Arábia tem sido festejado por parte da crítica como o retorno do operário ao cinema brasileiro. O que singulariza o protagonista do filme no contexto do cinema feito hoje no país, no entanto, talvez seja menos sua condição de trabalhador de fábrica, que o fato de ser este um personagem narrador. Cristiano (Aristides de Souza) é um operário de uma indústria de alumínio em Ouro Preto que, convidado a contar “algo importante” de sua vida pelo grupo de teatro da fábrica, escreve em um caderno a narrativa do filme, que que será lida em voice over pelo personagem durante o seu desdobramento. A sua voz se apresenta de início tateante, como a de alguém que ainda não sabe bem como pode transformar sua vida em uma história. “É difícil escolher um momento para contar”, comenta logo quando a narração se inicia. Arábia é, em linhas gerais, a história de como Cristiano se torna um narrador. O que faz a passagem entre aquilo que foi vivido e aquilo que é narrável? O que acontece com o vivido quando ele se dobra de maneira a se apresentar como um discurso inteligível e, sobretudo, transmissível? Será preciso não apenas percorrer a vida de modo a demarcar o importante do desimportante, mas estabelecer uma origem (“foi aí que tudo começou”, ele diz, se referindo à tentativa de roubo do carro que o levaria à prisão) e um fim (“a história de como a vida me levou até Ana”). A transformação de Cristiano em narrador é acompanhada pela transformação de sua vida em experiência, em um sentido próximo a que Walter Benjamin dava à palavra. Arábia é um filme, pode-se dizer, sobre o que é fazer experiência.
A história de como um trabalhador de fábrica se torna o narrador de sua própria vida pode surpreender quem aguardava o novo filme do diretor de A Vizinhança do Tigre (2014), Affonso Uchoa, que desta vez divide a direção com João Dumans. Vizinhança… também é estruturado, como Arábia, pela palavra escrita – o filme abre com a leitura de uma carta e fecha com uma outra -, mas o miolo do filme se esforçava por apresentar a vida em sua imediaticidade, como se anterior à forma da narrativa. Em Vizinhança…, acompanhamos momentos em grande parte improvisados do dia-a-dia de adolescentes do Bairro Nacional, em Contagem. O filme estabelecia pouquíssimos acontecimentos propriamente narrativos, que podiam se destacar do fluxo contínuo do vivido e instaurar entre si uma relação de causalidade forte, preferindo se ater ao momento, naquilo que ele tem de gratuito e singular, respeitando sua duração e sua irredutibilidade à economia do relato. A progressão narrativa do arco de Juninho, que volta para casa da prisão e, no fim do filme, foge do bairro sob ameaça do tráfico, era em grande medida um escolha de conveniência, que estabelecia um apoio mínimo para que o filme pudesse se dedicar ao que realmente lhe interessava, que são as ocorrências cotidianas da vida de suas personagens. Em Vizinhança…, quase nada acontece, mas muitas coisas ocorrem, caso possamos entender por ocorrência algo muito distinto de um acontecimento: um incidente que, a despeito de advir, não se descola do fluxo da vida, não se sobressai da massa amorfa do vivido de modo a instaurar uma assimetria, um corte de um antes e um depois que pudesse instaurar o motor da narrativa. A tomada de partido pelo vivido, em detrimento do experienciado, não é, é claro, uma característica particular de Vizinhança…, mas uma marca de certo cinema brasileiro contemporâneo, de uma geração de jovens autores que começou a fazer seus primeiros filmes na segunda metade da década de 2000, influenciados pelo que se acostumou a chamar de cinema de fluxo. O que caracteriza um grande número de filmes mais ambiciosos do período é justamente o interesse por personagens que não fazem experiência, que estão perto demais, imersos demais na vida para decalcá-la na forma do narrável.
A aparição de um filme com um personagem como Cristiano marca se não uma mudança de rota, ao menos uma dobra dentro do projeto de cinema que Vizinhança… encarnou muito bem. Há boas razões para resistir em encontrar em Árabia um retorno a um cinema narrativo mais tradicional, embora o filme se preste para tal tipo de observação. O desejo de trabalhar no interior de certas formas narrativas é sempre negociado por uma vontade de cinema de outra ordem, reminiscente de Vizinhança.... Se a voice over opera pelo escalonamento do vivido em um conjunto articulado de acontecimentos decisivos, o mesmo nem sempre se passa nas imagens. Os acontecimentos da narração e as ocorrências da imagem raramente coincidem totalmente. O filme decide deixar grande parte de seus acontecimentos narrativos no fora de campo (a tentativa de roubo do carro com Neguinho, a morte de Barreto, o término com Ana, o desmaio de Cristiano), preferindo trabalhar pela elipse os pontos de virada do drama, ao mesmo tempo que a maior parte de suas cenas se comportam menos como ocasião para a ação dramática e mais como recortes autônomos do cotidiano (as conversas na lavoura, o almoço entre os pedreiros, o dia a dia de trabalho na fábrica de tecidos), em que nada propriamente acontece ou, se algo acontece, é na medida em que é retomado pela narração, que lhe atribui sua própria condição de acontecimento. O discreto desencaixe entre a narração e a imagem é reforçado pela concepção da mise-en-scène. A preferência em construir cenas em um único plano, em geral estático, não apenas trai um desejo pictórico, que já conhecíamos de Vizinhança…, mas sugere uma concepção cênica lisa, que evita o estriamento analítico da decupagem, trabalhando frequentemente pela construção de blocos autocontidos, que se impõe em sua luminosidade própria.
As poucas cenas em que vemos uma ação dramática decisiva tendo curso são, nesse sentido, bastante sintomáticas, na medida em que nelas Uchoa e Dumans permitem que a sequência se desenvolva em um andamento ligeiramente distinto do resto do filme, como se a postura reservada até então à construção narrativa do texto de Cristiano fosse assumida pela encenação. O naturalismo discretamente empostado da atuação no filme cede a uma teatralidade mais aberta na cena da demissão de Cristiano, em que o hieratismo das posturas e sua marcação dentro do plano remetem a uma figuração arquetípica do trabalhador, do patrão e da produção, um tanto acima do tom geral do filme. O mesmo se passa na história da relação de Cristiano e Ana, quando várias cenas são elaboradas em uma decupagem discretamente mais clássica, resolvendo tanto a cena do primeiro flerte, quanto da confissão do aborto no campo/contracampo, ao mesmo tempo que ocupando desinibidamente topos da comédia romântica, como o encontro no parque e o primeiro beijo. A precisão conceitual de Vizinhança… cede lugar a um filme que trabalha com um leque mais variado de registros, naturalista e cerimonial, oral e escrito, romanesco e pictórico, cuja consistência se adquire menos na proposição geral do filme que na cadência de suas transições.
A questão da narração em Arábia não se dá, é claro, apenas no nível formal, mas se duplica como tema. O desejo de se apropriar de certas formas narrativas não se desenvolve sem que, sintomaticamente, ela também seja problematizada, como se, por um excesso de autoconsciência, a narrativa precisasse ser não apenas construída, mas posta em cena. A maneira como Arábia nos coloca diante do ato de narrar é bastante variada, sendo mais perceptível a construção de Cristiano. Cristiano não é um narrador qualquer, mas encarna duas figuras tradicionais do narrador. Em primeiro lugar, a figura arquetípica do narrador viajante, aquele que viu o mundo e voltou para contar. Árabia se apresenta de início como a história das andanças de dez anos de Cristiano pelo interior de Minas Gerais, e sua estrutura errante, episódica e repetitiva é reminiscente dos romances antigos e medievais. As cenas em que as personagens inventariam suas experiências, como a que Cristiano enumera os trabalhos que fez na viagem (“embalar compra “, “colher tomate “, “consertar motor”, etc.), ou a que ele e seu colega de trabalha discutem quais são as piores ou melhores mercadorias para se carregar (cimento, telha, lenha, sal, porco, batata, milho, arroz, ração de peixe, etc.), rementem à vastidão desse mundo visto e vivido. A enumeração possui no filme certa função encantatória, uma litania religiosa, como se, ao invocar a miríade de coisas do mundo, nos desse um pouco do sabor do infinito, atestasse o inumerável.
Em segundo lugar, Cristiano assume a figura do narrador moderno que, pelo meio da escrita, revisita suas lembranças de modo a construir o sentido do vivido, tornando-se senhor de sua própria experiência. A estrutura a princípio episódica de Árabia se alinha de modo a se constituir uma única narrativa, que é a história de como Cristiano toma consciência de sua própria vida, torna-se um narrador, de fato. O filme se revela então como um exercício de um romance de formação – um “romance de formação de consciência”, se quisermos usar a expressão de predileção dos autores -, no qual tudo irá se revelar como tendo sido encaminhado para a epifania final na fábrica, quando Cristiano é tomado de súbito pelo som de seu coração e pela constatação de que nada importava ali, em meio às máquinas da indústria de alumínio: “a nossa vida é um engano”, fala, e sua palavra tem o peso de uma verdade recém-revelada. A escolha pela estrutura do romance de formação é, de fato, desconcertante, porque ela, talvez mais que qualquer outra, estabelece uma retenção radical no fluxo da vida, isto é, institui a tomada de forma, a constituição de um sujeito. O tempo do romance de formação é, como diz Deleuze, um “tempo pulsado”, isto é, um tempo que “marca, mede, analisa” a vida, que é devolvida ao narrador como experiência articulada, exprimível na forma de uma consciência transparente para si mesma. Arábia não é simplesmente, contudo, um retorno à uma concepção mais tradicional do sujeito e do tempo narrativo, mas um exercício autoconsciente de formas romanescas, que mantém diante de seu material relativa distância e um certo estranhamento, como se o que guiasse o filme fosse menos a crença nessas formas que o desejo de experimentar com elas. A narração não por acaso sempre é devolvida como tema pelo filme, como se sua presença fosse suficientemente estranha para poder ser simplesmente esquecida. A condição de narrador de Cristiano apenas não basta para o filme, e Arábia precisa duplicá-lo em outros narradores, que se multiplicam como imagens em um espelho, a começar pelo personagem Barreto, que em um único plano conta a história de sua vida, mas também muitos outros com que Cristiano se encontra. “Cada um tinha uma história “, nos diz a voz em off, como se já não fosse tornar-se óbvio. Os momentos em que a narração é posta em cena são construídos, justamente, de modo a realçar o gesto de narrar em sua dimensão ritual, na qual a palavra falada parece mudar de regime, tornar-se portadora da experiência. Trata-se de uma palavra não menos encantada que a dos trovadores que igualmente se multiplicam no filme. A cena do reencontro com seu amigo de presídio, Cascão, é, nesse sentido, exemplar: Cristiano escuta a história dos novos tempos em liberdade de Cascão, quando descobriu-se rejeitado pela família e pelos amigos : nesse cena, a palavra não é, como foi em tantas outras cenas, apenas uma conversa jogada fora, mas o compartilhamento de uma experiência interior, que se expressa no ritmo cerimonial, de quem exprime uma resolução decisiva : “esta é a realidade da rua”.
O filme nos apresenta a narração de Cristiano mediada pela presença de um leitor. Introduzido no longo prólogo do filme como um falso protagonista, um jovem morador da vila operária (Murilo Caliari) encontra o caderno do personagem. A presença do leitor permite que Arábia coloque em questão não apenas o processo de construção da narração, mas as suas condições de escuta. A narração é marcada, assim, como um escrito encontrado, e portanto, como um texto que não foi endereçado ao leitor, que não poderia propriamente antecipá-lo, como se o filme se esforçasse assim por produzir um efeito de interioridade, autenticidade e espontaneidade na voz (já havíamos percebido há muito tempo que Cristiano escreve para si e não mais para responder ao pedido do grupo de teatro da fábrica). A invenção desse personagem leitor, no entanto, possui uma função ainda mais importante no filme : o leitor é quem estabelece a transmissão da experiência narrada, marcando, assim, que aquela fala deve ser acolhida pelos ouvintes em sua transmissibilidade, isto é, em seu estatuto de palavra compartilhada. A introdução do personagem do leitor também reforça o caráter fabular do filme, como se sugerisse que aquela história deva ser vista como se mediada pela imaginação de um outro. Em uma estratégia semelhante à divisão em duas partes de Tabu (2012), de Miguel Gomes, trate-se de, a partir do encontro que é a própria leitura, investigar a experiência do ponto de vista de sua transmissão.
O leitor de Arábia, no entanto, não é um mediador qualquer. A personagem de Murilo Caliari é, desde o início, marcado como alheia à vila operária onde mora. Sobrinho de uma enfermeira da fábrica, o seu lugar de classe é diferente da maioria das pessoas que moram na vila. Sua introspecção parece afastá-lo também para muito longe do espaço real que o circunda. O primeiro plano filme, que introduz a personagem, mostra uma imagem que todos saberão já tê-la visto em algum lugar: o garoto magricela branco de classe média, roupas um tanto folgadas, andando de bicicleta solitariamente na estrada, uma bela paisagem solar ao fundo, um folk americano embalando as pedaladas. O plano parece pertencer a um outro filme e a um outro lugar, ao mesmo tempo que acena para uma parte da audiência que poderia encontrar naquela imagem uma identidade de classe reconfortante. O ato da leitura, portanto, estabelece uma mediação que se dá entre dois personagens, mas também entre duas classes e sensibilidades. O passeio do filme por formas cinematográficas, pictóricas e romanescas conhecidas não se encontra alienado desse esforço maior de mediação. O gesto de colocar em destaque a questão da transmissão da experiência de um personagem operário de fábrica, mas também jovem de periferia, ex-presidiário, camponês e trabalhador temporário, permite que Arábia, a despeito do seu esforço em parecer anacrônico, encontre o seu sentido de urgência.
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