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Movimento é memória; memória é História

Há uma sedução estranhamente poderosa no plano de abertura de Millennium Mambo, naquele corpo desconhecido que caminha por um corredor do qual nada sabemos, dentro de uma configuração espaço-temporal desprovida de qualquer encadeamento narrativo lógico: como chegamos aqui e para onde estamos indo? Como se situar diante da ritualização de uma imagem por completo incógnita, cuja própria matéria de reverência parece estar a se descobrir no momento mesmo em que a reverenciamos?

O que se desvenda no diálogo com o olhar continuado é um certo pretexto para o “descontexto”, uma propulsão interessada pelo movimento existencial do gesto de “pegar o bonde andando”, que nos aparece como uma constituição fundamental das impossíveis tentativas de presentificar o presente e, de algum modo, nos retorna ao paradoxo temporal da imagem cinematográfica. Roland Barthes, em seu livro A Câmara Clara, argumenta que “aquilo que a Fotografia reproduz até ao infinito só aconteceu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente.”. Nesse sentido, ela não difere do cinema, e apesar disso, estaremos muito mais inclinados a associar a imagem fotográfica ao que aconteceu e a imagem cinematográfica ao que acontece. A distinção, fundada primordialmente pelo movimento – o cinema sendo a arte de “esculpir o tempo”, como já posto por Andrei Tarkovski –, supõe que o que entendemos por presente não se forma numa impossível e pouco importante sincronia entre perceber e acontecer e, mais simplesmente, é um resultado da consciente percepção do estar em movimento. Se o presente, então, nada mais é do que o movimento percebido, o quanto podemos modulá-lo para que ainda nos vejamos frente ao acontecer? Qual seria a extensão de maleabilidade daquilo que tomamos por presente?

A questão se coloca em Millennium Mambo já em sua cena de abertura: um evento fenomenológico propositivo, que nos impele para uma imersão dos sentidos; um corpo que nos convida por olhares dissimulados, intrigantes na medida do seu mistério, como se no intercâmbio de olhares e num suspeito caminhar nos fosse sussurrado “é por aqui”; uma realidade tonalizada por luzes de neon e batidas sonoras atmosféricas; e uma voz do futuro que nos diz que tudo já passou, há dez anos atrás, em 2001. O que ali se manifesta como um fluxo quase sinestésico, como um contínuo que acontece e está acontecendo, é ao mesmo tempo pedagogicamente violado como uma possibilidade de presente, de existência. Não existe, nunca mais poderá existir, já passou. A sedução nos leva a acreditar que aquilo deve existir, precisa existir e está existindo. Mais importante, deve continuar. Afinal, lá está o corredor, o caminho. A imagem deve se desdobrar no tempo para se confirmar como presente e se tornar presente para se consumar em realidade. Hou Hsiao-hsien a essa altura se mostra um verdadeiro Eadweard Muybridge do novo milênio, ao se apropriar de um tempo histórico de grande transformação da humanidade para uma vez mais concluir que o real protagonista da observação não é o cavalo, mas o seu movimento. Enquanto em Muybridge a grande atração estava em uma espécie de redescoberta, sob a forma de Revelação, da Vida a partir do olhar privilegiado sobre os processos das suas ações, em Hou Hsiao-hsien trata-se de converter entendimento em experiência, revelação em sensação e descoberta em opacidade. O passado – e o futuro – no cinema só existe sob contexto: nenhuma imagem pode, por si só, ser passado, pois, em princípio, é necessário que exista uma imagem primeira da qual ela seja o passado; a imagem cinematográfica é em si uma produção da ideia de presente e o que entendemos como passado é apenas uma articulação de sentido fabricada na relação entre duas ou mais imagens; o passado, logo, não está na imagem, mas sobre a imagem. O plano inicial de Millennium Mambo, portanto, é uma imagem sem passado e sem futuro a romancear o seu presente.

Há toda uma associação de artifícios que mobiliza a imagem para uma imaterialidade do passado, para um foi: a narração em off, a câmera lenta, a música; é um conjunto de elementos que estipula o impossível, o nostálgico e o desejoso; uma imagem que a um só tempo foi e gostaria de ser. De alguma maneira, não deixa de ser um esforço de narrativizar – quiçá afetar – o incógnito para distanciá-lo daquilo que lhe é essencial: o seu próprio status de acontecimento presente enquanto imagem cinematográfica. Poderia ela ser tornada passado pela força do verbo, sem qualquer cruzamento com suas semelhantes? Ou ainda, seria a câmera lenta, contaminadora natural da estrutura temporal entendida como presente, capaz? Qual seria o limite de modulação das compreensões do tempo aplicado ao espaço a ser alcançado para que não mais pudéssemos reconhecê-la como uma imagem que é, que está sendo? Há uma constante retórica entre aquilo que nos seduz e aquilo que nos induz, um cabo de guerra entre as sensações que recebemos e as que formulamos, as imediatas e as posteriores. É por essa chave que poderíamos assumir Millennium Mambo como um filme sensorial por excelência, uma vez que a experiência sensória se pretende não somente como um produto previsto de um dado trabalho audiovisual, mas ela é justamente o seu Tema – aquele com T maiúsculo, o qual Noël Burch já se referia em Práxis do Cinema –, o eixo de deslocamento de suas placas tectônicas; é o ponto de partida e o ponto de chegada.

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Luiz Carlos de Oliveira Jr., a propósito da estética de fluxo – na qual o filme estaria integrado –, em seu livro A mise-en-scène no cinema: do clássico ao cinema de fluxo, elabora: “Se a mise-en-scène clássica implicava ordenar o real, emprestar uma forma ao que é originalmente informe e caótico (o mundo das pulsões e dos sentimentos), fazer um pensamento ganhar corpo no movimento narrativo de um filme, a estética de fluxo, por sua vez, já trabalha prioritariamente com sensações puras, com atmosferas, com a hipnose da experiência bruta dos significantes materiais (a luz, as cores, o som, a duração, os corpos em movimento), com a possibilidade de o cinema poder ser encarado, acima de tudo, como uma intensificação do olhar para o mundo. A dramaturgia cênica é substituída pela simples apreensão de blocos de realidade justapostos numa montagem que está mais interessada em construir ritmos do que em amarrar significados. O importante não é fixar e definir as coisas, mas gerar fluidez, movimento, continuidade, colocar em circulação as matérias e as formas, as energias e as forças. A arquitetura do real se troca por uma criação de ambiência (…) O barroco dos anos 2000 seria, antes, uma dissolução das formas, um transbordamento das matérias, uma profusão sensorial que parece em sintonia com um estado vaporoso do mundo, com uma nova realidade em que as relações de espaço-tempo se acham em processo de interpenetração e confusão.”.

Em seu texto sobre o filme para a revista, Fábio Andrade, no percurso de diagnóstico do conjunto de obras entendidas como representantes de uma estética de fluxo à época de Millennium Mambo, ao identificá-las como um cinema que “frequentemente se limitou a constatar sua existência”, procede para a afirmação de que Millennium Mambo “não resolve ou sequer enfrenta todas essas questões, mas é muito provavelmente o filme definitivo sobre e a partir delas.”. De fato, esse parece ser o caso, sobretudo porque Millennium Mambo, ao se colocar na linha de frente do enfrentamento ao novo milênio – e eventualmente às suas possíveis questões –, localiza um renascimento do cinema pela releitura daquilo que o define enquanto tal: o movimento. A cena inicial, que opera como um prólogo, está para o cinema do século XXI como A Chegada de um Trem à Estação (1896) esteve para o cinema do século XX, no sentido de articular e rearticular as fronteiras de compreensão da observação do movimento e seus efeitos na percepção. Se a inovação dos irmãos Lumière dispõe de uma fama especial por como espantou seus espectadores, fazendo-os pular das cadeiras e fugir, o de Hou Hsiao-hsien conserva uma notoriedade precisamente pela contramão: porque tornou, mediante um molde contemporâneo quase hipnótico, impossível a evasão da imagem; diferente dos Lumière, em que ela era um símbolo do estrangeiro temido, em Hou Hsiao-hsien ela é a confidente, a expressão pura da intimidade, do desejo, da atração inescapável. O que nos puxa incontrolavelmente no plano de abertura não é a protagonista em si, mas a sua condição de imagem, exatamente porque ela é a manifestação cristalizada da indescritível beleza de estar diante da observação consciente do movimento; e que essa observação seja tratada em profunda reverência é apenas sinal de que quanto mais conscientes dela estamos, mais intensa é a sua provocação, o seu chamado, o seu charme. Não à toa, o que salta à atenção, mais do que a personagem em si, é a ação da câmera lenta sobre o balançar dos seus cabelos, sobre os gestos de manutenção do trago do cigarro, sobre o lançar de olhares difusos, sobre a liberdade com que seus braços se lançam aos ares; em suma, tudo aquilo que a configura como imagem, como reprodução; tudo aquilo que a constitui como impossibilidade, como virtualidade. A personagem é, pois, não o encanto em si mesmo, mas a mediação do encanto.

Posta como um veículo de rememoração e reconfiguração de um papel histórico do movimento registrado, a personagem mobiliza uma erosão epistemológica de um certo estatuto da imagem cinematográfica em uma contemporaneidade. A hipnose estilizada de Hou Hsiao-hsien, ao transformar em experiência sensitiva a realidade pós-moderna de um mundo que subsiste a partir das produções de sentido formuladas por suas imagens, presta-se à reconsideração do papel existencial e histórico do cinema e, mais amplamente, da imagem em movimento dentro de tal esquema de produção. Não seria, em alguma medida, esse renascimento proclamado do cinema uma identificação de um sonho coletivo que transcorreria fundamentalmente o fascínio pós-moderno pela imagem em movimento? O que as evidências parecem revelar é como paulatinamente, no desenrolar desenfreado de uma modernização tecnológica que teria impregnado o planeta no século XX, a imagem em movimento se tornou a consagração possível de uma utopia do presente dentro de um mundo patologicamente orientado para um futuro infinito. Por incrível contradição, a imagem em movimento, uma das grandes mobilizadoras ideológicas da sintonia social em torno de um projeto planetário de futuro – por já ser um elemento referencial dos seus sucessos –, estaria constituída como a principal válvula de escape das suas angústias, pois seria ela mesma o modelo mais vigoroso de afirmação do presente, da possibilidade de estar diante de um aqui e agora, de um ser e estar que fora dela estariam sequestrados. Os recentes deslocamentos globais no pensamento sobre a ideia de futuro, que no curso dos últimos 100 anos sofreu expressiva transição de um paraíso do progresso para uma manifestação distópica, têm cada vez mais intensificado esse relacionamento com a imagem em movimento e, mais especificamente, com a vontade de acreditar numa experiência de presente que consiga se realizar através dela.

Henri Bergson, em seu livro Matéria e Memória, argumenta: “Quando pensamos esse presente como devendo ser, ele ainda não é; e, quando o pensamos como existindo, ele já passou. Se, ao contrário, você considerar o presente concreto e realmente vivido pela consciência, pode-se afirmar que esse presente consiste, em grande parte, no passado imediato (…) A sua percepção, por mais instantânea, consiste, portanto, numa incalculável quantidade de elementos rememorados e, para falar a verdade, toda percepção é já memória. Nós só percebemos, praticamente, o passado, o presente puro sendo o inapreensível avanço do passado a roer o futuro.”. Se assumirmos o presente puro, que em realidade é o que se entende por presente no senso comum e na retórica cotidiana, como uma hipótese temporal resultante de uma dialética entre passado e futuro e o situarmos em um amplo terreno existencial do século XXI, em que o futuro é uma coletânea de fins últimos e o passado é memória, veremos que a busca pelo presente é mais do que um gesto de fuga, mas efetivamente uma metodologia de sobrevivência. A partir do momento, porém, em que pressupomos que toda percepção é memória em um mundo no qual o presente precisa se fazer valer como um instrumento de manutenção de um ecossistema psicossocial, o passado torna-se fulcral para a construção de um presente possível. As estratégias estética e narrativa de Millennium Mambo operam especialmente nesse intervalo de dissolução das fronteiras entre passado e presente, memória e percepção, sonho e realidade. Como Fábio Andrade muito bem apontou em seu texto, “Vicky [Shu Qi] é tudo aquilo que ela experimentou, e o filme nos apresenta essa experiência seguindo sua recomposição pela narração da própria personagem; o filme é uma coleção de tudo aquilo que a constitui.”.

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Se tudo o que sabemos de Vicky é uma coleção de passados; se toda imagem é um retrato de memória, então naturalmente todas as imagens são, em igual medida, um retrato de presente. A ausência de uma imagem cunhada como “tempo presente” que dispute essa ideia é uma conclusão de que os variados registros de quem ela foi são o tecido mesmo de quem ela é, de tal forma que o ser seja ontologicamente distante do em si, atrelado a um interminável cruzamento de sentidos do foi. O filme, pois, anuncia em estrutura aquilo que se apresenta hoje como uma odisseia política de envergadura global: uma grande guerra cultural pela soberania da memória e por consequência da História. O surgimento daquilo que já costumamos chamar de pós-verdade estaria colocado justamente como uma ascensão de uma crença de que o presente é o tijolo do passado e não o contrário. É o terreno de conflito que se revela em destaque em Millennium Mambo: reivindicar a memória não como o que passou ou deixou de ser e sim como um gesto contínuo de ação sobre a realidade do agora, como o próprio motor fundador do devir. Em última instância, é sobre reafirmar e renovar, por intermédio da exacerbação e da hipertrofia de um molde pós-moderno tipicamente arqueológico, o que já estava à vista desde Resnais: a realização de que tudo é memória e sem memória não há existência. Quais seriam, no entanto, os caminhos a se seguir a partir daí? Fábio Andrade, ao comentar algumas atitudes do filme, constata: “O que ele faz é capturar esse sentimento de mundo com uma beleza e precisão ímpares, e apontar a necessidade de superá-lo: é preciso tomar uma atitude, sair de Taiwan – de seu mundo asfixiantemente familiar, por mais encantadoramente destrutivo que ele seja – e rumar sem medo de encontro ao desconhecido – no caso do filme e de Hou Hsiao-hsien, em seu filme seguinte, o Japão, lugar até certo ponto próximo e familiar, mas absolutamente alienígena em sua língua, hábitos e comportamento (…) Millennium Mambo tem, portanto, uma motivação de dramaturgia absolutamente clássica: a necessidade da heroína superar os limites de seu próprio ser.”.

O local no qual Millennium Mambo se encerra, uma rua lotada de cartazes de filmes, palco para um festival anual de cinema, conduz um gesto ambivalente frente à história secular do cinema que ecoa pelas paredes: estar ali é admirá-la e prestar o mais humilde dos agradecimentos; mas é também, exatamente por isso, um comprometimento em superá-la; testemunhar os seus sedimentos para ali redescobrir as possibilidades de mutação através do simples ato de imprimir um rosto na neve, reconfigurar a superfície; o tempo como o escultor da mudança, como o anfitrião natural das novidades. O que deve ser superado, enfim, não é nada menos do que o obstáculo-chave que dorme o sono dos justos na extensão da história: o impasse do cinema diante de um presente impossível. Aceitá-lo como memória através da compreensão não binária de que ela é o pavimento para um presente alcançável; aproximar-se do cinema pelo que ele é – e não pelo que ele não pode ser – como força motriz de sua redescoberta. Quando Vicky chega à pequena cidade entendemos, sob o símbolo da avó que completa um ciclo etário, que a paisagem é um sinal da tradição e a neve um indício da conservação, daquilo que permanece como que guardado em uma geladeira para proteger-se do exterior, da agência indiscriminada do tempo sobre a matéria; eventualmente, porém, o sol chega, a neve se esvai, e tudo recomeça, se transforma. “A rua do cinema de Yubari” continua congelada – em um inverno que faz até 30 graus abaixo de zero –, mas Vicky carrega consigo o processo de degelo, de desconstrução do que há tanto permanecia, se repetia – seu relacionamento abusivo com Hao-hao (Chun-hao Tuan) –, e as intempéries da mudança e do tempo, que mais cedo ou mais tarde chegam para tudo e todos, aportam em Yubari através da sua figura. Se a História é um produto coletivo dos sujeitos, então basta que eles se modifiquem para que ela também o faça. Se pensarmos a revolução como a suspensão dos tempos vigentes em nome da inauguração de um novo tempo, então não tardaremos a ver que Yubari está diante de um terremoto histórico; a história como catalisadora de alterações da História.

O que parece ter sido desenvolvido em real profundidade – como algo que não apenas denota participação em uma dada estrutura estética, mas é todo o seu alicerce – por alguns filmes recentes – assumindo um escopo de 20 a 30 anos – e possivelmente capitaneado com mais pertinência pelas obras da estética de fluxo da virada do milênio, é o potencial do corpo e das relações de corpos – partindo de suas condições de elementos semânticos de uma imagem cinematográfica – em reverberar uma Verdade sobre o mundo, sobre uma amplitude que o excede. Uma das grandes portas que se abrem diante de uma transformação de tal ordem é a possibilidade de uma chave de acesso alternativa à investigação da História. A História, que nada mais é do que um imensurável acumulado de histórias e memórias, uma narrativa de narrativas, retorna ao seu eterno berço: o corpo, único produtor possível das narrativas históricas. Assim, na medida em que a História se cruza com a história, o que se instaura é uma espécie de política da volubilidade que esvanece um inevitável grau de imobilidade que acompanha parcialmente a enormidade da História, permitindo às estruturas discursivas de uma realidade social o benefício do fluxo, da mutabilidade. Na narração final, Vicky recupera uma lembrança de uma vez em que, ao fazer amor com Hao-hao, foi atingida pela impressão de que ele era como o homem de neve, prestes a desaparecer com o raiar do sol. Ela comenta que “nesse dia, fazer amor foi triste”. Por meio das suas memórias íntimas, Vicky alcança um contexto existencial da modernidade já previsto desde Karl Marx, quando no Manifesto Comunista, a propósito do mundo capitalista, ele argumentara que tudo que é sólido se desmancha no ar.

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É a faca de dois gumes de uma contemporaneidade – e de um conflito que norteia a estética de fluxo – que tem na sua efemeridade tanto o encanto dos seus imediatos, das suas metamorfoses quanto a melancolia das suas impermanências, dos seus esquecimentos. É preciso alguma conciliação. Todo sujeito é em algum ponto uma crise com o seu tempo e Vicky, ao habitar um perigoso intervalo temporal da modernidade, torna-se a manifestação dessa ruptura. A difícil permanência que transcorre o relacionamento abusivo com Hao-hao reporta o indício de um esforço de resistência à fugacidade dos tempos e das mudanças, o desejo de se agarrar em algo que não se perca inesperadamente na fumaça. A lembrança da narração final, como testemunho da latência do medo de se perder no incontrolável trânsito das coisas e dos afetos, mostra como em alguns momentos mesmo aquilo que tanto machuca soa como uma alternativa mais plausível do que os riscos de se encontrar nos ameaçadores vácuos do tempo, nas incertezas das imperativas brevidades. Antes de superar Hao-hao é preciso lidar com as descrenças na permanência; é preciso sobretudo acreditar na memória, na sua agência de construção histórica; crer que há um fio que possa costurar uma continuidade no tecido do tempo, para que então se tenha um mastro para navegar no alto mar das emoções. Não há memória sem história, e vice-versa. Como a memória é tanto o que esquecemos quanto o que lembramos, ela é simultaneamente o que nos fixa no porto e o que nos arremessa ao mar, o que edifica e o que demole. O desafio vivido por Vicky e eventualmente por qualquer indivíduo da modernidade, logo, é o de construir autonomia diante do atravessamento entre as indeterminações do psiquismo, da subjetividade e as instabilidades de um mundo sob constante dissolução.

Ao final, ao caminhar na tradicional “rua do cinema de Yubari”, Vicky se localiza com o seu tempo e se constitui como sujeito histórico; entre a espessura da matéria dos fatos históricos que a rodeiam e a transitoriedade das vontades, ela parece intuir aquilo que é a chave para sua autonomia: conscientizar-se do potencial da memória como engrenagem do processo histórico. Estar ali na iminência de um novo sol a chegar, da neve a se desfazer, e constatar: “Nesse ano… houve grandes nevascas em Yubari”. Tudo passa.


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