avizinhar dos corpos e das vozes dos adultos, a agitação e a inventividade das crianças e de suas descobertas. A voz de uma delas, frágil, titubeante, desafinada, mas livre, ao se articular à voz grave, constante e cansada de uma mulher a cantar uma canção de ninar no primeiro plano do filme, nos revela propriamente essa dualidade: de um lado, a certeza e a segurança de quem se coloca a guiar um mundo; de outro, a abertura que se ensaia entre a tentativa de acompanhar o ritmo dos adultos, mas também a possibilidade de se lançar nos riscos. Ainda que alguém venha interromper a brevidade da infância, haverá sempre resistência. Ao filmar os/as trabalhadores/as de Watts, interessado em restituir a dignidade de sua aparição no cinema, Burnett não oblitera sua revolta latente, seu desejo de constante de mudança. Pelo contrário, a violenta necessidade de filmar leva Burnett a produzir um filme revolucionário, capaz de reinventar outros mundos, de forjar novas perspectivas.


Neste mês, a Sessão Cinética exibe Matador de Ovelhas (1978), de Charles Burnett, no dia 27 de junho, às 19h30, tanto no IMS Rio quanto no IMS Paulista. Após as sessões, haverá debates com os críticos da revista e convidados/as.

A cada dois meses, a Cinética faz uma sessão em parceria com o Instituto Moreira Salles, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional no Rio de Janeiro e em São Paulo. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

O Matador de Ovelhas será exibido em DCP.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS e no site ingresso.com.


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